quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Um escritor, um livro: “Os lugares traiçoeiros”, de Tana French



"Os lugares traiçoeiros" (Faithful Place, 2010) é um livro que fala da dificuldade de viver. Do modo como o problema económico, com a sua carga de miséria,  de humilhações, desadaptação e indecisão dos valores, se integra na vida das pessoasE como tudo isso pode desintegrar uma família.



A tradução portuguesa é Sombras do Passado (Livraria Civilização Editora, 2011) brasileira do romance intitula-se "O passado é um lugar".



Poderão dizer-me: “ah, isso toda a gente sabe... Não vale a pena estar sempre a bater na mesma tecla!”
O diabinho que temos cá dentro e nos quer levar a desistir de nós e da nossa consciência, para nos facilitar a vida, não se cala: “Deixa lá...” Mas eu insisto e quero falar!

Por que motivo trago um escritor policial para falar do mal de viver da miséria? Das vidas perdidas? Dos ambientes sórdidos? Das falsidades? Das relações estragadas? Do medo? Do cansaço? Do pasmo? Da desilusão?

Porque de tudo isso fala Tana French em “Faithful Place”. 


Não é raro que os escritores da chamada “série noire” se interessem pela problemática social. Basta lembrar como Dashiell Hammett chama a atenção para os pequenos grandes crimes da sociedade. Como fala da selva que são as cidades, as máfias que proliferam. 
O que é o romance  Red Harvest ("Ceifa Vermelha", e "Colheita Sangrenta", na tradução portuguesa, Seara Vermelha, no Brasil) se não uma crítica feroz a um sistema (que continua a vingar, infelizmente) de corrupção, de desfasamento, de desagregação? 

"Poisonville, cidade de gangs, quadrilhas de assaltantes que a põem em putrefacção". A cidade Personville passa a chamar-se num trocadilho Poisonville (poison/veneno). Uma cidade envenenada.




É quando “o vaso veneziano cai na rua”, diz Raymond Chandler (The Simple Art of murder) a propósito dos livros de Hammett.





Tana French fala da solidão e da pobreza, do abandono de adolescentes e jovens que crescem nas ruas sombrias de Dublin. Dos pais desempregados, das mães que se sacrificam de manhã à noite, que se angustiam, que sofrem. Para ela contam muito os sentimentos, as ligações afectivas - para o bem e para o mal- e os laços com os lugares. 


imagem da Dublin pobre, foto de Tony Linck

Jovens que se juntam em grupos, se encostam, frequentam os "pubs" e que bebem de mais. Que gritam, protestam e se batem por um nada. E que matam.


fotografia de Tony Lincks


É um livro duro que me chocou mais do que os anteriores (A Semelhança e Desaparecidos), ao ponto de o largar a meio. Peguei-lhe, outra vez, com um olhar diferente, e li-o de um fôlego até ao fim. 
No fundo, porque Tana French escreve bem, porque é uma escritora séria, porque fala  daquilo que magoa -que eu não queria ler.


De um livro (para além do puro prazer de o ler) deve tirar-se algo. Um ensinamento, uma dúvida que se esclarece, um desejo de emendar alguma coisa.

O que tirei deste? É difícil dizer, só sei que a leitura valeu a pena. Porque aprendi mais sobre os mundos e as pessoas cujas vidas ignoro, dos quais nunca fiz parte por força do acaso. Que me aparecem "desfocadas"? 

um lugar algures por aqui perto


Talvez porque pude sentir-me mais próxima de problemas que a priori recusava?

Frustração é a palavra chave, diria: e a decepção, consequente, das  ilusões perdidas, da destruição dos sonhos. O desejo da fuga, de largar tudo, de deixar para trás a vida sombria e ir tentar uma nova vida ao sol,  longe, bem longe. Onde as luzes brilhem, onde o rio de Dublin tenha outras cores...




Longe dali... O “Ali” é o das ruas molhadas e sujas de um bairro pobre de Dublin, um dos Liberties (*). 

Bairros e gentes de que tão bem falou James Joyce na sua obra-prima, os contos de  Dubliner's (Gentes de Dublin).

mapa de Dublin, 1610

Decepção ou engano? O sentimento de terem sido defraudados?), frustração e, logo, inveja, ódio. Não há futuro, nada os espera lá à frente. Nada é dado, tudo é arrancado, sente-se ao longo das páginas. Sonham com um futuro que nunca terão, frente a muitas canecas de cerveja.


