sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Bom Dia de S. Valentino com Simenon: mas afinal o amor não é eterno como nos livros de histórais?


Tantos livros que li, na minha vida! Talvez seja uma "livro-dependente", palavra que se devia ter já inventado. Ou biblio-dependente?


Livros de Salinger, em Paris

Não posso imaginar a vida sem livros. Aprendi neles quase tudo, cresci com eles, adolescente chorei com eles, ri com eles. Casei e continuei com eles, tentei transmitir o gosto aos meus filhos. Vou envelhecendo com eles, pode-se dizer...

Livros na minha casa...

Livros na Livraria Galileu

Li há pouco tempo uma frase mas esqueci quem a disse e tornei-a minha, modificando-a: a vida é um grande rio de livros, que flui até à morte...


Ando à volta com uma novela tremenda de Simenon: Le Chat. Abro e fecho o livro. Agora arrumei-o por uns tempos na estante.

Romance duro, sem piedade, sem comiseração: a vida a fluir, nua e crua, na sua desgraça e no ódio que às vezes separa as pessoas, mesmo quando se amaram.  


Georges Simenon

Era a matéria dos seus romances "duros" como ele lhes chamava. Simenon é um dos meus escritores preferidos - e não falo só dos romances policiais com o Comissaire Maigret. 


Das Obras Completas, Tout Simenon, da editora Omnibus, tenho  mais de 15 volumes! 

Com os livros de Georges Simenon, aprendi a ler francês e a saber falar a língua. Na Universidade, os Maigrets eram as minhas leituras para me acostumar e poder entrar noutros romances com linguagem mais difícil. Era coloquial, acessível, escrevendo muito bem, no entanto: sempre perfeito! André Gide apreciava-o muito, e Gide apreciava a forma.


Outras histórias como "Quartier Nègre", "45º à L'Ombre", "Les gens d'en face"  são inesquecíveis: de amor, de solidão, de egoísmo, de infelicidade, de vidas destruídas. 



Simenon amou muitas mulheres, "conta" a biografia dele e os livros íntimos. Dele e sobre ele tenho quase tudo. Não sei se, no seu enorme egoísmo, ele amou alguém...




A história de que vou falar é banal. Emile era viúvo, e um dia decidiu casar-se com Marguerite, também viúva. Ela aceitou. Tinha medo de viver sozinha. Creio que, acima de tudo, foi o "comodismo" da relação que lhes interessou. Ela era uma viúva ainda nova e ficou contente por se "arrumar" e não ter de pensar em ser ela a trazer a lenha para casa, no Inverno, ou despejar o balde do lixo todos os dias. 
Viúvo, ele também, precisava de alguém que lhe pusesse a casa em ordem e cozinhasse. Dividiram as tarefas...

Hoje, velhos, encontram-se num frente a frente quotidiano  onde o autor vai fazer ressaltar sobretudo o ódio e a insuportabilidade do “outro”



O autor escreve, a propósito dela:

"Marguerite era doce, quase suave. Imaginava-se a sua figura jovem e esbelta, uns anos atrás, já nessa altura vestida de cores pastel, com um grande chapéu de palha na cabeça, passeando, de sombrinha na mão, à beira do rio".



Mas a juventude passou. "Tudo passa, tudo esquece, tudo cansa", diz um velho ditado. 


Num dia de Novembro, estavam os dois sentados ao pé da lareira. Ele, com o jornal aberto, ela com o tricot no colo, na poltrona baixinha. E assim começa o livro.

"Olhavam-se, espiavam-se. Não precisavam de se olhar. Há anos que se observavam assim, dissimuladamente, trazendo todos os dias a este jogo novas subtilezas."

Ele tinha um gato. O gato estava sempre entre eles. "Se não era de raça, não deixava de ser um gato com bom aspecto. O corpo elegante, flexível esticava-se ao longo das paredes e dos móveis com o corpo de um tigre."

Ela tinha um papagaio colorido que lhe saltitava no ombro, assim que o tirava da gaiola. "Uma arara grande de cores brilhantes que nunca falava mas que, quando se zangava, dava gritos estridentes.

E eles viravam-se as costas. Durava há quatro anos esta situação. Desde que o gato morrera... Ah! Sim, porque, entretanto, o gato desaparecera! 

