Por que se lê, hoje, no século XXI, uma escritora que viveu entre o século XVIII e o XIX com o entusiasmo com que, de facto, se lê Jane Austen?
Quem foi? O que se sabe dela realmente? Quem a lê?, serão perguntas pertinentes.
É de facto uma pergunta com sentido.
Basta reparar no número de "biografias" sobre a escritora...
Achei curiosa a descoberta de um livro publicado nos USA pela Random House e que se intitula:
Chama-se “33 writers on why we read Jane Austen" de que vos falarei mais adiante.
Mas, para já, o que se sabe dela?
Diz Claire Tomalin na biografia humaníssima que lhe dedicou:
“Não é uma história fácil de investigar. Não escreveu notas autobiográficas e se manteve diários, nada deles lhe sobreviveu. A irmã destruiu o volume de cartas que tinha na sua posse, e uma sobrinha fez o mesmo no que se referia às cartas que escrevera a um dos irmãos, e apenas uma mão-cheia delas apareceram de outras fontes.
Em número de 160 no total, e nenhuma delas escrita durante a infância; a mais antiga data de quando tinha vinte anos.
A primeira nota biográfica que se conhece, escrita logo após a sua morte, consta de poucas páginas escritas pelo irmão, Henry, que nos explica que a vida dela “não foi de modo algum uma vida com acontecimentos” (“not by any means a life of events”). Passam-se mais cinquenta anos até aparecer uma "memória" do sobrinho, que confirma a mesma ideia, afirmando: “of events her life was singularly barren: few changes and no great crisis ever broke the smooth current of its course”.
Claire Tomalin diz que nada de traumático se passou na vida dela, do tipo de coisas e dramas que acontecem na vida das crianças dos livros de Dickens. Isso não nos impede -se olharmos atentamente para a sua infância- de concluir que nem sempre foi calma a vida no presbitério de Steventon.
“Muito pelo contrário, -continua Claire Tomalin- a infância dela foi cheia de eventos, de desgostos e mesmo de traumas que deixaram nela as suas marcas. (...) Mas que ela conseguiu ultrapassar.”
Jane não casou. Num tempo em que o matrimónio era um fim em si, para muita jovem.
Aos vinte anos, encontrou em casa de amigos, Tom Leffroy, o seu “irish friend”, o amigo irlandês, como lhe chamava numa das cartas que “sobreviveram”.
Encontraram-se num Verão, em casa de amigas, as três irmãs Briggs -que viviam na Manydown House- uma mansão lindíssima, rodeada de um parque.
Ele, um estudante irlandês que vem preparar o estágio de advogado em Londres, ela ua jovem sem fortuna. Pobres os dois, foi ela que o afastou quando percebeu que se estavam a apaixonar. O amor deles não tinha futuro.
Sete anos mais tarde, o herdeiro dessa propriedade, Harry Brigg-Wisley, irmão dessas amigas propôs-lhe casamento. Aceitou nessa noite, mas, na manhã seguinte, tinha mudado de ideias, e recusa.
Jane nunca casaria por interesse e sem amor. Preferiu ser uma mulher independente e solitária, a meio de uma casa cheia de gente a entrar e a sair.
Tudo o que sofreu de tristezas, desejos, ou assuntos referentes a coisas mais íntimas foram “censurados”,nas suas cartas, por Cassandra, a irmã mais velha.
No entanto, nas que sobreviveram, há “flashes” da sua vida e da atitude perante a sua obra. Nalgumas cartas a Cassandra, ou à amiga Martha Lloyd, ou às sobrinhas e sobrinhos a quem confiava as suas opiniões sobre os romances que estava a escrever levanta-se o véu sobre essa aparente 'ausência de acontecimentos'.
Tudo dependia da "intensidade" com que se viviam esses poucos "eventos"...
Contava ela a Anne Austen, sua sobrinha, em 9 de Setembro de 1814:
"Há três ou quatro famílias nesta aldeia: é o [material] que tenho para trabalhar!”
Sempre à roda das mesmas terras e das suas gentes, uma passagem com família em Bath (Jane não aprecia a ideia do pai, e desmaia quando sabe a notícia); a mudança para Southampton, a seguir à morte do pai, em 1806, indo viver para casa do irmão Frank, e, outra, depois, em 1809, para Chawton onde o irmão Edward, bem estabelecido na vida, lhes empresta uma casa.
