domingo, 21 de fevereiro de 2010

A "Correspondência" entre George Sand e Flaubert, uma amizade exemplar


Enquanto escrevia o meu último "post" sobre a biografia de Chopin, fui-me lembrando de outras coisas sobre George Sand. Já conhecia Nohant, a propriedade que George Sand possuía na região do Val de Loire e onde passou temporadas com Chopin e os dois filhos dela, Maurice e Solange .
E conhecia-a da "Correspondance" entre ela e Gustave Flaubert -"Gustave Flaubert-George Sand -Correspondance"- que se estende de 1863 a 1876, obra maravilhosa em que duas figuras se mostram na sua verdade...
Ela escreve de Nohant, no Val de Loire, e Flaubert de Croisset, na Normandia.

Um pouco de história biográfica de Sand:
"Aurore Dupin, baronesa Dudevant, que usava o pseudónimo de George Sand, nasce em 1804 e morre em 1876. Cresceu no castelo de Nohant, influenciada pelo liberalismo aristocrático da avó paterna. Estudou num convento de Paris, onde desenvolveu tendências místicas. De volta a Nohant, propriedade que herda da avó, viveu livremente, lendo e montando a cavalo, até ao seu casamento com Casimir Dudevant, em 1822. Têm dois filhos. Em 1830 ela vai viver para Paris e separam-se em 1831.
Colaborou no jornal Le Figaro e escreveu centenas de romances, a maior parte saídos em folhetins, ao uso da época. Conheceu Musset com quem teve uma relação conflituosa de 1833 a 1835. E em 1838 começa a sua ligação amorosa com Chopin. "

(Wikipedia)

Às vezes acrescentam:
"Temperamento livre e independente, George Sand faz uma vida livre e luta pela independência da mulher, e pelo fim da sua opressão."
Mas George Sand não é apenas a mulher que fumava, desenfreadamente, cigarros uns atrás dos outros, de boquilha em punho; que se vestia com trajes e chapeús masculinos (**); que se passeava por Veneza com Chopin e Musset; George Sand, a devoradora/ destruidora de homens.
É também as escritora infatigável que escreve mais de cem livros, quase todos com nível.
Alguns são belos, bem escritos e têm uma grande simplicidade, guardando certa ingenuidade ainda hoje.

Quando escreve La mare au Diable (1846), esse curto romance campestre, provavelmente ao falar das brumas que desciam à noite sobre os pântanos e nele faziam perder-se os viajantes, no qual ressalta a beleza de tudo o que é simples, talvez Sand rememore Nohant e alguns momentos tranquilos que ali viveu com Chopin.

De facto, é a ele que dedica o livro. Pertencendo aos herdeiros de Chopin só mais tarde, em 1931, La mare au Diable é oferecida por Auguste Zaleski Ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia a Aristide Briand, que os lega depois à "Bibliothèque Nacionale" francesa.

Como dizia antes, George Sand não é só isso.

É a mulher forte e doce, protectora e humana que aparece na “Correspondance” (1821-1880) .

A primeira carta desse encontro é assinada por George Sand, e enviada de Nohant, exactamente no dia 28 de Janeiro de 1863.

Gustave Flaubert publicara poucos meses antes Salammbô, (publicara Madame Bovary antes, em 1857, que se revelara um escândalo e é retirado, um livro acusado de imoralidade e que só é publicado, depois de um processo que o autor vence, em 1862).

Enviara-lhe um exemplar de Salammbô e ela escreve, a agradecer.

Começa uma amizade pura, em que é George Sand quem “protege” Flaubert e o anima e “acalma” nos momentos de desânimo, desespero ou fúria.

George Sand deixa uma imagem, nesta correspondência de vinte e cinco anos, marcada por generosidade, bondade e compreensão.
Há quem defenda que a doce e suave personagem de Felicity, no conto “Un coeur Simple”, lhe foi inspirada pela convivência e pela influência que G.S exerceu sobre ele.

Diz Flaubert, de facto, em carta de Maio de 1876: “na minha história, "Un coeur simple", creio que reconhecerá a sua influência imediata..."
A última carta desta Correspondência é de Flaubert e chega a Nohant no dia em que G.S. cai de cama, em grande sofrimento com uma oclusão intestinal impossível de operar porque descoberta demasiado tarde -e de que vai morrer em 8 de Junho.

