terça-feira, 31 de agosto de 2010

Três diários, três destinos...Ou as monstruosidades invulgares


AS MONSTRUOSIDADES INVULGARES


Anne Frank nasce em 12 de Junho de 1929, na Holanda. Morre de tifo no campo de concentração de Bergen-Belsen, pouco antes de fazer 16 anos.

Rutka Laskier nasce no ano de 1929 também, na Polónia. Morre em Auschwitz não se sabe bem em que ano.

1ª edição polaca do Diário de Rutka, 2005

Clara Kramer nasce em 1927 na Polónia. Escondida durante 18 meses com outras famílias num bunker, é uma das sobreviventes do holocausto.
Capa da edição brasileira de "A Guerra de Clara "

Capa da edição portuguesa do livro "Clara, a menina que sobreviveu ao holocausto"

O que aproxima estas três adolescentes é a escrita de um “diário” e o terem passado por uma forma de gueto... E serem as três judias.

Vidas cortadas, violentamente, na adolescência, sonhos interrompidos, vidas escondidas detrás de paredes, dentro de guetos até ao momento do destino se cumprir.

Há nelas uma qualquer forma de presciência, de adivinhação desse destino desigual, anormal, fatídico?

Talvez.

Outro aspecto que as aproxima é o facto de a “depositária” dos diários ser uma “amiga”, que as protegeu de alguma modo e permitiu que se salvasse o testemunho que quiseram deixar, ou, no caso de Kramer, uma pessoa que, ao invés de tudo o que seria de esperar, decide salvar 18 judeus.
Capa do livro que Miep Gies e Alison Leslie Gold escreveram sobre Anne Frank, "O Outro lado do Diário"

Miep Gies, a holandesa que ajudou a família de Anne Frank, ou Stanislawa Sapinska, a jovem polaca que ia conversar com Rutka nos intervalos do almoço, às escondidas.


O Diário de Anne Frank é conhecido em todo o mundo.
A Alemanha invade a Holanda em 1940.É Pouco depois inicia-se a perseguição aos judeus.
É o diário da vida dela e da família, num pequeno esconderijo, numa casa aparentemente normal, de 12 de Junho de 1942 a 1 de Agosto de 1944.

As traseiras do edifício da casa onde viveram escondidos, num sótão, os Frank

Fez 63 anos que foi publicado pela 1ª vez, em 1947, pelo pai dela, Otto Frank, o único da família que sobrevivera a Auschwitz.
Capa da 1ª edição do "Diário", na Holanda, 1947



Anne escrevera-o desde o dia 12 de Junho de 1942, dia do seu 13º aniversário, dia em que recebera o diário como prenda, e chama-lhe “Kitty”.

É com essa personagem fictícia que vai desabafar durante longos meses. Exactamente até ao dia 1 de Agosto de 1944 quando a família Frank é deportada para Auschwitz.

http://www.ipv.pt/millenium/millenium26/26_16.htm (belíssimo trabalho sobre Anne Frank)

O livro de Clara Kramer é no fundo um livro de Memórias, tirado do seu “diário” . Diário esse escrito durante o período em que está escondida num bunker subterrâneo, com outras 17 pessoas, fugindo às perseguições nazis.

Clara é uma adolescente de 15 anos quando o exército alemão ocupa a Polónia e entra na terrinha onde vivia, Zolkiev.

Capa da edição americana de "Clara's War"
Estamos em Julho de 1942.

Enquanto todos os judeus da região são perseguidos, assassinados ou enviados a campos de concentração, Clara e a sua família encontram uma ténue esperança de salvação quando o senhor Beck acaba por assumir a tarefa de ocultar e proteger judeus na cave da própria casa. Tarefa heróica que lhe valeu uma homenagem no Yad Vashem em Israel.

Ali fechada, durante dezoito meses, Clara escreve o diário.