Ao encontrar o corpo sem vida do gato, na cave onde ela ia buscar o vinho - depois de o chamar ternamente- ele culpa-a da morte do gato. Envenenaste-o?!” 


Nunca saberemos se ela o envenenou. Encolhe os ombros e não lhe responde. 
O desabafo dele não era  pergunta, era uma afirmação. E nunca mais lhe dirige a palavra. De tempos a tempos, escreve-lhe um bilhetinho com duas palavras "o gato".

Dias depois,  é o papagaio que aparece morto. Marguerite não o censura nem acusa.  Mas quando ele escreve no papelinho  "o gato", ela responde baixinho "o papagaio". 

E assim se passam os dias. Ele sai para ir ao café, ela vai às compras, prepara o jantar e senta-se na eterna poltrona, a tricotar. As vidas deles vão-se esvaziando de sentido, como um boneco cheio de ar. Ouve-se o barulho das agulhas de tricotar, a lenha a crepitar na lareira e mais nada. 



Fora bela e jovem, Marguerite, e ele fora interessante, tivera tantas mulheres, interesses.  



E agora? Agora, os corpos envelheceram, e o sentimento gastou-se? É  o que ambos não perdoam ao outro? Quem sabe? Simenon não fala disso, limita-se a pô-los em cena. 

A verdade é que, se ele era prepotente e rude, ela era uma avarenta. E havia entre eles uma grande diferença social: Marguerite era filha de proprietários rurais, Emile tinha sido pedreiro. 

Teria sido a desilusão, a amargura, ou desgosto das pequenas coisas? Mon amour, c'est le désamour, cantava Leny Scudero. 

O romance fala, sobretudo, de ressentimento - e de ódio também. Um ódio que vai durar até à morte. Tudo está ali, naquela luz de Outono, quando o livro começa.


Ele só soube amar verdadeiramente o gato...

Uma manhã ela não consegue levantar-se da cama. Queixa-se: "É o meu coração..." E fica deitada. Sabia que era grave. Recostou-se nas almofadas, e esperou.

Ele não responde, e sai como nos outros dias.

Quando ele voltou, ela não dava acordo de si. Chamou a ambulância, foi com ela para o hospital. Era tarde, porém. Marguerite stava morta.

Arrependeu-se? Culpou-se? "E chi lo sa? Alibaba...", diria o Aldo Zari.

Não creio que Alibabá o soubesse. O coração de Emile era duro como uma pedra. Só se abrira para o gato. Alguma coisa, porém, se quebra naquele mecanismo, como brinquedo avariado, quando ela morre.




Ridículos, velhos palhaços cujo público já os não quer ver. Incomodam, a caminho da destruição. 
A quem escreveria ele agora os bilhetinhos a dizer "o gato"? A quem espreitaria agora, de olhos meio fechados, a estudar o efeito das suas farpas? A ver se a magoara o necessário. Se ela já "tinha pago" a morte do gato...

Personagens comoventes, como Simenon tão bem sabe criar, personagens que amamos porque sofrem, porque são como toda a gente. 

Numa entrevista à TV francesa, em 1967, altura em que sai o livro, o autor resume brevemente o assunto: 



"É um história que não é divertida. Dois velhos que vivem numa pequena casa em Paris e que se odeiam. Por causa da morte de um gato. Desconfiam um do outro, deixam de se falar, escrevem bilhetinhos. Cada um julga que o outro o vai envenenar." 
Simenon sorri, e acrescenta: 
"Creio, que no fundo, se trata de uma história de amor"...



Sim, talvez história de amor e de solidão. Sem a companhia do gato e sem ela, sem o ódio que o fazia viver, a vida de Emile deixou de ter sentido. A quem odiaria? É horrível de o dizê-lo, mas há pessoas que vivem para odiar os outros e enchem a vida de pedras, de vidros partidos, de latas velhas, para atirar aos que odeiam!

Emile começou a dizer coisas sem nexo e levaram-no para o hospital. Lá ficou. Ninguém o ia ver, porque ele não tinha amigos, porque amava ninguém e nunca pensara se não em si próprio. Morreu pouco depois


E e assim acaba a história! Lembro como terminavam as velhas fábulas gregas : Hó myutsos deloi?” (transcrição fonética da expressão...)