O que une os dois amigos, tão diferentes em tudo?
O mesmo amor à literatura, à verdade, à coragem. A seriedade no encarar a própria obra, a não cedência a ambições baixas e reles, à inveja que vêem grassar perto deles.
Durante a vida, ora um, ora outro, oferece ajuda monetária com a maior simplicidade, ao ponto de sacrificarem o que às vezes não tinham.
E são belas essas cartas em que se vê a generosidade, a dedicação, a admiração mútuas.

Flaubert é um impulsivo, um pessimista inveterado (em carta de 24 de Fevereiro 1870 diz: “La vie est décidemment une froide plaisanterie comme disait M. de Voltaire”).
Ainda, um temperamento violento, ciclotímico, masoquista.
Em 5 julho 1869 escreve : “Também acredito que podemos curar-nos quando se quer. Mas a vontade não é dada a toda a gente. Há na dor uma certa voluptuosidade que nos leva a abandonar-nos a ela.”
Personalidade que revela grande fragilidade, sensibilidade à flor da pele, sujeito a tristezas e melancolia, é Sand quem o entusiasma e "lhe puxa a alma para cima".
Quando morre o crítico e comum amigo, Sainte–Beuve, lamenta-se, em carta a Sand:
Como a nossa pequena banda vai diminuindo. Como os raros náufragos da Méduse (***) desaparecem...”
Quando se enerva, explode violentamente. E ela acalma-o.
Em Março de 1872, Flaubert exclama:
Ó Calma do grande Goethe, ninguém te admira mais do que eu, pois não há pessoa que a possua menos do que eu!”

E assina “Votre vieux troubadour Gve Flaubert", acrescentando no final, quase em forma de post-scriptum: "sempre agitado, sempre HHHindignado como S. Policarpo !”

Ela vai ser a amiga tranquila, dedicada, que o arrasta com o seu optimismo, o leva atrás da sua alegria e optimismo incuráveis, e pela observação das coisas simples.

É ela o espírito revolucionário, que acredita no progresso, que acredita que "a educação é o que há de mais importante na vida" -e que a aprendizagem de tudo deve começar na infância, logo que se começa a falar, e que se deve seguir até à morte:

La vie doit êre une éducation incessante. Il faut tout apprendre, depuis Parler jusqu’à Mourir”.
A amiga que lhe diz, logo ao princípio da amizade, o quanto o admira:
“É um dos raros seres que se deixaram permanecer impressionáveis, sinceros, amantes da arte, que se não deixaram corromper pela ambição ou cegar pelo sucesso. Enfim, terá sempre 25 anos...”

Que fala dos "artistas" lucidamente, e com ternura, dizendo:
“São crianças mimadas, e os melhores são grandes egoístas. Dizes que os amo demasiado; amo-os como amo os bosques e os campos, todas as coisas, todos os seres que conheço um pouco que estudo sempre. (...) Fazem-me mal que vejo mas que não sinto já. Sei que há espinhos nos arbustos. Isso não me impede de meter lá as mãos e encontrar flores. Se nem todas são belas, todas são curiosas.”

E acrescenta, irónica:
" Se não se pega na vida assim, não há ponta por onde se lhe pegue e, então, como fazemos para a suportar? Eu acho-a divertida, interessante e, por aceitar tudo, sinto-me ainda mais feliz quando encontro o belo e o bom. Se não tivesse um grande conhecimento da espécie, não te teria tão depressa compreendido, conhecido e tão depressa amado. Posso ter uma indulgência enorme, talvez banal, tanto que teve que agir, mas a apreciação é outra coisa.”

Em resposta, Flaubert diz-lhe:
"Chère Maître, a sua carta edificou-me. É a palavra, e o que me diz sobre a indulgência que se deve ter com os egoístas é tão belo que me deu vontade de chorar”.
Flaubert trata-a sempre por “você” e ela será sempre “mon chère maître", às vezes “ma chère maître, bon comme le pain”, e ela trata-o quase desde o início por “tu” e chama-lhe “mon vieux troubadour”.