Aos 80 anos, Clara Kramer retomou, com a ajuda do escritor Stephen Glantz, o seu passado, testemunhando sobre um período terrível da história: dos cinco mil judeus que habitavam Zolkiew antes da guerra, menos de sessenta sobreviveram...

Este ano a editora ASA publicou-o com o título: “Clara, a menina que sobreviveu ao holocausto”.

Fora publicado em 2008 em Inglaterra, pela Random House ("Clara's War"), e em 2009, pela Harper Collins, em New York.

Quando esta guerra acabar, apenas as valas comuns testemunharão que em tempos houve aqui um povo”, escreve-lhe uma amiga, conta Clara.
E continua: "Tínhamos os corações partidos. Era o fim. O fim do mundo.Na nossa tradição, uma morte rasga o tecido do mundo. Estamos todos ligados. Por casamento. Por amizade. Por trabalho."
E explica a razão desse diário:
"E um dia, sem mais nem menos, a minha mãe olhou para mim e disse: “Clara, vais escrever um diário.”

Para as três jovens escrever um "diário" seria manter um registo. Uma forma de "estar vivas". Ter um objectivo. Era uma forma de contra-atacar.

O "Diário de Rutka", outro testemunho desses anos, apareceu em 2006, na Polónia.

É desse livro, menos conhecido, que quero falar hoje.
Saíu em Portugal, na Sextante Editora, em 2007.


Um pequeno volume de poucas páginas: que fala de alguns meses só. De Janeiro a Abril de 43.

Rutka, menina de catorze anos, dotada para a escrita, observadora, curiosa, quando percebe que a sua é uma vida que não vai ter futuro, decide deixar um testemunho consciente, voluntário.

Vive no gueto de Bedzin, na Polónia, primeiro no que ela chama um “gueto aberto”, nas casas para onde foram levados, mas “impedidos” de se deslocar livremente, obrigados a respeitar as leis do gueto e a usar a “estrela amarela”.


Meses mais tarde, são levados para uma aldeia perto, Kamionka, um “gueto fechado”, entre muros e arame farpado, e guardas armados nas “saídas”.

Rutka vai vivendo, quer dizer, vai “procurando viver normalmente”. Tem 14 anos, tem namorados, amigos, amigas... Fala dessas paixonetas, das zangas e amuos com as amigas, das queixas da mãe que não a deixa fazer tudo o que ela, na sua ânsia de viver, quer.

No meio dessas queixas e desabafos dos 14 anos de qualquer adolescente normal, surge por vezes a o voz de alguém que amadureceu de repente e “sabe” que nada da sua vida é normal.

Fala com intensidade, sentimento de angústia, do futuro, receia o momento em que, uma madrugada, chegue o “comité de deportação”.

Num dia anódino da sua vida sempre igual, decide recordar (e fixa com palavras terrivelmente lúcidas e cruas) a “aktion” como lhe chama, cuja data anota cuidadosamente: dia 13 de Agosto de 1942.

Para nunca esquecer, diz ela...

Nessa manhã de Agosto, os alemães tinham conduzido ao campo desportivo da cidade os judeus, “arrebanhados” para serem contados, seleccionados como gado, destinados a campos de trabalho. Novos e velhos, homens e mulheres. Judeus.

Diz que a sua intenção é “não esquecer, e poder lembrar um dia” (ela ou alguém que possa vir a ler esse “diário”) a brutalidade do que viu: as mortes gratuitas, a violência sobre pessoas indefesas, mulheres e crianças. Como assassinato banal de um bébé cuja cabeça ela vê ser esmagada contra o poste da luz, só porque gritava.

Tudo descreve minuciosamente, lembrando o choque e a emoção da qual sabe que nunca se poderá curar.

Às vezes ainda tem esperança. Quando fala dos amigos Janek, Jumek, das declarações de amor, dos protestos ou das amigas Hala, Micka, dos ciúmes, dos amuos é como se a vida estivesse à espera dela...

