O tio Mouzinho estava casado com a tia Zézinha, irmã da minha avó. Tinha estado na I Guerra, em França, com o batalhão português, e ensinava-nos as canções que os soldados cantavam nas trincheiras, ou quando marchavam em direcção ao inimigo (era assim que eu entendia...). Uma delas ainda recordo bem: era “La Madelon”! Devia ser um pouco atrevida para a época, falava de um cabaret e da bela Madelon que servia o vinho e dava alento aos soldados com a sua alegria e exuberância.
“ Nous en rêvons la nuit
nous y pensions le jour..."
A Madelon serve as bebidas e brinca, ouve as histórias que lhe contam e ri:
"Et chacun lui raconte une histoire
Chacun une histoire à sa façon..."
Ela ouve-os e deixa que a abracem, lhe passem a mão no rosto, lhe acariciem o queixo:
"La Madelon pour nous n’est pas sévère
quand on lui prend la taille ou le menton,
elle rit, c’est tout ce qu’elle sait faire...
Madelon, Madelon, Madelon!”
"La Madelon pour nous n’est pas sévère
quand on lui prend la taille ou le menton,
elle rit, c’est tout ce qu’elle sait faire...
Madelon, Madelon, Madelon!”
Quando um caporal lhe propõe casamento, ela responde, cândidamente:
"Pourquoi prendrais-je un homme
quand j'aime tout un bataillon?"
Sem perceber a língua nem o sentido do que ouvíamos, aprendemos a cantá-la e dávamos o nosso tom infantil à música quase militar.
A outra era uma canção melancólica, de despedida, cheia de romantismo, que ele cantava com a sua voz forte, que parecia sair do seu bigode farfalhudo e quase branco:
“Adeus, amor, que eu vou partir agora,
pr’a defender da pátria o pavilhão,
mas não te esqueças de quem por ti chora,
não dês a outros o teu coração...”
Era uma pessoa simples, afável e generosa e um grande companheiro do meu avô. Contava a tia Zézinha que o avô, aos princípios de casado, costumava sair à noite, indo de paródia com os amigos do tempo de solteiro. Um desses companheiros era o tio Mouzinho, apenas namorado dela que era, nessa altura, muito jovem.
Tudo era motivo para eles festejarem, irem comer fora, ou ao teatro -quando passava alguma revista em tournée. O meu avô foi também actor na companhia de teatro amadora da terra.
- Era uma espécie de teatro de vaudeville, dizia-nos ela. E o vosso avô -"o mano João", como ela lhe chamava- cantava muito bem.
Frequentavam o Cine-Teatro, conheciam as actrizes e os actores vindos da capital. Iam ao "Clube Republicano", onde também aí, o avô se apresentava em peças cómicas e musicais.
A minha avó, muito ciumenta, não gostava, enchia-se de "nervos" e ia com a tia Zézinha, que era mais nova e sobre quem tinha muita autoridade, espreitar o que faziam.
- Vestíamo-nos de “cocas”, com uma mantilha negra e um grande véu que nos cobria todas, para não nos conhecerem... Era o que dantes se usava, até no Carnaval!
Iam instalar-se no fundo de uma frisa, no teatro.
- As noites eram frias -contava a tia- e levávamos uma mantinha para nos aquecer e, às vezes, um franguinho assado, umas laranjas, uns biscoitos para ir petiscando...
Imaginava-as na escuridão: a minha avó de olhos bem abertos a ver se descobria o meu avô e a tia Zézinha, divertida e receosa, a espreitar para todos os lados.
- Eu espreitava, espreitava e, ao primeiro intervalo, arranjava uma desculpa para sair da frisa... Eu era muito amiga do mano João!
Corria os corredores para o ir avisar. Ia até aos bastidores, onde encontrava o meu avô, na conversa, de cigarro na mão, lenço de seda, encantador como sempre. Puxava-o pela manga:
- Tenha cuidado, mano João, que a Branca está ali...
Imitava a sua própria voz, e ria-se a contar-nos isto, batia com as palmas das mãos na mesa, dando grandes gargalhadas. Os olhos negros muito abertos brilhavam de alegria e malandrice.
"A história do teatro acabava bem, vá lá...", contava-nos a tia Zezinha. E acrescentava que, pouco a pouco, o meu avô -que adorava a avó-, perdeu o hábito das saídas até de madrugada, para a não descontentar.
A tia Zezinha era uma grande contadora de histórias e a sua figura boa e cheia de amor pela vida está ligada às recordações mais belas da minha infância.
