segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Uma mulher forte...

“Sons.
Som do vento, reboado, manso, grave, contínuo.
Passos lentos, leves..."
Irene Lisboa/ João Falco, "Outono havias de vir"


Claude Monet

Apoiava a cabeça na mão, de olhar perdido nas chamas. O livro de poesias caíra-lhe do colo e ali estava no chão, aberto na página que lia.

Remexia as brasas da lareira com a velha tenaz ou com a pá de ferro que servira tantas vezes para queimar o leite de creme, o creme brûlé da minha infância.

Sentiria ela o cheiro do açúcar queimado de outros tempos? Ouviria, como dantes, o ruído da pá ardente sobre o creme de gemas bem amarelo - que logo virava cor de caramelo?

O que pensava, nesses momentos de silêncio, absorta e com um ligeiro sorriso nos lábios,  a minha mãe?


Parecia-me ver-lhe os olhos brilhantes. Chorava? A minha mãe eu nunca a vi chorar. Era uma mulher corajosa.

Lembro, no entanto, os gritos de desespero quando voltou à Serra, depois de o meu pai morrer.

Vínhamos do cemitério e não esqueço o olhar de quase ódio que lançou em seu redor. Como se renegasse aquele espaço.

Pressentiria ela a solidão que ia ser a sua? Calara-se depois, pálida, num espanto silencioso. 
Carlos Schawbe, A morte do coveiro

Teria medo?
Não, ela era uma mulher forte.


Frederico Faruffini (1831-1869), "A leitora"

Depois... Bem, depois as chamas, o vento a zunir, no Inverno, e o sussurrar das folhas dos salgueiros, na Primavera, fizeram-lhe companhia. E os livros empilhavam-se à volta dela, desarrumados. 

- Voltei a decorar poesias. Não quero perder a memória. 

Poucos dias antes de morrer, estávamos as duas no quarto, quis levantar-se e levou-me pelo braço, até à janela. 
Apontou o céu e as árvores, altas e esguias, em frente da casa.



- Olha os salgueiros tão bonitos. Não gostas? E a magnólia!...

Eu gostava. Acrescentou, com um ar que me pareceu tranquilo, quase feliz.

- Mandei-os plantar eu. Não queriam. Porque os salgueiros iam roubar a água ao resto do jardim... 

Sorriu.

- Não me importei. Sabia que os salgueiros se desenvolvem facilmente. E eu queria ver as minhas árvores crescer depressa!...E agora vão ficar por cá.

Era uma mulher forte a minha mãe. 


"Com passos lentos,
leves, meditativos, atravesso
eu a mata.” 

fotografia cedida pelo amigo Raul A.M. (que era muito amigo da minha mãe)

Estes versos melancólicos de Irene Lisboa, neste dia de Outono suave, lembraram-me a sua solidão e a sua força, o seu amor ao campo e à natureza, numa certa forma de paganismo estóico.


Os versos são de Irene Lisboa/ João Falco, "Outono havias de vir" (1937)

7 comentários:

  1. Lindo! Gostei imenso! Um abraço Amigo, Raul

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  2. Querida Maria João,
    Que homenagem mais linda. Tudo tranquilo, mesmo as passagens menos satisfeitas de sua mãe.
    Aos salgueiros que deixam a memória da mãe na folhagem que fala.
    Beijinho. :))

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  3. É lindo o que escreveu.
    A sua mãe além de ser forte era também uma senhora muito bonita.
    Gostei muito da penúltima fotografia.
    Um beijinho grande!

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  4. Era uma mulher forte, e sensível, e bela.
    A minha também era as tres coisas, no entanto foi com o meu pai que eu tive uma grande cumplicidade. Há coisas que não se podem explicar, simplesmente acontecem.
    Todas as ilustrações são magníficas!
    Beijos

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  5. Sim, é verdade aquilo que tão belamente recordaste. Um beijo.

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  6. Lembrei o sorriso da sua mãe, tão bonito. A ternura nos olhos dela quando olhava o seu pai, as conversas de ambos sobre as viagens que fizeram, a música de que ambos gostavam, um quarto na casa da serra que ela pintou para os netos. Que sorte tive em poder conviver com eles um bocadinho, que bom que é recordar.

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    1. Obrigada, Isabel! Sinto que era amiga deles e isso deixa-me feliz! UM beijo grande, minha conterrânea amiga!

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