segunda-feira, 21 de setembro de 2009

"Os Olhos de Jade": capítulo 7


"A imagem de Abigail, com os cabelos soltos... Coisas terríveis dizia Abigail na carta..."



CAPÍTULO 7


Batiam as nove da noite quando Alice chegou a Brighton. Stephen já estava em casa, viu o Mercedes arrumado no canto direito da garagem, como de costume, deixando o resto do espaço para ela.
“Geometricamente arrumado! É mesmo um maníaco! Só ele e o carro!”, pensou. “As horas que perde a olhar para dentro do capot!, a estudar os pormenores, como ele diz... Que parvoeira..."
Vira luz no escritório. Estremeceu sem saber porquê. Arrumou o Aston Martin de qualquer maneira.
“Será
medo?...” Stephen intimidara-a desde o primeiro momento e não conseguira libertar-se daquela sensação desagradável quando pensava que ele ia ficar irritado.
Ouvia o murmúrio do mar. Sempre gostara de ali viver, mas agora o ruído surdo que adivinhava ao longe assustava-a. Parecia-lhe sentir o piar angustiado das gaivotas.
“Por quê esta reacção depois de tantos anos? Como se me pudesse vir dele algum mal... Que estupidez a minha!”
Entrou em casa, subiu as escadas a correr enquanto estranhava:
“É tarde, o que estará ali a fazer a esta hora? Já devia ter jantado...”
Foi direita ao escritório dele, abriu a porta bruscamente entrou sem dizer nada, querendo mostrar-se natural. Tirou o casaco de peles, deitou-o para cima de uma cadeira, sacudiu a saia e foi sentar-se no sofá de couro preto, em frente da mesa dele, desafiando-o com o olhar.
Em cima da secretária estava espalhado um monte de folhas de papel. Pareceram-lhe cartas, amarelecidas pelo tempo.
Stephen levantou os olhos, tirou os óculos e pousou-os ao lado, afastando os papéis com a mão.
-Ah! Chegaste finalmente... Onde estiveste?
Perguntava, fingindo-se, como sempre, desinteressado.
-Estive em casa da Joan a tomar chá. Está muito em baixo, como calculas.Venho chocada! Pensa...
-É natural que esteja assim, não devia estar à espera que a mãe morresse -interrompeu ele-, A Abigail era nova e não estava doente. Bem, afinal até estava. O paludismo é uma doença que mata...
-Pois, o problema é que a Joan não acredita nessa história do paludismo. Pensa que a mãe foi assassinada... E eu ouvi os argumentos dela, com muita atenção. Impressionou-me tanto a conversa que fiquei cheia de dúvidas...
-Dúvidas? Que dúvidas?
-Quase concordei com ela. Foi o paludismo que a matou ...ou terá sido envenenada? Prometi ajudá-la a descobrir a verdade!
E Alice olhou para Stephen, a ver o efeito das suas palavras. Stephen pegou na filofax preta e pô-la em cima dos papéis, como se quisesse escondê-los. Parecia contrariado.
-Bem, acabei, por hoje. A verdade, dizes tu...Qual? De que verdade estás a falar?
-Da verdade única: o que aconteceu, realmente... Tu o que pensas?
-O que queres que eu pense? Assassinada? Envenenada!... Acho que está doida! Paranóias! Não me admira, a Joan foi sempre um pouco louca...

Parou, desviou o olhar e continuou:
-Ideias nunca lhe faltaram, levou a vida a fugir dum sítio para outro, de um curso para outro. Não parava em lado nenhum. Não é muito certa...
-Isso não prova que não tenha razão. E não concordo contigo! Louca não é, inconstante, sim, talvez.

