sexta-feira, 4 de junho de 2010

Julien Gracq: o último dos clássicos...


No dia 27 de Julho passam cem anos sobre o nascimento do escritor francês Julien Gracq.
Quem se lembra de Julien Gracq?
Talvez alguns recordem o famoso livrinho, espécie de panfleto iconoclasta, saído em 1950, “La Littérature à l’estomac” (*), contra os perigos que ameaçam a Literatura, obra essa que levantou logo muitas polémicas.
Durante toda a sua vida, Julien Gracq nunca deixou de ser polémico...


capa da 1ª edição, na editora José Corti



(Na edição de 1999, aparece como apresentação do livro o seguinte texto: "Texte célèbre datant de 1949, publié d’abord dans la revue Empédocle, "La littérature à l’estomac" demeure plus que jamais, cinquante ans après sa sortie, d’actualité.

Ce qui énervait Julien Gracq dans le milieu littéraire, tant celui des critiques que de certains écrivains, n’a fait que prendre, depuis, une plus grande ampleur car ce qui fait aujourd’hui d’abord un livre, c’est le bruit : pas celui d’une rumeur essentielle qui sourdrait de l’œuvre elle-même mais celui des messages accompagnant sa sortie.)
Nasce em 27 de Julho de 1910, em Saint-Florent-le-Vieil, em Anjou e o seu verdadeiro nome era Louis Poirier.
Saint-Florent-le-Vieil, terra natal do autor


Professor de Liceu, escritor, ensaísta, sai subitamente do anonimato quando lhe é atribuído, em 1951, o Prémio Goncourt pelo seu livro “Le Rivage des Syrtes” (um dos poucos livros de Gracq publicados em português, A Costa das Sirtes -traduzido com certeza muito bem pelo poeta Pedro Tamen).

Prémio esse que recusa.

Volta a desaparecer nas brumas da província. Viaja no seu carrinho utilitário pela província francesa, incógnito, escolhendo os caminhos interiores e as estradas secundárias pois, para ele, as auto-estradas destruíam a verdadeira paisagem, descaracterizando os sítios.

Evita Paris e os meios literários.

Que perigos ameaçavam a Literatura, nessa altura?

Os mesmos que a ameaçam hoje: o nivelamento por baixo, a “servidão” progressiva dos espíritos, a aparição de um público desorientado que não lê, e para quem o nome dos autores não tem mais valor do que qualquer marca comercial...

O “Magazine Littéraire”, nº 465, de Julho de 2007, dedicou um dossier a Julien Gracq intitulado: “Julien Gracq le dernier des classiques”, com vários artigos e uma entrevista –a última- com o escritor, então com 96 anos, lúcido e atento, que vai morrer em Dezembro desse mesmo ano.

Como diz muito bem Jean-Louis Hue, num dos artigos:

“Antecipando-se à "peoplização", Gracq profetiza a chegada do autor-vedeta, reduzido a ser apenas uma figura da actualidade, levado por um ruído de fundo mediático que amolece o pensamento amplificando a imagem.”
Gracq denuncia os compromissos comerciais do mundo literário dessa época, espécie de Bolsa de valores...

A Literatura no estômago (Assírio & Alvim) é aquela que é feita à pressão, que se serve a torna a servir como prato comestível até ao enjoo.
Que "está na moda", que "se vende", que uns copiam dos outros, aquela que os editores editam...
Como hoje.

A esta literatura, que condena profundamente, o autor prefere o jejum e a ascese...

O que fizera antes?
Em 1937 (com 27 anos), escrevera, em poucos meses, o romance “Au Château d’Argol” (primeiro foi recusado pela NRF e só foi publicado pela editora José Corti em 1938 - que vai ser a sua editora, a partir daí).
É uma história que se aproxima do surrealismo de Breton e do romantismo alemão com a mesma temática, espécie de demanda do Graal, mais os cavaleiros sem mácula seguindo o modelo de Parsifal (Sir Percival, como preferirem).

Segue-se, passados 7 anos, um outro romance, Le beau ténébreux , dentro do mesmo género fantástico.
Depois de “ Le Rivage des Syrtes” (1951) abandona o romance (o próximo vai sair sete anos depois, e será “Un balcon en fôret”), e dedica-se a escrever, de forma fragmentária, pequenos ensaios, apontamentos (“Lettrines”, “Lettrines 2”, Les Eaux Etroites), pensamentos que vai compondo ao longo de passeios, leituras, meditações.
A sua recusa da publicidade -e das grandes feiras literárias- atrai muitos jovens escritores, que exigem um pouco mais do que essa tal literatura "a peso", ao serviço da tal Bolsa de valores.
Gracq foi para eles um “marco” -como dizia José Régio na sua “Carta a um juvenil individualista”: aquela pessoa que serve de modelo de vida, que é uma referência e nos leva a escolher isto e não aquilo, a olhar para certas coisas “essenciais”, a largar outras, meros enfeites, e a ter certas atitudes e não outras...

