sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Os Olhos de Jade: capítulo 6





CAPÍTULO 6

A noite estava fria. Joan sentia-se gelada, não sabia o que dizer.
"Sim, ele tem razão, estavam perdidos...", pensava.
- Ouve, Gabriel, não quero agredir-te, não falemos mais nisso. Percebo que tem sido muito penoso para todos, não devemos magoar-nos... Por isso mesmo é que não podemos aceitar a morte dela. Como se fosse uma fatalidade, e ficar parados! Não sei por onde começar, claro, mas há-de existir uma pista! Tem de haver uma razão!
-Mas, qual?...
-Não notaste nada de estranho, nesses últimos dias? Pessoas que apareceram... ou cartas que chegaram?!
-Como queres que me lembre? Como posso saber o que é importante recordar? É absurdo...
Joan passou a mão pelos olhos, abanou a cabeça e suspirou:
-Tens razão, é absurdo... Nada disto tem sentido. O melhor é irmo-nos deitar, não vale a pena insistir... Estamos demasiado cansados. É inútil...
Calou-se. Parecia ouvir a música pela primeira vez. Virando-se para ele, exclamou:
-É linda esta música, Gabriel. Faz impressão pensar que está morta, magoa tanto... A mãe ainda tocava piano? Lembro-me tão bem de a ouvir quando era pequenina. Escondia-me detrás dos cortinados de renda, com os joelhos bem apertados contra o peito, parecia que me doía tudo.
Gabriel olhava para a lareira.
-Tens razão, talvez a atitude dela tivesse mudado...Tinha deixado de tocar. Agora é que reparo nisso...
Gabriel olhava para a lareira.
-Tens razão, talvez a atitude dela tivesse mudado...Tinha deixado de tocar. Agora é que reparo nisso. Andava preocupada, parecia triste, fechava-se no quarto, escrevia. Estava sempre com papéis à volta...
-E onde estão esses papéis? O que é que escrevia? A mãe mandou-me uma carta. Falava de uns papéis, de coisas “horríveis”, do passado...Tens ideia do que era? O passado... Talvez haja aí uma pista.
-Nunca me falou em papéis. Como é que vamos encontrar uma pista nos papéis? Se nem sabemos do que se trata! Não faço a menor ideia onde possam estar!
-Mas procuramos. No passado...
-No passado dela? Podes ter razão... Sim, pode ser. Preciso de tempo para pensar...
Calou-se, e depois acrescentou:
-E o Zurigo? Sabe mais do que a gente julga. A tua mãe estava sempre a falar com ele. De África, dos amigos, das noites iguais aos dias, das marés. Sei lá que mais! Nunca se cansavam de falar...
Serviu-se de outro whisky e continuou:
-Na noite em que a Abigail morreu, passei no quarto a dar-lhe as boas noite. Ele estava sentado na cadeira, ao lado da cama. E ficou ainda muito tempo.
Hesitou e acrescentou, como se recordasse de repente:
-Ela não se sentia bem, tinha febre, queixara-se de dores. O Zurigo trouxe-lhe um chá de ervas. O Dr. Smith tinha-lhe receitado umas cápsulas, mas ela adorava os chás que ele lhe fazia.
-E depois?
-Ouvi-o dizer, quando fechava a porta: “Prometo, prometo...” E chamou-lhe “mãezinha”, como fazia nos momentos sérios. Tu lembras-te...
-Sim, eu sei, eu sei... Levava a vida a dizer que ela era uma mãe e uma filha... “Hoje sou seu filho, amanhã sou seu pai...” Lembro-me tão bem desta frase. Não me tinhas contado! O que é que lhe estaria a prometer?
-Não sei...
-Não te lembras de mais nada?
-Assim de repente, não...
-A Alice falou num jantar. Disse que a mãe estava muito nervosa nesse dia. Quem é que veio jantar?
-Sim, houve um jantar. Ela é que decidiu de repente. Marcou tudo, fez os convites. Foi uns dois ou três dias antes de adoecer...
-Isso é importante. As tias falaram nesse jantar.
Gabriel continuou, devagar.
-Ao jantar já tinha febre, disse-o à mesa, lembro-me agora. Daí termos pensado que fosse paludismo... E depois.. Sim, nessa mesma noite o médico deu-lhe o tal remédio. A doença não durou muito tempo, aliás. Ainda me parece impossível...Quando a vi...
-Foste tu que a encontraste? Eu não sei nada...
-Sim... Todas as manhãs ia saber dela...
-Sim, Gabriel...Diz.
Joan olhava para ele, ansiosa.
-Tinha os cabelos espalhados sobre a cara, julguei que dormia...
Gabriel suspirou:
- Estava morta...
-Desculpa, foi com certeza um choque tremendo, mas para mim é importante falar nisto. Era a minha mãe... Gabriel, tem paciência, tens de fazer um esforço, mesmo que seja doloroso. Tem de haver uma coisa qualquer! Daí é que temos que partir...
-Talvez tenhas razão...
-Oh! Gabriel, Gabriel, como é difícil. Que tristeza tão grande...
-Sim, é muito difícil...
Ficaram calados um momento. Depois Joan levantou-se lentamente da cadeira e disse:
-Acabou tudo... Estou muito cansada.Vou-me deitar. Vê se descansas um pouco, também... Não devia ser injusta, no fundo gostavas tanto dela como nós, desculpa...Talvez ainda vamos a tempo de ser amigos...
-Sim...
-Tanta coisa que aconteceu! Não julgues que sou só uma céptica, uma egoísta... Tenho tido os meus problema como toda a gente... Foi bom conversar contigo...
Olhou para ele com tristeza, estendeu a mão, hesitando no gesto incompleto. Virou-se para sair mas, de repente, fixou o canto da lareira e perguntou:
-Onde é que foram descobrir este candeeiro?
Apontava para um candeeiro pequeno sobre a mesa baixa ao lado da lareira. A base era uma figura de bronze, arte nova, com um abat-jour de vidro fosco branco que desenhava uma cabeça de mulher em forma de flor, com os olhos de jade, rasgados e oblíquos, pelos quais se filtrava uma luz suave e difusa.
-Ideias da tua mãe...
Fixava atentamente o candeeiro.
-Gostava muito do jade, comprava anéis sempre que os via. Dizia que o David tinha olhos de jade...
Hesitou:
-Não sei se isto é jade ou só vidro coalhado da mesma cor.
-Sim, o meu pai tinha olhos verdes. Da cor do jade. Um dia explicaram-me que o jade pode ter várias tonalidades, chega a ser castanho. Sabias? Nem queria acreditar! Para mim o jade foi sempre verde! É considerado o símbolo da virtude, sabias?...
-Será...
Gabriel parecia distraído.
-É muito bonito o candeeiro. Não estava cá da última vez...
-Não posso jurar... A Abigail comprou-o numa loja de antiguidades em Londres.
Parou como se pensasse.
-Tens razão, é recente. Perguntei-lhe onde o comprou, não me respondeu e foi pô-lo nessa mesa. Acendia-o todas as noites e sentava-se no sofá em frente. Às vezes, via-a a olhar para ele.
-Por que seria?
- Não sei. Fechava-se dentro dela.
Joan aproximou-se e tentou pegar-lhe. Era um objecto pequeno, mas pesado.
“O brilho nos olhos de jade”. Pensou na carta da mãe.
-É estranho... A base é de bronze? É pesadíssimo!
-Nunca lhe peguei.
Joan suspirou e acabou por dizer baixinho:
-Tudo me parece esquisito, no fundo é só um candeeiro...
Pegou numa caixa de chocolates que estava na mesa e tirou um.
-Qualquer coisa doce... Queres, Gabriel?
-Oh! Não, Joan, nem lhes posso tocar, sou alérgico... A tua mãe é que adorava todo os tipos de chocolate, não resistia...
-Eu sei, sou como ela... Boa noite...
Antes de chegar à porta, virou-se:
-Gabriel, queria pedir-te se me emprestavas o carro. Gostava de dar umas voltas por aí, antes do Michael chegar. Talvez vá a Brighton para desanuviar...
-É como se fosse teu, usa-o à vontade, eu não precisar dele, começaram as férias do Natal...
-Que Natal... Até amanhã, Gabriel. Repousa.
-Boa noite. Obrigado por teres falado e por me teres ouvido. Talvez não seja tarde para sermos amigos...