Exclama: “Gostaria tanto de viver!”

Mas o destino dela está traçado: ser deportada para Auschwitz, com a família: o irmão pequenino, a mãe, a avó e o pai, Yakov Larkier, o único que vai sobreviver.

De Auschwitz, Yakov é enviado para um campo de trabalho na Alemanha que foi libertado em 1945 pelos americanos.

Segue para Bari onde fica um tempo num campo de refugiados e depois para Israel, onde viveu em Givatayim.


Casou, criou outra família.

É Zahava (*), filha desse 2º casamento, quem publica o “diário” de Rutka em 2007, com uma apresentação.

Nesse relato breve, Zahava refere o dia em que “vê” pela primeira vez a irmã e tem conhecimento da sua "existência".



Encontrara umas velhas fotografias escondidas detrás de uma roupa e impressiona-a a imagem de uma menina que se parecia com ela, abraçada a uma criança mais novinha: era Rutka que tem nos braços o irmão, Xenius.

O diário foi encontrado por Stanislawa Sapinska, na cavidade entre dois degraus das escadas de casa, onde Rutka lhe pedira que procurasse, no caso de ser deportada.
Guardou-o e lia-o de vez em quando. Mas os anos passaram, e só em 2006 o diário é publicado na Polónia.

Stanislawa contou a Zahava que costumavam sentar-se as duas no pátio da casa, na Kasernerstrass, requisitada pelos alemães quando criaram o gueto de Bedzin e cujo proprietário era o pai de Satnislawa.


Eram amigas e falavam de tudo, abertamente.

Sapinska tinha 20 anos e Rutka 14 mas, dizia ela, era uma “menina séria e madura”

Segundo Stanislawa, Rutka sabia o que se passava fora e conhecia a situação dos judeus deportados, sabendo pois o que a esperava, sem ilusões.
E que lhe dissera que estava a escrever um diário para que “ficasse” a testemunhar, já que ela não sobreviveria à guerra.

É graças ao seu diário, apesar de ela ter desaparecido, hoje nós podemos aquiescer ao seu pedido: “não esquecer, e poder lembrar um dia” a brutalidade do que viveu e viu.
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(*) Doutora em Ciências da Educação, Zahava Laskier Schetz faz parte do Departamento de Educação Científica, na Fundação Weizman em Israel

Billie Holiday & Louis Armstrong - Farewell to Storyville

sábado, 28 de agosto de 2010

Histórias de Mulheres: a Hanane

A Hanane e a Fathma, a comer couscous...


A Hanane veio para minha casa quando a Hassnâa se foi embora...

A Hassnâa sabia fazer tudo e a Hanane quando chegou não sabia nem pelar uma cenoura, ou descascar uma batata...
Nunca mais me esqueço dela, a cortar uma cebola, sem saber por onde lhe pegar, de olhos chorosos e concentrada no que fazia!

Gostava muito de fazer uns pães redondinhos e era só isso que sabia, confessou-me logo.

Às vezes, a Naïma, mulher do nosso jardineiro Mustafá, vinha ensiná-la. Outras vezes era a Fathma, pessoa boa, incansável, que a ajudava a cozinhar.
Mas eu gostava da Hanane e não a podia mandar embora! Sabia que precisava de trabalhar, que tinha de ganhar a vida, agora que o pai morrera.

A bela Grande Mesquita de Casablanca

O pai fora um próspero comerciante de móveis, em Casablanca, onde viviam sem problemas. Um dia, adoeceu de cancro, foi operado e morreu. Num curto espaço de tempo.
Contava-me que sofrera muito.
“Não só pelas dores...”

Queria morrer e, ao mesmo tempo, agarrava-se à vida, e não se consolava. Desesperava-o ainda mais saber o que a sua morte ia significar para a família.
“Ia deixar-nos desprotegidos, ele que nunca nos tinha faltado com nada.”

Era a filha mais nova, ela, e a mais mimada.