No dia anterior à saída de L' Education Sentimentale, ela avisara-o, atenta:
“Vão-te louvar e destruir, e tu já está à espera disso. És demasiado superior tens a verdadeira superioridade para não teres invejosos... Mas és uma pessoa com a força para se não deixar abater por isso!”
Quando poucos meses mais tarde ele desanima porque L’Education Sentimentale (saira em 17 de novembro de 1869) foi mal recebida pelo público, e a crítica se mostra fria, é ela outra vez que sai a animá-lo e a defendê-lo:

Cher ami de mon coeur”, chama-lhe dessa vez, “(...) é um belo livro [e compara-o ao grande Balzac, que ambos admiravam], mais real, quer dizer o mais fiel à verdade, de uma ponta à outra. É necessária a grande arte, a forma requintada e a severidade do teu trabalho para não precisares das flores da fantasia. Deitas mãos cheias de poesia sobre a tua pintura, quer os teus personagens o compreendam ou não. Tudo isso é de mestre e o teu lugar está bem conquistado para sempre. Vive pois tranquilo tanto quanto te for possível, para durares muito e produzires muito.”

A seguir informa-se, protesta: “Não sei o que se passa com a crítica mas vai-me dando notícias. Se for preciso, zango-me e digo o que penso. Estou no meu direito.”

George Sand era uma escritora muito conhecida e apreciada no seu tempo, publicada, representada no teatro, com grande poder sobre os centros de opiniões literárias.
Em Fevereiro de 1869, Flaubert escreve criticando um amigo escritor:
Por quê fazer crítica nos jornais, quando se não morre de fome e se podem escrever livros! A sua Força encanta-me e espanta-me. Falo da Força da pessoa inteira, não a do cérebro apenas...

E, falando da crítica que só os artistas podem fazer, porque a única "criadora, porque se inquieta da outra em si, intensamente” continua:
"Seria necessário a essa crítica uma grande imaginação e uma grande generosidade, quero dizer uma faculdade de entusiasmo sempre pronta. E depois "gosto", qualidade rara, mesmo nos melhores...”

Ao que ela responde:
Dizes coisas boas da crítica. Mas para a fazer como tu dizes, sejam necessários artistas, e o artista está demasiado ocupado a fazer as próprias obras para se esquecer a aprofundar a obra dos outros”.
E, logo, atenta à beleza da vida e do que a rodeia, nota, a chamar-lhe a atenção:
"Meu Deus, que tempo lindo! Será que ao menos o gozas à tua janela? Aposto que o teu tulipeiro está cheio de botões. Aqui os pessegueiros e os alperces estão em flor...”

Flaubert não via nada, esquecia-se de abrir as janelas e de ver a vida. Mas há vezes em que repara, e na resposta diz:
Voilà que l’Hiver avance! J’ai rarement passé de meilleur ! »

E acrescenta : “tenho umas saudades suas loucas, como um verdadeiro animal !, ou antes, como um homem de espírito. O nosso bom Tourgueneff deve estar em Paris nos finais de Março. Seria simpático jantarmos os três.”

Flaubert eterniza-se por Paris, ela sabe-o sozinho, e escreve, a chamá-lo, várias vezes.
Em 18 de Janeiro de 1873, pede:
“Vem a Nohant. Se pudeses trazer Tourgueneff todos ficaríamos contentes [refere-se ao filho; Maurice, e à nora Lina, filho com quem tem uma relação muito boa de admiração recíproca], e terias o mais delicioso companheiro de viagem. Leste “Pais e Filhos” (***)? É muito bom!”
Flaubert adia sempre a partida, ela insiste:
Vem. Estás muito sozinho. Despacha-te a vir ter com os que te amam.”
Sabe que Flaubert anda enervado, furioso com um editor, receia pela sua saúde, inquieta-se com essas cóleras que acha desnecessárias:

"Vivo inquieta, não gosto dessas cóleras e "parti pris". Isso já dura há tempo de mais e é como um estado doentio, tu próprio o reconheces. Esquece. Não sabes esquecer?
Quer tirá-lo do buraco em que o vê afundar-se:
"Vives demasiado fechado sobre ti próprio e relacionas todas as coisas contigo. Se fosses um vaidoso e um egoísta diria que era um estado normal, mas em ti, tão bom e generoso, isso é uma anomalia, um mal que é preciso combater. Claro que a vida está mal arranjada, é injusta, penosa, irritante para toda a gente. Mas não ignores as imensas compensações que dá e que seria ingrato esquecer.