O exemplo de pessoa a seguir, o homem de que falava Séneca, quando escreve:
“Devemos escolher na vida um homem de bem, e tê-lo sempre frente aos olhos, como exemplo para vivermos. E conduzirmo-nos como se nos observasse, agindo como se nos visse...”

De facto, é, para os seus seguidores, o “exemplo”: os discípulos, os ex-alunos que o vinham visitar -e conversar com ele dias inteiros- na sua casa de Saint-Florent, até ao fim.

Segui um pouco a sua obra. Li há pouco tempo “Le balcon en Fôret” (1958) e “Le Rivage des Syrtes”( 1950).
A leitura do primeiro apaixonou-me de tal modo que o "devorei" em poucos dias.
Pela novidade, intensidade de uma história em que quase nada há: num fortim, perto da fronteira com a Bélgica, o protagonista, jovem oficial francês, e três dos seus homens, que esperam a chegada dos alemães.


Poucos meses: apenas o período de tempo que medeia entre a Declaração de Guerra pelos alemães e a ofensiva das Ardenas (1940). E o seu destino.
Sabem que não se podem defender de modo nenhum. E aguardam, falando, passeando pelas serras cheias de neve, cortando lenha, descendo ao povoado, travando conhecimento com dois ou três camponeses que sobem até lá acima.
Conhece uma jovem,de que pouco sabe, que vive, misteriosa e isolada, numa casa de campo com uma criada, e vai procurá-la de vez em quando.
E é só isto...
Uma enorme simplicidade.
No entanto, é inesquecível a atmosfera que se cria, o que vai pelo pensamento das personagens, o que observam das frestas da “casa-mata”, o que nem têm a coragem de dizer uns aos outros. A expectativa...
Uma espécie de “deserto dos tártaros”, onde se espera sem se saber "quando" vai acontecer ou "se" acontece...
Até que um dia chegam as tropas alemãs...
De tal modo me prendeu essa leitura, que imediatamente peguei no outro livro: "Le Rivage", A Costa das Sirtes.


Muito diferente, mais complexo até no estilo, tornou-se-me mais difícil. O ritmo parecia-me lento. Parei. Voltei logo porque me chamava: era estranho e atraente! E, de repente, "agarrou-me" com força, assim que retomei a leitura: era empolgante mesmo!
A sensação de que “há alguma coisa detrás” que se tem de descobrir, que existe algo “para lá de”, uma fronteira, um perigo que “desejamos” que exista, com o qual nos queremos confrontar –tal como o herói.

O desconhecido, o inesperado -que pode revelar-se dum momento para o outro e pelo qual “se anseia” - e “se ansiou” desde sempre...
E o vazio à volta, o silêncio, a expectativa.
E a provocação necessária para que “qualquer coisa” aconteça, que quebre a expectativa insuportável e que volta a fazer pensar n' O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati (3) .
E, atrás, lá longe, a Senhoria de Orsenna, principado num país não identificado, em tempos recentes, a misteriosa Senhoria, cheia de segredos e de personagens dúbias, duplas, falsas - cujo ambiente lembra o ambiente da Sereníssima República de Veneza, com os mesmos complots, venenos, traições latentes- entra-nos na pele. Sentimo-nos "participar" da intriga, duvidamos, queremos saber mais.
O protagonista, de que sabemos apenas o primeiro nome, Aldo, filho de um dos poderosos da Senhoria, farto da inacção, da indecisão e do segredo, abandona a “antiga e nobre” Senhoria, e “escolhe” enfrentar directamente o perigo.
Parte, com grandes poderes, encarregado pelo pai de uma missão secreta, para o sul. Perto dos confins, existe uma província, o bárbaro Farghestan, na margem das Sirtes, cuja zona de fronteira tem de ser fielmente respeitada, para evitar uma guerra.
O herói instala-se, pois, na Fortaleza, isolada diante de um mar quase sempre parado, onde nada acontece desce há séculos e onde tudo se espera porque o inimigo continua lá e espera também...
Encontra o capitão Marino, Fabrizio, Roberto, os outros da flotilha das Sirtes, no Almirantado da -sempre referida- base das Sirtes.
Passeia no navio de vigilância “Redoutable” que não deve ultrapassar certos limites. Perscruta o horizonte, estuda os mapas com a linha pontilhada do limite da zona de patrulhas que o fascinam.
O desconhecido, o perigo, o inimigo aguardam a provocação necessária para que “qualquer coisa” aconteça.
E o herói cria essa “provocação”, empurrado pela estranha jovem Vanessa, filha de um importante membro da Senhoria, caído em desgraça e exilado, a bela e misteriosa Vanessa que vive na cidade perto, a palúdica Maremma, rodeada de pântanos e de ventos insalubres...
Tudo acontece sob o “olhar” frio, inatingível e inquietante, lá do alto do seu cone de neve, do vulcão Tängri.

