quarta-feira, 20 de maio de 2009

Infância: a primeira separação






Lembro-me bem do dia em que me separaram da minha irmã, devia eu ter cinco anos, e ela era um ano mais velha. Adoecera com tosse convulsa e, para não ser contagiada, o meu pai achou melhor que eu fosse para casa duma tia da minha mãe.
Ela ficou, ao cimo das escadas, a ver-me partir. Queria descer, vir ter comigo e gritava. Recordo o seu bibe branco, enfeitado de folhos nos ombros, a camisola vermelha de lã angorá, as botas curtas e as meias de renda até ao joelho. Eu olhava-a, cá de baixo, e choramingava, nada me consolava de a deixar, e o grande laço de fita escocesa, que me segurava os cabelos, caía desmanchado para um lado.
Tinha sido um Inverno muito frio o desse ano. Dias antes, debruçada à janela alta da nossa casa amarela, tinha visto sair os meus pais para irem ao cinema -o velho Cine-Teatro com o seu tecto pintado de azul, céu no qual corriam figuras cheias de grinaldas de flores; com as frisas e os camarotes forrados de veludo vermelho escuro, e o rebordo suave do parapeito onde encostava a cara para espreitar para a plateia e descobrir o meu avô, que me dizia adeus com a mão.
À janela, nessa noite, vira o meu pai abrir o guarda-chuva e nele pousarem devagar pequenos flocos brancos que logo se desfaziam em gotas que escorregavam pela seda preta até ao chão brilhante, onde uma mancha esbranquiçada, da neve que já prendera, começava a formar-se.
É a única recordação de neve da minha infância.
A noite em que me levaram era fria também. Havia três primas já crescidas naquela casa estranha, que ficava ao fundo de uma rua estreita onde, ao anoitecer, passava um burro com duas bilhas de latão cheias de leite. Habituei-me a correr à janela para o ver, para me distrair, outras vezes, desinteressada, adivinhava, apenas, os cascos a escorregarem nas pedras redondas e polidas da rua.
Durante horas, as minhas primas penteavam-me, faziam e desfaziam-me as tranças, punham-me laços, vestiam-me vestidos com golas engomadas, às pintinhas de todas as cores que a minha mãe bordara. Brincavam comigo o dia inteiro para me tirarem daquela tristeza em que me deixara a ausência da minha irmã doente, dos meus pais, e da irmã pequenina que me olhara de olhos muito abertos quando me fora despedir.
Nesta casa, havia um gatinho que dormia ao fundo da minha cama e a quem eu dava leite num biberon de bonecas, das muitas bonecas de louça, velhas, com vestidos gastos e olhos de vidro parados. Havia também brinquedos de madeira que eram mesas e cadeiras e armários pintados com flores de várias cores e eu fazia casinhas com tudo aquilo.
Os dias passavam, lentos, e era à noite que eu mais pensava na minha casa onde sabia que o meu pai lia, debaixo da luz do candeeiro de vidrinhos verdes e brancos. Lia e sublinhava tudo e riscava os livros todos, deixando-me sempre espantada por ele poder riscar os livros e eu não...
À noite, lembrava-me disto tudo e ficava triste.
Não sei quantos dias passaram, perdera a noção do tempo, mas foi numa noite, depois do jantar, que ouvi tocar a campainha da porta.
Eu brincava, fazia uma “cantareira” com os brinquedos em cima de um sofá e começava a ter muito sono. Alguém foi abrir e, de repente, ao fundo do corredor, soaram uns passos rápidos que se aproximavam.
Virei-me para a porta da sala que se abria e larguei tudo: sabia que era o meu pai que me vinha buscar. Fizeram-me a mala a correr, eu não podia esperar mais.
E saímos os dois, na noite. Eu, com o meu casaco felpudo, um barrete de lã vermelha, que apertava debaixo do queixo, e as minhas botas grossas. O meu pai com um sobretudo comprido que o fazia parecer ainda mais alto, com o cachecol escuro e umas luvas de pele amarela.
Atravessámos o largo da Sé, deserto. Por detrás da igreja, a lua brilhava, linda, encoberta por nuvens cinzentas que, pouco a pouco, se desvaneceram. Eu sentia-me quentinha, com a minha mão pequenina na mão enorme do meu pai, a saltitar para poder acompanhar as suas largas passadas, feliz, a voltar para casa.

1 comentário:

  1. É tão bom voltar para casa quando ela nos protege... E quesaudades da mão do meu PAI! Como eu compreendo estas memórias...

    Beijinhos

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