Os tempos eram diferentes, faziam-se muitas festas em família, piqueniques no campo, burricadas, passeios em charrette pelos arredores de Portalegre, de volta à serra. Pelo Natal e pela Páscoa, reuniam-se todos em casa da tia Mariquinhas, a irmã mais nova da avó, ou, por vezes, em casa do tio Mouzinho, quando casaram.
Os jantares acabavam em longos desafios de canto entre os meus avós e ele. Lembro a minha avó, que tinha uma voz de soprano muito bonita, a cantar ao desafio com o avô.
Os tempos eram diferentes, faziam-se muitas festas em família, piqueniques no campo, burricadas, passeios em charrette pelos arredores de Portalegre, de volta à serra. Pelo Natal e pela Páscoa, reuniam-se todos em casa da tia Mariquinhas, a irmã mais nova da avó, ou, por vezes, em casa do tio Mouzinho, quando casaram.
Os jantares acabavam em longos desafios de canto entre os meus avós e ele. Lembro a minha avó, que tinha uma voz de soprano muito bonita, a cantar ao desafio com o avô.
Ele dizia:
"Ai, se eu pudesse dava-te tudo,
bons sapatos cetim e jóias,
um vestido todo em veludo,
automóveis e tipóias...”
E a avó respondia:
"Ai, meu Manecas, eu bem sabia
que o teu falar não tem bravatas,
Acredita que eu prezo mais
a amizade com que me tratas..."
Depois, em coro, os dois cantavam o refrão:
"Ai, vem junto a mim,
Dá-me o calor da tua mão,
Vem mimosa flor,
mimosa flor de amor,
ao coração.”
O tio Mouzinho, feliz, aplaudia, dizia “bravo! Bravo!”, abanando a cabeça. O avô sorria e preparava um dos seus enormes cigarros que pareciam charutos.
Contava-me o meu tio, anos mais tarde:
- Aquilo do cigarro era uma espécie de ritual...Tirava duas mortalhas do seu papel preferido, marca “zig-zag”, abria a bolsa onde guardava o tabaco, metia lá dois dedos...
Nós ouvíamos embasbacadas, como sempre que o tio falava porque ele nos contava histórias fantásticas da sua vida.
- Tabaco em rama, hã?! -explicava o meu tio-, não era qualquer tabaco que lhe servia. Depois, punha uma grande quantidade no meio do papel, enrolando-o de tal forma que parecia um charuto...
O avô fumava, bebiam o seu champanhe e a avó queixava-se porque a sua pele muito branca e sensível ficava logo cheia de manchas encarnadas:
- Basta uma pinguinha de champanhe e é isto... E eu que gosto tanto!
Foi nessas reuniões familiares que, muito anos mais tarde, o tio Mouzinho nos ensinou “La Madelon”.
O tio Mouzinho, feliz, aplaudia, dizia “bravo! Bravo!”, abanando a cabeça. O avô sorria e preparava um dos seus enormes cigarros que pareciam charutos.
Contava-me o meu tio, anos mais tarde:
- Aquilo do cigarro era uma espécie de ritual...Tirava duas mortalhas do seu papel preferido, marca “zig-zag”, abria a bolsa onde guardava o tabaco, metia lá dois dedos...
Nós ouvíamos embasbacadas, como sempre que o tio falava porque ele nos contava histórias fantásticas da sua vida.
- Tabaco em rama, hã?! -explicava o meu tio-, não era qualquer tabaco que lhe servia. Depois, punha uma grande quantidade no meio do papel, enrolando-o de tal forma que parecia um charuto...
O avô fumava, bebiam o seu champanhe e a avó queixava-se porque a sua pele muito branca e sensível ficava logo cheia de manchas encarnadas:
- Basta uma pinguinha de champanhe e é isto... E eu que gosto tanto!
Foi nessas reuniões familiares que, muito anos mais tarde, o tio Mouzinho nos ensinou “La Madelon”.
Lembro hoje tudo com saudade, e deixo-vos, no "youtube" acima, a canção e as imagens dos postais que enviavam os "poilus" (como ficaram conhecidos em França estes soldados), da I Guerra Mundial.
Basta fazer "click" para ouvir...
Basta fazer "click" para ouvir...
Fotos:
1. O meu avô jovem de 18, 20 anos
1. O meu avô jovem de 18, 20 anos
2. O meu avô aos 30 talvez, num fotografia tirada no "Clube Republicano"
3. video com a canção "La Madelon"
Já conhecia “La Madelon”, através das histórias da Casa Amarela. Mas adorei ouvi-la e relê-la. Tinha razão, minha amiga, ri com gosto e fiquei mais bem disposta.
ResponderEliminarUm beijinho