“Dava-me tudo o que eu queria”!, contava. “Era muito bom o meu pai”, dizia. “Nessa altura, tinha brinquedos, vestidos... Nunca trabalhei, madame...”

A mãe viu-se obrigada a organizar a vida da família, a ser controlada pelos cunhados, a vender bens, a fazer contas para o dinheiro chegar, ela que nunca precisara de pensar em coisa nenhuma.

A irmã do meio casou, logo a seguir ao luto, com o noivo de há muitos anos, e parecia feliz.

A mais velha ia ter de se sujeitar a casar com um homem velho, que já tinha uma outra mulher em casa.
“Coitada, não quer... Ele é gordo e velho. E rabugento!”
Tivera um namoro infeliz, contrariado pelos pais do rapaz, e ele tinha-a deixado.

“Ficou marcada, e já não é muito nova...”

Os irmãos procuravam trabalho e só um conseguira. Viviam em casa da mãe, giravam por Casablanca, ora tinham dinheiro, ora não tinham. Ninguém sabia o que faziam.

A Hanane foi tirar um curso de manicure para poder ganhar a vida. E agora ali estava , sem saber fazer mais nada se não arranjar unhas, pintar o cabelo:
“Disseram à minha mãe que a senhora era boa...”

Quando a irmã casou, trouxe-me o DVD em que os irmãos tinham filmado toda a festa.
O que mais me impressionou foi a irmã, a noiva triste, ao lado de um homem muito velho, e a Hanane a dançar sozinha, de olhos fechados e a sorrir, como num sonho.
Havia também uma imagem que mostrava as mãos das mulheres pintadas com henné, em arabescos lindíssimos.

"Sinais misteriosos...", ria-se ela. "As das noivas são as mais bonitas..."

E dizia que aquele pó cor de barro fazia bem a tudo: à pele, aos cabelos.

A Hanane gostava de se vestir bem, tinha um grande cuidado a arranjar-se, um pouco maquilhada, às vezes pintava o cabelo com henné ficando com uns tons avermelhados que lhe ficavam muito bem.
Trazia sempre as unhas bem arranjadas, num vermelho escuro, e as mãos dela eram bonitas. Era moderna a Hanane e gostava de passear, de se mostrar e gostava que a achassem bonita.

Mas quando ia a Casablanca, onde ia passar sempre o fim de semana, nos últimos tempos, dizia-me que preferia vestir a djellaba e não se pintava.
"Sinto-me mais segura assim, madame..."


Quando voltava, na segunda-feira, trazia sempre novidades e conversávamos as duas na cozinha enquanto ela fazia os "batebouts" para o lanche.

Falava-me da infelicidade da irmã, desprezada, batida pelo marido, maltratada e humilhada pela outra mulher, de quem era criada.

Um dia, em gravidez adiantada, foge, doente, para o hospital. Fica lá, tem a criança e a mãe depois levou-a para casa.

Vivia no terror que o marido a fosse buscar outra vez...

Pouco a pouco, a Hanane foi aprendendo um ou outro prato. Mas, muitas vezes não punha sal na comida, ou esquecia-se do acompanhamento.
Um dia trouxe de casa da mãe umas receitas: tajine de galinha com azeitonas, e outra com passas sultanas e pinhões.
Durante muito tempo ficámos a comer tajine de galinha...

Lembro uma vez quando um amigo nos foi visitar e lhe ensinou a fazer "gaspacho"! O ar espantado e, ao mesmo tempo, fascinado com que a Hanane e a Fathma olhavam para ele. Um homem a cozinhar era qualquer coisa que não imaginavam...
Era doce a Hanane, tinha meiguice a tratar comigo, acabei por me afeiçoar a ela.
Íamos juntas às compras e divertíamo-nos quando eu pegava no carro e ia a acelerar até ao primeiro semáforo, à saída do bairro de Souissi.

Ela ria, contente, fechando os olhos e mostrando os dentes muito brancos...

