domingo, 23 de fevereiro de 2014

Dias de chuva... O Ratinho está ofendido comigo?



Todas as manhãs, o Ratinho parece olhar-me um pouco de lado, quando vou dar os bons dias aos três amigos. Encostado à madeira da escrevaninha, parece mergulhado em pensamentos profundos. É sempre o primeiro a acordar, mas fica na cama a pensar.


O Ouricinho diz “bom dia, bom dia!” e  salta logo da caminha –uma espécie de saco-cama que lhes arranjei para o Inverno, numa bolsinha dos meus bâtons- e vai espreitar à janela para ver se chove ou se está sol.

- Chove outra vez, Ratinho! Que maçada...
O Ratinho Poeta não responde. Olha para mim com uma expressão triste, diria mesmo, ofendida.

- Bom dia...

E volta aos seus pensamentos. A gatinha japonesa é sempre ela-própria e gentil, com chuva ou com sol. Pega na malinha de mão, alisa o kimono cor de rosa e azul e cumprimenta-me sempre com delicadeza e uma ligeira vénia.
- Bom dia, minha amiga...


Sorrio. Figurinha etérea e sorridente, guardando lá no fundo de si a dor ou as ofensas da vida, parece-me saída de um romance do Kawabata ou do livro -que agora estou a ler- de Lafcadio Hearn, "O Japão".



Katsushika Hocusai


- Bom dia, Shôshô San, respondo, a pensar na Madame Butterfly do Puccini. Ou na suavidade do quadro de Sinshui Itô...

Sinshui Itô, Noite de neve

E lá vai ela para junto do Ouricinho, aos saltinhos, e põem-se logo a  conversar.
Entendem-se melhor estes dois, talvez porque ainda são crianças. E o Ratinho? Bem, para eles o Ratinho é o Mestre e ela tem um grande respeito pelo Poeta. Chama-lhe sempre “Ratinho San”.

Yosa Buson, Haiku

Por que estará zangado o Ratinho? Pelo menos, está triste... Será culpa minha? O que teria eu feito?

É verdade que os dias cinzentos nos enervam e isso não ajuda às relações humanas. 


"Mas se fosse só no tempo do Inverno..."
 Ele é um sensitivo, um susceptível, um mimoso e presumo que acha que não lhe estou a dar a atenção devida.


"Sim, o Ratinho é um egocêntrico. Não admira, ele é um Poeta, um Artista!", penso para mim.

Uma coisa engraçada é ver que, apesar de egocêntrico, não é narcisista – sentimentos que, por vezes, coincidem na mesma pessoa. Não, o narcisista cá da casa é o Ouricinho!

O que ele adora perguntar-me:
- Estou bonito hoje?
Põe um lacinho ao pescoço ou nem isso, penteia-se com a patinha ao espelho e fica à espera.

Eu respondo-lhe :
- Estás lindo, meu amor!

Ele chega-se para mim e pergunta:
- Cheiro bem? Cheira aqui no pescoço...
- Umm, que bem que cheiras!
E não minto, ele cheira sempre bem!

O Ratinho é diferente, claro. Dá uma certa importância à sua aparência, talvez seja um pouco convencido de si, mas não tem a mania das toilettes, é simples. 

"E é sempre tão generoso! Por que  estará ofendido?"

 Não me  sai da cabeça a pergunta, apesar de saber que sei a resposta demasiado bem: é a sua susceptibilidade (se estivesse em Itália, diria dele: “è permaloso!”, mas como traduzir?). A  exigência de ser o preferido, o medo que se esqueçam dele, menino abandonado que foi.

Ouço-o dizer, baixinho:
- Agora não me falas, pela manhã?
- Eu?


Espanto-me. Mas com um certo sentimento de culpa porque o tenho deixado mais sozinho. Há sempre preocupações que nos distraem a atenção que deveríamos aos  amigos, e isso é no fim e ao cabo, indesculpável. 




O Ratinho “fareja” tudo com aquele narizinho que ele tem sempre no ar, a ver o que se passa!
Ele é muito meu amigo, tem uma dedicação por mim desde que o trouxe para casa um dia. Sei que pressente que ando preocupada.

- Andas bem? O que disse o médico da última vez?
-Oh, Ratinho, estou bem!
- Andas longe, distraída. Não me falas da mesma maneira. Não me dás atenção...

O desabafo saiu-lhe de repente, e eu nem esperava nada do género: ele costuma ser mais reservado nas suas emoções.

- Ó, Ratinho! Não é verdade! Faço o que posso. Vês-me sempre a andar daqui para ali...
-Não paras, é verdade. É disso que eu não gosto! Tens de estar sossegada!

E, logo, ansioso:

- É por causa da crise? Têm problemas?
- Por quê, Ratinho?
- Ah, tu bem sabes. Dizem que a crise está a dar cabo das pessoas, das vidas de toda a gente.
- Ai dizem? Onde ouviste?