Poucas semanas antes de morrer, vai viver para Winchester.
Os primeiros sintomas da doença de Jane, dores nas costas, cansaço e fraqueza surgiram em 1815.
A doença de Austen foi muito discutida, pensando alguns recentemente que se tratou da doença de Addison (Sir Zacharie Cope, em 1964).
Claire Tomalin(depois de consultar sobre o assunto alguns médicos, como o Dr. Eric Beck) fala hoje de um linfoma de Hodgkin.
Li num blog brasileiro dedicado a Jane Austen (JASBRA), que também essa doença parece afastada, inclinando-se o articulista para uma tuberculose.
No final de 1816, a doença agravou-se, ainda que intermitente. A partir de Março de 1817, Jane foi ficando cada vez mais fraca, deixando de parte o livro que continuou a escrever até ao fim, pegando no lápis quando não podia segurar a caneta, Sanditon.
Toda a sua vida e experiência se confina às pequenas terras onde viveu, e aos seus habitantes. Também nas múltiplas idas a Londres que adorava e que a deslumbrava.
No entanto, o aprofundar desse conhecimento breve e a observação, atenta e arguta, dos seres que a rodeiam, levam-na à criação de personalidades distintas.
Como diz Somerset Maugham: “são sempre as mesmas pessoas, os mesmos sítios, que surgem, mas vistos de pontos de observação diferentes”, nos seus romances.
Romances esses que foram muito apreciados, na época, pelo próprio Príncipe Regente, futuro George IV, pessoa de grande cultura, que possuía uma colecção completa das suas obras em cada uma das suas residências.
Alguns livros e opiniões sobre a escritora
Começo por Sir Walter Scott, seu contemporâneo, e autor famoso no seu tempo, aprecia o trabalho de Jane Austen, no artigo “Review of Emma”, publicado em Outubro de 1815, na Quartery Review 14, falando no seu “toque requintado que transformava as coisas vulgares e os sentimentos das pessoas mais comuns em interessantes assuntos e caracteres.” De facto, Walter Scott (1871-1832), (citado por Somerset Maugham no tal livro intitulado “33 writers on why we read Jane Austen”), admirava a sua capacidade de “criar” personagens vivas, além do talento inegável para descrever as relações, os sentimentos, e os acontecimentos da vida quotidiana.
“Esta jovem, escrevia ainda ele, tem o talento de descrever as relações e os sentimentos e caracteres da vida quotidiana, o que é para mim a coisa mias maravilhosa que já encontrei” (“The young lady had a talent for describing the envolvements, feelings, and characters of the ordinary life which is to me the most wonderful I have ever met with”).
E elogia-a por conseguir o que a ele é negado: “The exquisite touch which renders commonplace things and characters interesting from the truth of e the description and the sentiments”.
Somerset Maugham acrescenta:
“É estranho que Walter Scott tenha omitido a referência ao maior talento da “young lady”: de facto, a sua observação era profunda e o sentimento edificante mas era o seu humor que dava força à sua observação, e uma espécie de ingenuidade criadora que dava vivacidade ao seu sentimento.” (pg. 77 do livro citado).
Alguns puseram-lhe restrições como a romancista inglesa Charlotte Brontë (1816-1855) e a poetisa E. Barrett Browning (1806-1861), que a achavam limitada; ou, mais tarde, Henry James (1843-1916), que acusa a sua literatura de ser “gentil”: ela era, para ele, aquela “dear Jane”: a querida (e inofensiva) Jane.
Depois da Biographical Notice que o irmão publicou em 1818 e, sobretudo, a partir da Memoir do sobrinho James-Edward Austen Leigh (1870) é que se começa a criar um culto em volta da sua obra e da sua pessoa.
Opiniões de escritores ingleses
Anthony Trollope (1815-1882) é um dos primeiros a afirmar:
“Miss Austen was surely a great novelist. What she did, she did perfectly.”
George Eliot (1819-1880):
“The greatest artist that has ever written” e “The most perfect master over the means to her end.”( “a maior artista”... e “o mestre mais perfeito”)
Virginia Woolf (1882-1941): “The wit of Jane Austen has for partner the perfection of the taste” ( a inteligência aliada à perfeição do gosto).