Outras vezes arriscávamo-nos até mais longe. Pela estrada que levava a Casablanca íamos até ao "Marjane", grande Centro Comercial moderníssimo.
A Kasbah des Oudaïas, vista do lado do mar

Ou levava-a ao centro da cidade, não à velha Medina, perto da Kasbah des Oudaïas,
que também conhecíamos, mas sim à parte nova de Rabat: a Avenida Mohamed V.
edifício dos Correios, em Rabat
Atravessando meia cidade, parando por aqui e por ali.
Ao fundo da avenida desmesurada, que corta a cidade ao meio, fica o belo Mausoléu de Mohamed V:

É a grande via do comércio, lojas, movimento, pastelarias e cafés.

A Avenida Mohamed V, de dia e "by night"...
Eu e a Hanane sentávamo-nos numa pastelaria, a comer bolinhos de amêndoa e a beber café.

Beber café era uma espécie de “transgressão” -ou provocação inocente...- para mim e para ela, pois o costume era tomar-se chá com hortelã.

Eu escolhia a mesa perto da vidraça e ficávamos as duas do lado de cá, a ver a rua, de costas viradas para os que lá estavam. Sentia olhares, pesados, nas minhas costas.
Se me virasse de repente, no entanto, veria apenas os rostos impávidos dos homens, encostados à parede, a fumar, a beber um chá de hortelã, ou um anis, como se nós não existíssemos.

Quando me vim embora de Marrocos, a mãe da Hanane veio buscá-la.

Vira-a poucas vezes. Era uma mulher alta e elegante, figura imponente, com um porte que me lembrava o da cantora egípcia Oum Kalthoum, que me habituara a ouvir quando a Hazna estivera lá em casa.

Trouxe-me uma djellaba como recordação. Ofereci-lhe um colar de pedras verdes que a minha filha me dera.

À despedida, a Hanane abraçou-se a mim, comovida. Vejo os olhos dela com lágrimas.
Deu-me um beijo e disse: “dou-te o Corão que o meu pai me ofereceu antes de morrer, para não te esqueceres de mim...”

O Corão que a Hanane me ofereceu, mais um "alaúde" que um dia me deu...

Um lindo exemplar embrulhado num saquinho de seda preta, que guardo na minha estante.

Nunca mais soube dela, mas não a esqueci.

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A famosa cantora egípcia, Oum Kalthoum:
http://www.youtube.com/watch?v=vjfH8a8wDOU

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A Libertação de Paris e a participação da "brigada espanhola"...

Soldados republicanos jurando bandeira, durante a Guerra de Espanha: os mesmos que, perseguidos e exilados em França, entraram nas "brigadas mistas" e participaram na libertação de Paris.
.........................
Recebi um comentário, ao último "post", de uma leitora portuguesa (que vive há 40 anos em Espanha), que transcrevo abaixo, com muito gosto, até porque é mais do que justo que se diga como foi!

Diz o comentário:

"O primeiro blindado aliado que entrou em Paris foi o "Guadalajara", pilotado inteiramente por soldados espanhóis, ignorados em todas as Histórias oficiais até que, com sessenta anos de atraso, a França lhes fez uma homenagem.

Imagem da tomada da Bastilha
À frente da Nona Divisão, formada por tanques espanhóis, estava o capitão Dronne, que escreveu nas suas Memórias:

"Eram homens muito valentes. Difíceis de mandar, orgulhosos, intrépidos, com uma experiência imediata de guerra. Atravessavam uma crise moral grave, como consequência da guerra civil espanhola. Desterrados e perseguidos, não duvidaram em pôr-se em primeira linha de combate, para combater o nazismo".