Como teria ele ouvido estas coisas todas? Claro que do Ratinho eu espero tudo! Com o seu modo silencioso, de nariz no ar, anda sempre a bisbilhotar tudo. 

Espreita a televisão, lê os meus livros, vai à internet. É um perigo! Queria sossegá-lo mas não sabia como.



- A crise? Sim, a crise preocupa-me...
- Há gente com fome. Tens cá comida que chegue para todos? E queijo?...
- Tenho...

Ele acenou com a cabeça várias vezes, enquanto dizia:
- Sim, preocupo-me muito! E quando não me falas, é pior! Ele...

E apontava para o Ouricinho que continuava à janela e agora dava cambalhotas, a rir-se.


- Ó Shôshô, viste aquele com o guarda-chuva virado ao contrário? Hihihi! E a mulher que anda ali às voltas.


- É o vento...
E riam os dois às gargalhadinhas.

O Ratinho continuou:

- Ele... sim, ele é uma criança! Tudo o faz rir e só quer brincar, na vida. Não se interessa pelos problemas sérios. Não vês as brincadeiras que ele tem? Tudo lhe serve para brincar!




- Deixa-o ser assim... 

Sabia bem o que o Ouricinho adorava divertir-se. E fazia ele muito bem!


- Tu também és jovem, Poeta! Não te deixes levar pelas coisas sérias da vida! O que te faz falta? Não és feliz aqui em casa?

Agitou-se todo, cheio de uma indignação sincera.
- A vossa casa é a minha felicidade absoluta!


Pus-lhe a mão no ombro, com ternura. Fiz-lhe festinhas na cabeça, comovida.

- Esta é a tua casa, Ratinho! E terás sempre aqui o teu lugar!

Vi uma lágrima no olhinho dele. Deu um suspiro de alívio, daqueles grandes que ele gosta  de dar.


-Bem, então posso ficar descansado? A crise ainda não chegou cá? Obrigada pela nossa conversa. Estava muito angustiado, sabes? Eu gosto muito de vocês...


- Eu sei, Ratinho, eu sei. Não deves agradecer nada. Foi muito bom para mim falar contigo.

- Anda cá, está a vir o sol!
Era o Ouricinho, sentinela do tempo.


- Chamas a isto sol?, perguntou o Ratinho, que foi logo ter com eles, a protestar. Julgas que estás na praia?






- É sol! Eu sei que vem aí o sol!

- Isto não é nada..., contrariou o Ratinho. Não vês como está o nosso jardim com tudo queimado pela geada. Tudo caído!  As roseiras não têm flores, nem folhas! Qual sol!


Ia começar uma discussão... Decidi ir para a sala e deixá-los!




- Não me interessa, é sol! É sol!, teimava o Ouricinho, de mão dada com a gatinha.

E eu ia pensando que o Ouricinho é que fazia bem em viver o instante insubstituível, o momento, o átimo, o respiro de cada dia...


9 comentários:

  1. Que maravilha!
    E tantas verdades nestas histórias! São personagens reais estes bichinhos! Adoro-os!

    Este tempo de chuva, de crise, angustia o mais optimista.
    Mas parece que uma boa conversa tudo esclarece! Não há como conversar, para sossegar os pessimistas, os irrequietos.

    Há aqui algumas fotos do ouricinho que são o máximo!
    Enfim, adorei esta história, que matou as saudades de personagens que vieram para ficar: eles e a Mafalda, são os meus heróis preferidos!

    Um beijinho grande e obrigada por mais uma história!

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  2. Ó Isabel, foi por ti que escrevi esta história! Beijinhos e boa semana!

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  3. Muito engraçado.
    Por certo, que perfume usas?...
    Feliz semana!
    Beijotes

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    1. Ah, perfumes... Bem, uso Aromatics sempre, Un Jardin sur le Nil (Hermès) no Verão e Ivoire de Balmain nos dias especiais, quero dizer: quando me apetece!...Usei Miss Dior, como tu, agora menos . & etc
      Beijinhos, gostei da música

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  4. São conversas sérias de brincar. Emocionam, comovem e fazem sorrir.
    Obrigada, Maria João
    Beijinhos

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    1. A vida é feita de histórias séria de brincar, querida Luísa e tu sabe-lo bem... bjs e aparece por cá!

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  5. Ficção e realidade

    sempre de braços dados
    Belo texto

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  6. É o tempo, a dita crise,... andamos todos tristonhos, preocupados,... à espera que o sol surja no horizonte! Tal facto não passa despercebido aos nossos amiguinhos. E, o ratinho poeta, esse então, tem uma sensibilidade bem apurada! Sempre muito atento e perspicaz...
    Mas, como "quem tem amigos nunca está só...", estamos todos aqui para partilhar um bocadinho de calor humano, de sonhos, angústias...

    Beijinhos.:))

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