No interessante artigo do "Magazine Littéraire", intitulado La froide lumière des Syrtes, Enrique Vila-Matas fala de “um livro que podemos provavelmente começar a ler hoje porque nos fala, através do seu nobre e lento discurso intertextual, da nossa lenta decadência veneziana de hoje”.

Diz ele:
Somos confrontados com um romance da inactividade, do devaneio solitário e de uma contaminação nebulosa entre trama e estilo. A trama arrasta-se atrás de um estilo rápido. Trata-se no fundo de uma cabala de luz fria e terrivelmente moderna sem importar saber se é ficção ou realidade, verdade ou mentira.”
Romance da espera (como lhe chamou o próprio autor), da expectativa?
Termino com esta frase de Breton - de quem Gracq foi grande amigo- que bem poderia adaptar-se quer ao "Balcon en Fôret" quer a "Le Rivage des Syrtes":
« Au-delà de ce qui arrive ou n'arrive pas, l'attente est magnifique. »
André Breton (1896-1966)



(1) As Syrtas: na realidade, Syrta é uma cidade da Líbia. Na geografia antiga este termo de origem grega designava dois golfos formados pelo Mediterrâneo na costa de África entre Cyrène e Cartago


(2) Orsenna : a cidade-Estado a que pertence Aldo, chama-se Orsenna, e fica em frente do Farghestan: os nomes evocando a Itália, a Ásia central ou outras regiões, a referência a aspectos militares (misturando as épocas) situam a história num espaço imaginário.

(3) Il Deserto dei Tartari, do escritor italiano Dino Buzzati, foi escrito em 1938 e publicado em Itália em 1940. Em França, o romance sai só em 1949, enquanto que Gracq escreveu a sua obra em 1948 (publicada em 1951).

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Para os leitores, que possam estar interessados, indico alguns títulos de obras de Julien Gracq traduzidas em português:

A Costa das Sirtes
(tradução de Pedro Tamen)
Edição/reimpressão: 1988
Editor: Vega

A Literatura no Estômago

(tradução de Ernesto Sampaio)
Colecção: Alfinete
Assírio & Alvim - 1987

As Águas Estreitas

(tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)
Colecção: Alfinete
Assírio & Alvim - 2006


(*) Diz Juliem Gracq, a propósito de "la Littérature à l'estomac":

«Ainsi se trouve-t-il que la littérature en France s’écrit et se critique sur un fond sonore qui n’est qu’à elle, et qui n’en est sans doute pas entièrement séparable : une rumeur de foule survoltée et instable, et quelque chose comme le murmure enfiévré d’une perpétuelle Bourse aux valeurs (...) en rumeurs de coulisses[…].»
(in La littérature à l’estomac)

(**) Surrealismo: "o surrealismo acentua o papel do inconsciente na actividade criativa. Um dos seus objectivos foi produzir uma arte que, segundo o movimento, estava a ser destruída pelo racionalismo.
O poeta e crítico André Breton (1896-1966) é o principal líder e mentor deste movimento.
A palavra surrealismo supõe-se ter sido criada em 1917 pelo poeta Guillaume Apollinaire.

4 comentários:

  1. Olá!Bom comentário dum autor bem escolhido.Fui a Google(já que não li nada de Gracq),e continuei a gostar:anti-burguês autêntico(uma coisa é sê-lo,outra dizer que se é),explorador da capacidade de sonhar do ser humano,destructor de preconceitos(-difícil!).
    Séneca convida-nos à "grande escolha":ser o que queremos ser.Beijinhos.

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  2. Obrigada. Foi feito a correr (!!) e tem repetições etc, vou emendar... Mas faça uma coisa, Maria: compre, mande vir, o que quiser, mas tente ler " A Costa das Sirtes". Acho que vai gostar!
    Aconselho...
    M.J.
    Bom domingo

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  3. Olá! Não costumo comentar, mas desta vez tenho de o fazer, para lhe dar os parabéns pela qualidade do que resumiu e disse, e para lhe agradecer estes momentos de cumplicidade e gosto! Também li A Costa das Sirtes ("empurrado" pelo Vila-Matas...) que achei admirável e a Literatura no Estômago. Dei com o seu trabalho à procura de informações sobre As Águas Estreitas, da Assírio, 2006, que foi publicado sem nenhumas! Cumprimentos. FM

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    1. Obrigada pelo comentário. Gosto muito de Julien Gracq que li -e leio- ainda muito. Tem uma voz própria e tem muito a dizer. Já agora aconselho-lhe "Un balcon en forêt", livro extraordinário sobre uma patrulha francesa, fechada num casão, nas Ardenas, à espera que os alemães cheguem.
      E outros livros de pequenos ensaios "Lettrines" são também muito interessantes... Abraço

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