De facto, quando as tropas aliadas se aproximaram da zona de Paris, a Resistência Francesa desencadeia uma insurreição armada, em 19 de Agosto de 1944. Dessa insurreição fazem parte as brigadas espanholas.
A Libertação de Paris faz-se, em 25 de Agosto, com a entrada pela Porte d'Orléans da 2ª DB do General Leclerc, comandada pelo jovem capitão Raymond Dronne que atravessa as linhas inimigas, com a sua Nona Companhia (Régiment de Marche du Tchad).
Participaram da ofensiva as brigadas constituídas por combatentes espanhóis fugidos da Espanha fascista do General Franco.


Como muito bem diz Raymond Dronne sobre as brigadas republicanas: "homens valentes, humilhados e orgulhosos, desterrados e perseguidos não hesitaram em pegar nas armas para defender a liberdade!"


É altura de se lhes fazer justiça!

Nota

"Nesta batalha participaram activamente espanhóis republicanos exilados e sobretudo anarquistas, tanto nas filas da Resistência (1) como entre as tropas da 2ª Divisão Blindada francesa, em papéis destacados, ao ponto de as primeiras unidades militares aliadas que entraram em Paris serem compostas por antigos membros do Exército Popular Republicano.
Achava-se à frente das mesmas Amado Granell, que era, então, tenente do Exército francês, sendo igualmente antigo major de Milícias do Exército Popular Republicano, onde tinha comandado uma Brigada mista (2)."

(1) "A Resistência compreende por um lado a Resistência exterior que se organiza em torno do general de Gaulle a partir de Junho de 1940 e que engloba às Forças Francesas Livres e por outro lado aos movimentos de Resistência interior, conhecida como a Resistência, (em idioma (em francês: Résistance intérieure française ou Résistance apenas)"

(2) "Durante a Guerra de Espanha, as democracias ocidentais, França, o Reino Unido e Estados Unidos, decidiram manter-se à margem: uns em linha com sua política de não-confrontação com a Alemanha, outros porque pareciam preferir a vitória dos sublevados (as tropas fascistas do General Francisco Franco).

Não obstante, o caso da França foi especial, já que estava governada, nesses anos, tal como a Espanha, por uma Frente Popular. Muitos franceses participaram na Guerra de Espanha do lado das forças da República Espanhola, nas brigadas mistas, ou "brigadas internacionais. "

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Paris foi libertada há 66 anos! em 25 de Agosto de 1944: "Paris en colère", com Mireille Mathieu

a capa do DVD do filme, de René Clément (1966), "Paris já está a arder?"


Sim, há 66 anos exactos Paris, nas mãos dos alemães desde 1940, foi libertada pelas tropas do General Leclerc!
Ajudado pelos parisienses que desceram à rua...
Nessa manhã, uma 6ª feira, o General Leclerc da 2ª Divisão Blindada entra pela Porte d' Orléans e estabelece o Quartel-General na estação de Montparnasse.
Por outro lado, entram as tropas comandadas pelo general Rol Tanguy, que foi uma figura famosa da libertação da França.
Nessa tarde, a 4ª Divisão de Infantaria US do General Barton chega à Porte d'Italie.
O General Von Choltiz rende-se.
As tropas dao Exército da França Livre, comandadas por De Gaulle, já estavam à entrada de Paris.
Nesse dia, ao fim da tarde, De Gaulle entra em Paris e no dia seguinte desfila nos Champs-Elysées.
E pronuncia as primeiras palavras do célebre discurso:

"Paris! Paris ultrajada, Paris quebrada, Paris martirizada mas Paris libertada pelas próprias mãos...!"
"Le Monde" de 25 de Agosto de 2004, citação do discurso de De Gaulle

("por favor, por favor, se pudessem evitar mandar-nos para Guantanamano...", pedem os alemães vencidos -desenho de Plantu, o grande caricaturista francês)


Guardei estes jornais. Era "Le Monde" do dia 25 de 2004, porque na minhas turmas de Francês falei do assunto. Nas de Português, também, claro.
E recordo algumas dessas alunas, minhas amigas ainda: Alexandra, Ana Filipa, Carol, Luísa, Filipa, Susana...
Cansadas, vindas do trabalho, na noite das salas de aula, ainda tinham força para se interessar, curiosidade em ouvir, perguntar...
Entusiasmavam-se com a canção da Mireille Mathieu, cantavam e riam...

