“Sons.
Som do
vento, reboado, manso, grave, contínuo.
Passos
lentos, leves..."
Irene Lisboa/ João Falco, "Outono havias de vir"
Claude Monet
Apoiava a cabeça na mão, de olhar perdido nas chamas. O livro de poesias caíra-lhe do colo e ali estava no chão, aberto na página que lia.
Remexia as brasas da lareira com a velha tenaz ou com a pá de ferro que servira tantas vezes para queimar o leite de creme, o creme brûlé da minha infância.
Remexia as brasas da lareira com a velha tenaz ou com a pá de ferro que servira tantas vezes para queimar o leite de creme, o creme brûlé da minha infância.
Sentiria ela o cheiro do açúcar queimado de outros tempos?
Ouviria, como dantes, o ruído da pá ardente sobre o creme de gemas bem amarelo - que logo virava
cor de caramelo?
O que pensava, nesses momentos de silêncio, absorta e com um
ligeiro sorriso nos lábios, a minha mãe?
Parecia-me ver-lhe os olhos brilhantes. Chorava? A
minha mãe eu nunca a vi chorar. Era uma mulher corajosa.
Lembro, no entanto, os gritos de desespero quando voltou à Serra, depois de o meu pai morrer.
Vínhamos do cemitério e não esqueço o olhar de quase ódio que lançou em seu redor. Como se renegasse aquele espaço.
Pressentiria ela a solidão que ia ser a sua? Calara-se
depois, pálida, num espanto silencioso.
Teria medo?
Não, ela era uma mulher forte.
Carlos Schawbe, A morte do coveiro
Teria medo?
Não, ela era uma mulher forte.
Frederico Faruffini (1831-1869), "A leitora"
Depois... Bem, depois as chamas, o vento a zunir, no Inverno, e o sussurrar das folhas dos salgueiros, na Primavera, fizeram-lhe companhia. E os livros empilhavam-se à volta dela, desarrumados.
- Voltei a decorar poesias. Não quero perder a memória.
Poucos dias antes de morrer, estávamos as duas no quarto, quis levantar-se e levou-me pelo braço, até à janela.
Apontou o céu e as árvores, altas e esguias, em frente da casa.
- Olha os salgueiros tão bonitos. Não gostas? E a magnólia!...
Eu gostava. Acrescentou, com um ar que me pareceu tranquilo, quase feliz.
- Mandei-os plantar eu. Não queriam. Porque os salgueiros iam roubar a água ao resto do jardim...
Sorriu.
- Não me importei. Sabia que os salgueiros se desenvolvem facilmente. E eu queria ver as minhas árvores crescer depressa!...E agora vão ficar por cá.
- Voltei a decorar poesias. Não quero perder a memória.
Poucos dias antes de morrer, estávamos as duas no quarto, quis levantar-se e levou-me pelo braço, até à janela.
Apontou o céu e as árvores, altas e esguias, em frente da casa.
- Olha os salgueiros tão bonitos. Não gostas? E a magnólia!...
Eu gostava. Acrescentou, com um ar que me pareceu tranquilo, quase feliz.
- Mandei-os plantar eu. Não queriam. Porque os salgueiros iam roubar a água ao resto do jardim...
Sorriu.
- Não me importei. Sabia que os salgueiros se desenvolvem facilmente. E eu queria ver as minhas árvores crescer depressa!...E agora vão ficar por cá.
"Com passos lentos,
leves, meditativos, atravesso
eu a mata.”
Estes versos melancólicos de Irene Lisboa, neste dia de Outono suave, lembraram-me a sua solidão e a sua força, o seu amor ao campo e à natureza, numa certa forma de paganismo estóico.
Os versos são de Irene Lisboa/ João Falco, "Outono havias de vir" (1937)
Lindo! Gostei imenso! Um abraço Amigo, Raul
ResponderEliminarQuerida Maria João,
ResponderEliminarQue homenagem mais linda. Tudo tranquilo, mesmo as passagens menos satisfeitas de sua mãe.
Aos salgueiros que deixam a memória da mãe na folhagem que fala.
Beijinho. :))
É lindo o que escreveu.
ResponderEliminarA sua mãe além de ser forte era também uma senhora muito bonita.
Gostei muito da penúltima fotografia.
Um beijinho grande!
Era uma mulher forte, e sensível, e bela.
ResponderEliminarA minha também era as tres coisas, no entanto foi com o meu pai que eu tive uma grande cumplicidade. Há coisas que não se podem explicar, simplesmente acontecem.
Todas as ilustrações são magníficas!
Beijos
Sim, é verdade aquilo que tão belamente recordaste. Um beijo.
ResponderEliminarLembrei o sorriso da sua mãe, tão bonito. A ternura nos olhos dela quando olhava o seu pai, as conversas de ambos sobre as viagens que fizeram, a música de que ambos gostavam, um quarto na casa da serra que ela pintou para os netos. Que sorte tive em poder conviver com eles um bocadinho, que bom que é recordar.
ResponderEliminarObrigada, Isabel! Sinto que era amiga deles e isso deixa-me feliz! UM beijo grande, minha conterrânea amiga!
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