Depois, teimosamente, insistiu:
-O que ela diz tem sentido! A Abigail sofria de crises há anos, não eram perigosas, apenas a incomodavam. Sem mais nem menos, morre de paludismo! É absurdo, tens de concordar.
-Concordar, por quê? Queres dizer que é menos absurdo ser envenenada? É mais normal, mais comum, não?... Acontece todos os dias. Andam para aí assassinos a toda a hora a envenenar as pessoas!
-Ela lá tem as suas razões! Desconfia...
Stephen interrompeu-a, seco:
-Também não pareces estar a regular bem da cabeça! Já participas nas loucuras dela? Tens é que te ocupar com coisas sérias, coisas concretas! Só filosofias e literatura, isso não dá para nada... Se fosse nessas filosofias, estava bem arranjado! Eu tenho que trabalhar...
Assentou as palmas das mãos com força em cima da secretária e levantou-se, endireitando bem as costas:
-Pensar faz-te mal, já to disse várias vezes...
-Paranóias?! Já que levas a conversa para esse lado, então digo-te que não fui só eu a concordar. A Emily e a Helen também concordaram!
Stephen riu, sarcático.
-Outras doidas! Uma divorciada e uma solteirona... Ora, deixa-te disso! Vamos para a sala, eu já comi.
-Uma divorciada e uma solteirona! Como podes ser tão frio? Só te preocupa a tua pessoa! A Emily é uma óptima médica e o facto de não ter casado não diminui a inteligência de ninguém, que eu saiba... Antes pelo contrário...
Acrescentara a última frase num tom mais baixo. E juntou:
-E a Helen é a pessoa mais lógica, mais... Eu sei lá! E tem os pés bem na terra, não é nenhuma parva!
Ele olhava para ela, com ironia crescente, sentindo-a esbracejar, enervar-se.
-Está na hora do noticiário...
-És horrível, Stephen! Não quero saber do “teu” noticiário! Vou ver o que há para comer na cozinha. E vou-me deitar! Dás-me cabo dos nervos! És um cínico!
Levantou-se, indignada, arrastando o casaco, e saíu furiosa da sala.
-Cínico, eu? Não. Realista, minha querida, apenas realista!
Stephen olhou em volta, apagou as luzes do escritório e dirigiu-se para o salão.
Nessa noite, Alice não conseguiu dormir. A conversa com Joan, a recordação de Abigail linda, com os cabelos soltos, a rir-se não a largavam. A secura e a incompreensão do marido, mas, sobretudo, a indiferença que as palavras dele revelavam, faziam-lhe mal.
Indiferença? Cinismo? "Ou será outra coisa?”
Saberia coisas que ela ignorava?, continuava a pensar.
“Coisas terríveis”, dizia Abigail na carta...
“O que seriam aqueles papéis que tapou com tanto cuidado, quando cheguei?”
Pensava e revolvia-se na cama, sem sono.

Quando Stephen se veio deitar, mais tarde, fingiu que estava a dormir. Virada para a parede na sua cama, com os olhos semi-cerrados, ignorou-o até ele adormecer. Continuava a pensar na tarde passada na antiga da Abigail, desaparecida. Revia o ar perdido de Joan, a sua tristeza. Lembrava-se de Abigail, bela, cheia de vida, com os cabelos ruivos e revoltos a emoldurarem-lhe o rosto muito branco, as sardas no pescoço. Dormiu num pesadelo contínuo e acordou, sobressaltada, a meio da noite.
“Que papéis é que ele tentava esconder?...”
Não lhe saía esta ideia da cabeça. Sentou-se na cama, cheia de suores. Levantou-se devagarinho, vestiu o robe de veludo azul-escuro e calçou as pantufas de pele. Estava uma noite muito fria.

Tirou o molho de chaves do bolso das calças de Stephen, sempre meticulosamente dobradas sobre a cadeira, e desceu as escadas.
Tinha que abrir o cofre. Sabia que ele guardava ali os documentos importantes. Mas a busca não levou a nada. O cofre continha alguns maços de notas e uma papelada que não se referia a nada que ela pudesse relacionar com Abigail, ou com clientes africanos.
Em cima da mesa viu um corta-papéis de marfim com um formato curvo e um cabo verde, de pedra.
“Será de jade? Oh! Meu Deus! Estou a ficar obcecada!”
Pegou na faca e observou-a. O cabo espalmado era de malaquite esculpida, formando desenhos geométricos. Pousou-a no mesmo sítio. Stephen coleccionava facas estranhas. Olhou de lado para a vitrina onde estavam todas arrumadas. Arrepiou-se.
-“Odeio objectos cortantes!”, quase gritou.
Voltou para o quarto a pensar que nunca tinha visto aquela faca.
"Donde viria? Por que a tinha ele em cima da mesa?"
Extenuada, deitou-se e adormeceu imediatamente.

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