segunda-feira, 2 de junho de 2014

Da leitura e dos livros...

Virginia Woolf e "L'Art du Roman" (1)…


Virginia Woolf, pintada pela irmã, Vanessa Bell (pormenor)

Sempre bom aprender com os livros e com os escritores...
Desta vez volto a Virginia Woolf, que admiro muito, pela sua inteligência, sensibilidade e pelo espírito aberto e livre.

Woolf nasce em 1882 e suicida-se em 1941. Tem 59 anos. Em tempos falei dela aqui no blog (*).

aos 30 anos, pintada pela irmã, Vanessa Bell

O livro A Arte do Romance, é uma colectânea de ensaios publicadoa com o nome The Common Reader (2). Está dividido em vários capítulos, cada um com a sua especificidade. Nele, leva-nos a pensar (livremente), dando apenas uma (sua) sugestão.

Os títulos mostram a variedade e o interesse dos assuntos que escolhe tratar: "O romance moderno"; "O ponto de vista russo; "O que impressiona um contemporâneo"; "A ponte estreita  da arte"; "As mulheres e o romance"; "As etapas do romance"; "Como ler um livro?"; "Carta a um jovem poeta" são alguns deles.


Woolf considera-se um  leitor vulgar, um "common reader" (3) de que falava o Dr. Johnson, como tantos anónimos que amam ler. Ela é alguém que ama ler e para quem os livros são "uma finalidade em si próprios”...


Alguém que lê "para seu próprio prazer antes de pensar em dar a conhecer aos outros ou para corrigir as opiniões dos outros."


Rose Cell, a tradutora para francês, na Introdução do livro a que me refiro, escreve: "Não podemos separar Virginia Woolf crítica da Virginia Woolf escritora. Não é uma crítica profissional... Ainda bem! Nunca a sua crítica é tão penetrante como quando a lemos como uma página de romance. (...) Não tem doutrinas, nem teorias, mas o seu sentido agudo dos valores exprime-se em imagens, o que é o melhor meio de comunicar com o leitor.” (op. cit. Introdução, p.8)

O primeiro  capítulo do livro intitula-se “O Romance Moderno” e nele preocupa-se exactamente com o que é "moderno". Fala do (então) jovem Joyce que admira, como uma "novidade" que lhe interessa. 


 James Joyce, 1939

"Registemos os átomos tal como eles caem; na ordem em que caem; Tracemos -por mais fragmentário e incoerente que nos pareça- o desenho que cada espectáculo, cada incidente, imprime na nossa consciência". ("O romance moderno", 1919,op. cit. p. 16)

O átomo que passa, ou o "attimo", o momento: o "fluir da consciência", pois, que lhe vai interessar.
Virginia Woolf, por Gisèle Freund


E termina :
"A 'substância própria do romance' não existe. Tudo é a substância própria do romance, todo o sentimento, todo o pensamento; toda a qualidade do intelecto ou da alma nos serve; nenhuma percepção se deve afastar." (op. cit. p. 20)


Virginia Woolf (Vanessa Bell, 1912)

Quem escreve, deve escolher dentro de si, dentro da sua experiência o que o “tocou”, o que “viu”, o que "viveu" intensamente, e o que quer comunicar a outro ser humano. Tudo pode, pois, se substância, desde que seja o seu modo pessoal de sentir  !


E lembro o escritor Isaac Bashevis Singer (1902-1991), Prémio Nobel de Literatura de 1978, dizer isto mais ou menos: cada um tem as suas histórias para contar porque cada um tem a sua maneira própria de “falar”. E de tratar os “mesmos assuntos”, de modo diferente, se tiver a sua mundividência própria, a sua voz, o seu tom pessoal.


Não está longe do que diz Wolf :

Todos os métodos (e assuntos) são bons, cada método serve desde que expresse o que queremos expressar – se formos escritores- ou que nos aproxime das intenções do escritor, se formos leitores!" (p.17)


E diz mais adiante: “O problema que se põe ao escritor de hoje (estamos em 1919!), e que se pôs de certeza aos escritores do passado, é inventar os meios de exprimir livremente o que se quer exprimir. Deve ter a coragem de dizer que aquilo que lhe interessa escrever já não é “isto”, mas sim “aquilo”; e será apenas a partir “daquilo” que irá construir a sua obra!” (p.18)



Mulher maravilhoosa! Pensa e ajuda-nos a pensar: fala-nos de tantas coisas! De tantos escritores: de Walter Scott a Jane Austen, de Dickens a George Eliot, de Henry James a Tolstoï e Tchekhov, das irmãs Brontë a Melville e Proust ou Thomas Hardy!



Escrever é dar conta da diversidade, da dúvida, do conflito da vida que assume tantas faces. Tal como as pessoas, os nossos semelhantes...

"(…) a capacidade do espírito humano é ilimitada, a vida é infinitamente bela e repugnante, os nossos semelhantes são adoráveis e nojentos, a ciência e a religião têm destruído a fé (…) A vida humana não dura se não um segundo. (…) É com tudo isso, é nessa atmosfera de dúvida e de conflito que os romancistas hoje devem criar.” (in A porta estreita da Arte, artigo de 1927, op. Cit. p. 67)

No último capítulo, intitulado “A torre inclinada”, Virginia Woolf escreve, dirigindo-se aos  "aprendizes de escritores" fala da importância das palavras:

"Um escritor, mais do que qualquer outro artista tem necessidade de ser crítico porque as palavras são tão vulgares, tão familiares que temos que as 'tamisar', passar pelo filtro, se quisermos que elas durem.