Por que se lê hoje Jane Austen?
Acho que uma boa resposta se encontra no livro interessantíssimo que me foi assinalado (blog “sobreorisco”) e que revela essa atracção incontornável pela figura e obra de Jane Austen.
Intitula-se, como já referi atrás: “33 writers on why we read Jane Austen” (Random House, New York, 2009, edição cuidada por Susannah Carson, com prefácio de Harold Bloom, Colecção “A Truth Universally Ackknowledged”
Traduzindo livremente o título será: “33 escritores explicam por que lemos Jane Austen".
Alguns desses 33 escritores são, por exemplo, (sigo uma ordem alfabética):
Kingsley Amis (1922) e o filho, Martin Amis (1949), Amy Bloom (1953), Anne S. Byatt (1936), Harold Bloom (1930), Eva Brann (1939), James Collins (1958), E.M. Forster (1879), C. S. Lewis (1898), David Lodge (1935), Somerset Maugham (1874), Rebecca Mead (1966), J.B. Pristley (1894), Ignes Sodré (psicanalista brasileira que vive e pratica a sua profissão em Londres desde 1969), Janet Todd (1942), Lionel Trilling (1905), Ian Watt e Virginia Woolf (1882).
Citei apenas alguns, tentando mostrar a variedade de sexo, idades, séculos, nacionalidades.
Escritores, críticos literários, professores que se debruçaram sobre este fenómeno.
Como por exemplo Janet Todd, professora de Inglês na Universidade de Abeerden (e autora de “Introduction to Jane Austen", publicada pela Cambridge University Press, 2006, na Colecção “The Cambridge Introductions to Literature”) que diz:
“Jane Austen é a única -com Shakespeare- a cativar a atenção popular como, por outro lado, a receber as maiores atenções por parte dos estudiosos, hoje mais do que nunca”.
O seu livro começa por uma frase que pode ser considerada “polémica” dado que muita gente, erradamente, a considera uma escritora ligeira, suave, o que hoje se chamaria light, escritora “para mulheres”: literatura feminina como já ouvi dizer, o depreciativamente.´
Janet Todd diz: “Jane Austen is one of the greatest writers of English Literature”.
Um dos maiores escritores da Literatura Inglesa!
Lembro, num aparte, que Gaspar Simões que sempre a admirou e defendeu. Régio “entrou” na literatura de Austen muito mais tarde e “reconhece” a sua grandeza, quando lê “Ema”, em 1944.
Está escrito na 1ª página do volume da Edição da Inquérito, ao lado da sua assinatura. Por acasos do destino, esse livro está hoje na minha posse, porque, pouco antes de morrer, mo emprestou.E não pude devolver-lho.
"Porque nenhum leitor, nem nenhuma época, esgota os livros dela. Há sempre algo que nos escapou, e, por outro lado, cada nova leitura enriquece quem a lê”.
Para terminar esta longa conversa, deixo as palavras de Claire Tomalin, no "Postscriptum" ao livro:
"Na última página terei que me virar para Jane-ela-mesma: para a criança para quem os livros eram um refúgio; para a rapariga cuja imaginação a leva a escrever histórias tão cedo; para a jovem que gostava de dançar e de brincar (...); para a irmã dedicada que tinha sempre tempo para todos mesmo quando o que lhe apetecia era sentar-se a escrever no seu canto, em paz; para a mulher que tratava igualmente senhores e servos; para o autor fantástico no seu brilho de mestre da sua arte; para a mulher moribunda que tem a coragem de resistir à morte mesmo quando já nos dentes dela; para a pessoa que preferia ficar silenciosa a criticar os pontos de vista dos outros se isso os magoasse; e que guardava os recortes sobre o que diziam dela para os ir ler sozinha.
Esta é a minha imagem preferida de Jane Austen, a rir-se das opiniões do mundo. Tão bom saber que tinha tanto riso dentro dela. Hoje, com o imenso número de opiniões que existem, há assunto que dá para rir, para sempre!"
Completamente de acordo!Para mim, o que Claire Tomalin me ensinou sobre Jane Austen, 'esse pouco', diz ela, que são mais de 300 páginas, e esta conclusão final, leva-me a pensar: que bom que existam pessoas (escritores) assim!