Sim, que lição tirar da "fábula"? para mim a "myutsos" não "deloi" coisa nenhuma! Cada vida é cada vida e cada um "cria" a sua vida livremente. (Ou, mais ou menos, dirão os pessimistas.)

Eu sou optimista! Sei que o ódio é um sentimento muito forte, mais forte talvez do que o amor para alguns.  Mas não para mim! Eu acredito nos bons sentimentos, no amor sentido, na ternura, na companhia. Eu sou uma grande parva, já me disseram!

Chagall e o Amor!

A verdade é que "Vidas são vidas", como diria, filosoficamente,  José Régio. Não é por acaso que é este o título do 2º volume de "A Velha Casa". 
E temos que fazer da nossa o melhor que pudermos, porque depende em grande parte de nós! E sem arranjar "gatos" a complicar!

Para quem interessar: existe um filme tirado do livro, da autoria de Pierre Grenier-Deferre (1971), com dois actores fora do comum: Simone Signoret e Jean Gabin. 



Dois mestres que dão toda a brutalidade e a tristeza da história,  de modo incomparável! 

É Dia de São Valentino! Não desanimemos com as histórias do Simenon! Depende muito de nós (sejamos optimistas!) o São Valentino. Como diz a canção, "every day is Valentine's day!" Se nós quisermos...


Bom dia de São Valentino, amigos! Bom dia de São Valentino ao amor que tive numa vida...

E ouçam Chet Baker e "Funny Valentine"! 





12 comentários:

  1. Eu também penso que é uma história de amor, porque senão não tinha nenhum sentido que estivessem a aguentar-se dessa maneira, cada um necessitava do outro para ser ele mesmo, à sua maneira, claro. Cada pessoa é como é, e talvez no fundo não consiga ser de outra maneira, mesmo que gustasse que assim fosse.
    Gostei muito deste post. Adoro a Simone Signoret, nem sei porquê sempre me fascinou.
    Mando-te um beijinho

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    1. Também me fascina: é linda, inteligente e tem classe! C'est beaucoup...

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  2. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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    1. Claro que é, mas daquelas histórias de amor duras e cruas que ele costuma contar! Se nada é simples na vida, porque o seria o amor, não é? UM beijinho e bom dia de S. Valentino!

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  3. Descobri este blog hoje. Já tive um que eliminei ao fim de uns alguns anos porque a blogosfera me cansou e tinha pouca disponibilidade. mas h´´a alguns que considero únicos que ainda visito e foi através de uma amiga que cá cheguei e gostei imenso de tudo o que li e vi. Muito agradável, muito profundo. Parabéns.

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    1. Branca, agradeço-lhe a mensagem que deixou! Fiquei contente por ter "dado" um pouco de mim no que escrevo. Apareça! Bom fim de semana!

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  4. Nao sabia desse libro do Simenon, mas com certeza è livro dele. Quando tu escreve que pode ser que nunca amou uma mulher por o egoismo dele, acho tu tem razao.
    Talvez seria porque nao ter nascido o 14 fevreiro, mas o dia anterior?! Va saber!
    Um abraco. Gostei muito deste post.

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    1. Obrigada Nela! Tu és especialista destes escritores... Tenta ler, é um conto tremendo. E ouve a entrevista dele que pus nos post: ele fala da história, mas tem um sorriso quase irónico. Eu adoro os livros do Simenon! ADORO! Mas não gosto dele, li tudo sobre ele e não gosto... Gosto é do Maigret! ! O outro é "o homem" - e não tem nada que ver com o escritor, já o dizia Proust no seu "Contre Sainte-Beuve"!!
      O escritor ´"é" o que escreve, o que "escolheu" ser e deixar de si
      E punto e basta... Bacione!

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  5. Parece uma história interessante.

    Os livros são a melhor companhia!
    Um beijinho

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  6. Vejo aqui a paixão sobre os livros policiais além da paixão tão bem retratada.
    O Mickey e a Minnie são um achado.
    Beijinho. :))

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  7. Amar é um duro exercício,

    único.

    bjs muitos

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