Picasso, Jamie Sabartes

Picasso, Almoço frugal


A luta é selvagem e tudo arranca na passagem. Uma família, uma rua, uma casa, muitos irmãos, muita pobreza. Com tudo o que a pobreza pode traz : a educação difícil, a impossibilidade de continuar os estudos.


Frank é hoje um polícia, um jovem “infiltrado” nos gangs da droga e da delinquência vária, fugiu desse meio, dessa casa, dessa rua molhada e suja. Passaram vinte anos e hoje tem uma vida limpa, um emprego respeitável, uma casa numa rua cheia de sol,  com jardins e passeios e parques infantis onde leva a filhinha Holly que adora.


Longe, ficou o pai bêbado a toda a hora, os murros na mãe, os gritos desta, os maus tratos que ele e os irmãos sofriam. Coisas que quis esquecer para todo o sempre!


Picasso, Mulher com xaile

Os irmão mais velhos, Shay e Melly, os protectores, fazem o que podem para “salvar” os mais miúdos - ele, Francis, o pequeno Kevin e a irmã, Jackie- das coças diárias - e do horror. Escondem-nos  das fúrias do pai deixam os estudos e vão trabalhar - para eles, os mais novos, poderem estudar. 


Picasso, Mulheres num bar

Crescem. Frequentam os "pubs", apaixonam-se.Os namoros não têm futuro e o casamento para as jovens do bairro significa poder "sair de casa"...

Explica French numa entrevista:

"Com os Mackeys, a coisa crucial que eu queria dar era o sentido da família profundíssimo, enraizado sobretudo naquele específico lugar. A família Mackey vivia há gerações em Faithful Place: as suas personalidades, as acções e as vidas foram “formadas” durante séculos pelas histórias desta rua. 


Picasso, Mulher

Picasso, Abraço

(...)Talvez me interessasse ainda mais por eu, desde muito cedo, ter viajado e sentir-me sem raízes. Como leitora e como escritora sempre me interessaram as personagens misteriosas, personagens que tinha de explorar e descobrir. Até porque penso que um escritor policial tem de  escolher e tentar compreender caracteres que lhe sejam estranhos. De facto um desses personagens é alguém que matou, é um assassino (...) coisa que, em princípio  o autor não foi, nem viveu. Por isso uma das primeiras coisas que pensei foi agarrar-me à ideia de me colar (stick) ao que se sabe mas confiarmos na imaginação e na empatia."



Defendem a família, a imagem dela, como um clã mafioso o faria. Shay dissera, um dia: “Morrer por alguma coisa? Só pela família...” E dedica a vida a proteger a mãe.

Picasso, Jovem Mulher

A omertà é obrigatória: contra a família não se faz nem se diz nada! Mas o ressentimento, que às vezes fica, vai roendo, destruindo...

De repente, tudo na vida de Frank Mackey é posto em questão. Brutalmente, vinte anos depois, o passado volta, com a descoberta de um corpo e de uma mala. 

Perto de Faithful Place, no nº 18 da rua, num prédio abandonado há décadas que é deitado abaixo, é encontrado o corpo da jovem Rosy, ou o que resta dela: uns ossos desfeitos, uns restos de roupas a desfazerem-se, e pouco mais. 


Renoir, Jovem a pentear-se


Rosy era a namorada da juventude, a bela e corajosa Rosy, de cabelos cor de fogo, com quem combinara fugir. E que nunca veio ao encontro dele. Francis parte sozinho para Inglaterra, convencido de que ela não quisera partir com ele.
Afinal alguém a impedira de o fazer. Rosy Daly fora assassinada, nessa noite mesmo.

Todos os "intervenientes" da história que volta do passado pertencem a essa camada social desfavorecida de que falei. 

Assim, pensa Frank, todos - os pais, irmãos das duas famílias, os amigos e amigas – todos podem ter sido o assassino.  Matar Rosy? Mas por quê?! 

A verdade é que todos são suspeitos. A começar por Francis! 
Vale a pena ler o livro!

* * *

Tana French ensaiou-se como actriz no Trinity College de Dublin e trabalhou no teatro e na dobragem de filmes. O seu 1º livro ganhou um Mystery Writers of America Edgar.

Outros dados e outros posts sobre a escritora...





2 comentários:

  1. Lembro-me de ter falado da autora, fui reler os post que indica e lá estão os meus comentários.
    E continuo a pensar que deve ser uma escritora interessante. Quem me dera ter mais tempo para ler! É um pouco angustiante querer ler tanta coisa, mas não conseguir atender a tudo.

    Adorei o post, que consegue sempre tornar muito mais interessante, com as pinturas que coloca!

    Um beijinho grande :)

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