Festejavam-se os 50 anos nessa data. Era importante!
Mostrei-lhes o mapa dos movimentos, as fotografias, e leram alguns textos. Falámos de tantas coisas!

Era Paris, a cidade da Luz, mas também da Liberdade, Igualdade e Fraternidade fora ocupada...

"Igual para todos, de todas as raças e credos", diz o Artigo nº 1 da Constituição... Que ensinou ao mundo esses valores!
Importante não esquecer!
Paris, ocupada desde 1940, estava finalmente livre.

Hitler, dias antes, no dia 23 de Agosto, enviara um telegrama a Von Choltiz, o Comandante alemão em paris, dando ordem para que a cidade não "caia nas mãos do inimigo”...
Ou, caso isso seja impossível, que encontre apenas “um campo de ruínas”!

O general alemão Von Choltiz, no entanto, contrariou as ordens cada vez mais insistentes de Hitler para a destruição de Paris. Recusa-se a destruir Paris.
"Antes, em 6 de Junho de 1944, chamado o "Dia D", pelos Aliados, sob o comando do general Eisenhower, é feito o ataque estratégico que daria o golpe mortal nas forças nazistas que ainda resistem na Europa. Cinquenta e cinco mil soldados norte-americanos, britânicos e canadianos desembarcam nas praias da Normandia, na maior operação aeronaval da História, envolvendo mais de 5 mil navios e mil aviões. Os combates são pesados, com numerosas baixas. "
Começara o fim do pesadelo...
Mas muito havia ainda para fazer.
Muita gente morreu entretanto durante esses meses, nos campos de concentração... Outros sobreviveram, mas em que condições? Estas imagens lembram o título do livro de Primo Levi: "Isto é um homem?"
Lembro as duas figurinhas acima: Anne Frank e Rutka de cujos diários falarei em breve. E tantos, tantos outros nomes!
Só em 27 de Janeiro de 1945, o Exército Vermelho liberta Auschwitz, o maior e mais terrível campo de extermínio nazi. E em Abril de 1945 é libertado o campo de Bergen-Belsen na Alemanha.












O pesadelo continuava...
Mireille Mathieu canta "Paris en colère"

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Voltar a El-Jadida...



Estive pela primeira vez em El-Jadida era eu muito jovem. Pouco anos depois de ter casado...

El-Jadida, ou, antes, a antiga cidade de Mazagão, murada, uma das fortalezas que construiram os portugueses ao longo da costa de Marrocos.

Lembrava-me do “Hotel Marhaba”, o hotel mais fantástico que vi na vida! Ainda hoje, depois de tantas viagens, de ver tanto mundo, hotéis exóticos, clássicos, feios e bonitos, o “Marhaba” ficou-me na memória como o mais belo...

Era uma espécie de “8ª maravilha” do mundo. Do mundo dos meus sonhos, claro.

Situado na praia, com o areal branco e o mar em frente, plácido e azul turquesa, quase sem ondas, tinha atrás um jardim.

A vista era soberba. De um lado os pinhais, em frente só o mar. O mar, e um ou outro barco que deslizavam pelas águas em grande paz.

Lembro os cavaleiros que cavalgavam, ao pôr do sol, na areia molhada, pisando a réstea de sol dourada que tombava sobre a espuma das águas.

Nunca soube quem eram, nem de onde vinham, mas era um espectáculo inesperado e belo.

Os cavalos árabes, pequenos e nervosos, corriam no beige rosado da areia, levantando salpicos de água que ficavam suspensos no ar.

Os cavaleiros misteriosos olhavam em frente, cavalgando, indiferentes a tudo, sempre ao mesmo ritmo, desenhando as silhuetas, de perfil, na luz do poente.