Lúcida, generosa, e inteligente reconhece:
"Que importa que existam cem mil inimigos se formos amados por dois ou três seres bons?"
Consegue convencê-lo a aceitar o convite para ir a Nohant.

De facto em carta de 20 de Março, Flaubert escreve-lhe de Paris:

Acabou de sair daqui o gigantesco Tourgueneff. E fizemos um juramento solene. No dia 12 de Abril, véspera de Páscoa, vai ter-nos a jantar em sua casa. Foi uma decisão difícil, acredite. Tudo é tão difícil de concluir.”

A amizade dura. Flaubert passa em Nohant grandes temporadas e George Sand vai visitá-lo a Croisset, onde conhece a mãe de Flaubert, que ali vive e domina, mas que vai adorar George Sand de quem fica amiga.

E George Sand agradece, em resposta:

“Fui muito feliz durante os oito dias passados com vocês. Nenhuma preocupação, um bom ninho, uma bela paisagem, corações afectuosos e a tua bela figura com algo de paternal! Apesar da idade, sente-se uma protecção de bondade infinita e quando, numa noite, chamou à sua mãe “minha filha” fiquei de lágrimas nos olhos.”

Até ao fim, este sentimento de amizade profunda e de ternura entre os dois perdura. É bom ler estas cartas. Dá confiança na vida. Nos sentimentos. Na amizade.

Era inevitável não falar desta correspondência que sempre me comove e que continuo a ler, e reler, religiosamente, com medo de a terminar...

________________

(*) "Gustave Flaubert-George Sand , Correspondance" - texto editado, prefaciado e anotado por Adolphe Jacobs, Flammarion, Paris, 1981

(**) referência ao quadro de famoso contemporâneo Delacroix, Le radeau de la Méduse

(***) “Desejava ardentemente perder o meu provincianismo e informar-me diretamente sobre as idéias e as artes do meu tempo (…) mas estava a par das dificuldades de uma pobre mulher em gozar esses luxos (…) Assim, mandei fazer um redingote-guérite, bem como calças e casaco a condizer. Com um chapéu cinzento e um enorme lenço de lã, tornei-me na imagem de um estudante. Não consigo expressar o prazer que me davam as minhas botas. Com aquelas solas revestidas a ferro, sentia-me firme a andar pelas ruas e corri Paris de uma ponta a outra. Dava-me a sensação de que poderia dar a volta ao mundo. Com aquelas roupas não temia absolutamente nada." ( no livro autobiográfico "Ma vie” )
(****) Este romance de Ivan Tourgueniev (ou Tourgueneff, 1818-1883) fora escrito em 1860 e traduzido para francês, pelo próprio Tourgueniev, em 1863.
Flaubert encontra-o num jantar no conhecido restaurante parisiense Magny e logo ficam amigos. Quanto a G. Sand, conhecera-o nos anos 40, mas foi através de Flaubert que trava conhecimento mais íntimo com o escritor russo. A seguir, ele vai estar em Nohant muitas vezes.

Algumas trabalhos sobre G. Sand
(que não li, confesso):
Em 1975 Curtis Cate publica a biografia: "George Sand."
Em 1993 Francis Steegmuller e Barbara Bray publicam a tradução em inglês da "Correspondence" entre Flaubert e Sand.
Em 2000 Belinda Jack escreve: "George Sand: A Woman’s Life Writ Large."

Deixo uma frase de George Sand, citada nessa biografia: "Preferia acreditar que Deus não existe do que acreditar que Ele é indiferente".

6 comentários:

  1. Gostei muito de a ler esta manhâ.Nota-se que admira a George Sand.Nâo há nada que me dê mais inveja que isso,as vidas cheias de beleza e talento,regados com bondade e compaixâo.Ser como ela.e poder crescer tratando com gente como Flaubert,Chopin...Nada menos!
    Beijinhos

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  2. Tem razão! Mas às vezes ler "compensa" essa nossa frustração (chamemos-lhe assim) de não ter podido "viver" outras vidas, fazer mais coisas!...
    De certeza que a sua vida também tem muito para contar...
    Abraço (já)amigo

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  3. Excelente nota sobre o livro. Gosto muito de diários, biografias, correspondência. Obrigado! Abraço

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  4. Se domina o francês, mande vir porque vale mesmo a pena! Abraço e obrigada
    Também há em inglês, não há (ainda, até quando?) em português...

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