Gabriel ficou sentado a olhar para as chamas, agitando o whisky no copo. As horas iam passando e o sono não chegava. Levantou-se, serviu-se de outra bebida e pôs-se a andar pela sala de um lado para o outro. Tinha rugas vincadas na testa e as sobrancelhas franzidas como se pensasse em qualquer coisa que lhe custava a compreeender.
-Procurar no passado?, perguntou a si próprio em voz alta.
Ia pensando:
"No passado, em África? No fim, estivemos todos lá!"
E continuva a pensar:
"E o David? O que terá acontecido ao David?...Ainda hoje não sei o que lhe aconteceu exactamente... Por onde andará? E os outros? O que saberão? Conhecemo-nos ali todos... O Travis e o Croft também lá estiveram. Como é que posso saber onde andam os papéis?!? Onde hei-de procurar? Nos papéis dela, claro, como sugeriu a Joan... Oh! Sim! A pasta de veludo!"
Lembrara-se da velha pasta de veludo cinzento onde Abigail guardava tudo.
"Era a sua memória, dizia ela. Continha velhas fotografias, contas, as cartas que recebia de David. Chegavam todos os meses, regularmente. Lembrava-se bem dos envelopes sempre iguais. Nunca lhe perguntara o que eram, mas vira escrito o nome David Brenner e uma direcção de Nova Iorque".
No quarto de Abigail encontrou o que procurava. Dirigiu-se ao escritório, sentou-se à secretária e, quando abriu a pasta de veludo, descobriu três cadernos cobertos com a caligrafia irregular de Abigail.
Começou a ler e não deu pelas horas passarem. Amanhecia quando se foi deitar.

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