E aconselhava aos "aprendizes de escritores":

Escrevam todos os dias, escrevam livremente; mas comparando sempre o que escreverem com o que os grandes escritores escreveram. É humilhante, mas é essencial. Se quisermos conservar, criar, é o único meio. (...) vamos já buscar os livros à primeira biblioteca pública; lendo indistintamente, simultaneamente poemas, peças de teatro, romances, histórias, biografias, os antigos e os modernos. Temos de provar todos antes de escolhermos. Cada um de nós tem um apetite diferente que deve encontrar sozinho o alimento que lhe convém. 
E não nos afastemos, por timidez, dos grandes, dos reis. (,...) Seria um crime, aos olhos de Ésquilo ou Shakespeare, de Virgílio ou Dante, os quais -se pudessem falar- diriam: não nos deixem ficar para os que usam fatiotas de literatos. Lê-me, lê-me tu mesmo! (...) Claro que vamos pisar muitas flores, estragar muita relva, como num parque. Mas lembremos sempre o conselho de um Vitoriano ilustre (4) que também gostava de andar pelos campos: ‘Sempre que virem um letreiro a dizer proibido passar, avancem logo!’” (p.203)

A literatura não pertence só a alguns, a literatura é um bem público!

E os livros, afinal, como se lêem? Para que se lêem? Porquê? Simples! Porque nos dão prazer!

Quem é que lê um livro como uma finalidade em si –por mais desejável que isso possa ser? Não existem coisas que nós fazemos apenas porque são boas em si mesma? E não há prazeres que têm o seu fim em si? E a leitura não fará parte deles? 


De Chirico

Sonho às vezes, pelo menos sei que já sonhei, que, no amanhecer do Dia do Julgamento Final, quando os grandes conquistadores, os grandes legisladores, os grandes homens de estado forem receber a sua recompensa, e ter os seus nomes gravados, para sempre, no mármore imortal – o Todo Poderoso, quando nos vir chegar, com os nosso livros debaixo do braço, virar-se-á para Pedro e dirá, não sem uma certa inveja: 
“Vês? Estes aqui são os que não precisam de recompensa. A estes não temos nada para oferecer. Eles amaram a leitura.” (2)

E hoje fico por aqui… E tenho esperança que, um dia, num paraíso qualquer, nos encontraremos com um livro debaixo do braço: nós e ela!

(*)
(1) Virginia Woolf, L’ Art du Roman, Aux Editions du Seuil, França, 1963

(2) “The Common Reader é uma colecção de ensaios, publicados em 2 séries: a 1ª em 1925 e a 2ª em 1932 (The Second Common Reader). Muitos desses ensaios apareceram, originalmente, em publicações no Times Literary Supplement, The Nation, ou Athenaeum (...). O título indica a intenção da escritora de escrever para o “leitor comum”, que lê para seu prazer pessoal.” (in Enciclopédia Britânica online)

(3)  The common reader”, como diz Dr. Johnson, "é diferente do crítico e do estudioso. É menos educado, e a natureza não o favoreceu tão generosamente. Lê pelo prazer de ler mais do que para ensinar seja o que for aos outros, ou corrigir as suas opiniões. Acima de tudo, é guiado por um instinto que o leva a criar para si só, sem lhe interessar os fins a que poderia chegar...” (Enciclopedia Britânica)

(4) De uma conferência, numa escola – excerto de The Second Common Reader



Interessante biografia de Virginia Woolf:

Sobre Isaac Bashevis Singer:

6 comentários:

  1. Gosto muito desta escritora. Li Orlando e Mrs Dalloway, pela ordem inversa. Gostei mais de Orlando, não sei dizer porquê.
    Um registo maravilhoso.
    Beijinho.:))

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    1. Obrigada, Ana! É uma escritora muito boa e era uma "crítica" de literatura especial, porque tinha a sensibilidade e a empatia da ...escritora!
      Um beijo

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  2. Mais um post fantástico!
    E lá vou eu a correr à minha estante ver o que tenho, recordar o que já li...

    Vi o filme "As horas". Gostei muito.

    (Espreitei o seu sofá...essa espécie de escritório...para espiolhar os livros que por aí tem! )

    Um beijinho grande :)

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  3. Hoje está mais arrumado o escritório, já comecei a arrumar alguns livros...para pôr outros! beijinhos

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  4. Este
    é um espaço
    de utilidade pública

    Bj

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  5. Só agora tenho um pouco de sossego para vir comentar como quero este tema tão interessante. Tenho várias notas, e deixo algumas, em vez de pôr-me a filosofar por minha conta, como tanto faço...
    "A leitura é como o alimento, o proveito não está em proporção ao que se come, senão ao que se digere. Devem cuidar-se duas coisas: escolher bem os livros, e lê-los bem." Jaime Balmes.
    "Uma coisa é - como fez Andy Warhol_ tomar uma lata de conserva e convertê-la em arte, e outra muito diferente é tomar a arte e enlatá-la" ... Martin Cristal
    Queria continuar, mas acabou-se o meu tempo agora.
    Um bom post, quando te arrancas te arrancas, hahaha...
    Beijinhos grandes

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