Anos mais tarde, quando vivia em Marrocos, voltei a El-Jadida.

El-Jadida quer dizer, “a Nova”. Verdadeiramente “nova”, hoje, com prédios modernos, ruas bem traçadas, lojas, tráfico, agitação...

Tão diferente me pareceu da El-Jadida que eu lembrava, “a preto e branco”, mais próxima das fotografias que tirara nesse tempo do que da realidade, que esquecera...

A cidade velha, os fortins, os canhões ainda apontados para o largo, o bairro português com os nomes de ruas em árabe e em português -rua da Nazaré, rua Nova, por exemplo, essa felizmente continuava lá.

Com as mesmas vielas, os muros de pedra, as casas pobres, brancas, com as açoteias enfeitadas de parabólicas e de roupa estendida, o porto, e os portões gradeados, que fechavam entradas secretas, mergulhados na água azul.

Havia o restaurante “La Portugaise”, um restaurante simples, com mesas pequenas e toalhas aos quadrados vermelhos e brancos, onde se comia óptimo peixe.

E era bom falarmos com o empregado, mesureiro, que nos tratava com a delicadeza marroquina, e sorria porque éramos portugueses.

Nessa rua, ficava a Cisterna Portuguesa.

Belíssima sala subterrânea, construída no século XVI por um arquitecto italiano, e que foi uma "sala de armas" na cidade fortificada: a sala onde os Príncipes de Aviz fizeram a sua “vigília”, antes de serem armados cavaleiros na manhã seguinte.

Mais tarde, passou a ser usada como cisterna, para abastecer a cidade em água doce, aproveitando também o curso de um ribeirinho que ali vai desaguar e onde as mulheres ainda hoje lavam a roupa.

O espaço é maravilhoso, não há palavras para explicar melhor. Em estilo gótico, mas com um equilíbrio e proporções harmoniosas que muito guardam da leveza renascentista. Toda a contrução é de uma grande elegância, desde o tecto em abóbadas, de tijolos pequeninos, aos capitéis fortes que sustentam as colunas arredondadas.

Uma abertura no tecto deixa passar a luz e a chuva. Em baixo, uma bacia de mármore, recolhe a água das chuvas.

Essa água que transborda do recipiente, e inunda o chão de tijolos, obrigando-nos saltar de laje em laje.

Com seus tons esverdeados, iluminada pela luz tamisada, que desce do alto, a superfície líquida reflecte a arquitectura perfeita, como espelho invertido.

A cor verde e dourada das águas paradas são de uma beleza inigualável.

Seguindo pela rua fora, vai-se dar à "Porta do Mar", hoje fechada com um gradeamento enferrujado, correntes e cadeado!

A velha porta era o único acesso à cidade. Quando esta sofria os cercos frequentes das tribos vindas do interior, o mar era a saída e a salvação. E a Cisterna era a possibilidade de sobreviver, porque a água não faltava.

Umas escadas sobem, do lado direito, até ao passeio da ronda, onde estão os velhos canhões ameaçadores, metidos pelas frestas da muralha.

Ao fundo, o "Bastião do Anjo" com a sua vista para o mar azul, lindo, onde a imaginação se perde, com o olhar.

E a recordação da outra El-Jadida volta.

Onde estava o velho “Marhaba”?

Como dizia Heráclito: “não nos podemos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio...”

É uma verdade sólida e dura como pedras: tudo muda constantemente e nós também.

"E o “Hotel Marhaba”?..."

"Foi deitado abaixo, há uns anos...” responderam-nos.

"Talvez tenha sido melhor assim", pensei...

Acrescentaram que ia ser construído um hotel moderno no antigo local.

Desse sonho não restava, pois, se não a praia que nada era do que fora.

Onde os cavaleiros? E o pôr do sol daqueles dias? E nós? E a nossa juventude?