sábado, 28 de agosto de 2010

Histórias de Mulheres: a Hanane

A Hanane e a Fathma, a comer couscous...


A Hanane veio para minha casa quando a Hassnâa se foi embora...

A Hassnâa sabia fazer tudo e a Hanane quando chegou não sabia nem pelar uma cenoura, ou descascar uma batata...
Nunca mais me esqueço dela, a cortar uma cebola, sem saber por onde lhe pegar, de olhos chorosos e concentrada no que fazia!

Gostava muito de fazer uns pães redondinhos e era só isso que sabia, confessou-me logo.

Às vezes, a Naïma, mulher do nosso jardineiro Mustafá, vinha ensiná-la. Outras vezes era a Fathma, pessoa boa, incansável, que a ajudava a cozinhar.
Mas eu gostava da Hanane e não a podia mandar embora! Sabia que precisava de trabalhar, que tinha de ganhar a vida, agora que o pai morrera.

A bela Grande Mesquita de Casablanca

O pai fora um próspero comerciante de móveis, em Casablanca, onde viviam sem problemas. Um dia, adoeceu de cancro, foi operado e morreu. Num curto espaço de tempo.
Contava-me que sofrera muito.
“Não só pelas dores...”

Queria morrer e, ao mesmo tempo, agarrava-se à vida, e não se consolava. Desesperava-o ainda mais saber o que a sua morte ia significar para a família.
“Ia deixar-nos desprotegidos, ele que nunca nos tinha faltado com nada.”

Era a filha mais nova, ela, e a mais mimada.

“Dava-me tudo o que eu queria”!, contava. “Era muito bom o meu pai”, dizia. “Nessa altura, tinha brinquedos, vestidos... Nunca trabalhei, madame...”

A mãe viu-se obrigada a organizar a vida da família, a ser controlada pelos cunhados, a vender bens, a fazer contas para o dinheiro chegar, ela que nunca precisara de pensar em coisa nenhuma.

A irmã do meio casou, logo a seguir ao luto, com o noivo de há muitos anos, e parecia feliz.

A mais velha ia ter de se sujeitar a casar com um homem velho, que já tinha uma outra mulher em casa.
“Coitada, não quer... Ele é gordo e velho. E rabugento!”
Tivera um namoro infeliz, contrariado pelos pais do rapaz, e ele tinha-a deixado.

“Ficou marcada, e já não é muito nova...”

Os irmãos procuravam trabalho e só um conseguira. Viviam em casa da mãe, giravam por Casablanca, ora tinham dinheiro, ora não tinham. Ninguém sabia o que faziam.

A Hanane foi tirar um curso de manicure para poder ganhar a vida. E agora ali estava , sem saber fazer mais nada se não arranjar unhas, pintar o cabelo:
“Disseram à minha mãe que a senhora era boa...”

Quando a irmã casou, trouxe-me o DVD em que os irmãos tinham filmado toda a festa.
O que mais me impressionou foi a irmã, a noiva triste, ao lado de um homem muito velho, e a Hanane a dançar sozinha, de olhos fechados e a sorrir, como num sonho.
Havia também uma imagem que mostrava as mãos das mulheres pintadas com henné, em arabescos lindíssimos.

"Sinais misteriosos...", ria-se ela. "As das noivas são as mais bonitas..."

E dizia que aquele pó cor de barro fazia bem a tudo: à pele, aos cabelos.

A Hanane gostava de se vestir bem, tinha um grande cuidado a arranjar-se, um pouco maquilhada, às vezes pintava o cabelo com henné ficando com uns tons avermelhados que lhe ficavam muito bem.
Trazia sempre as unhas bem arranjadas, num vermelho escuro, e as mãos dela eram bonitas. Era moderna a Hanane e gostava de passear, de se mostrar e gostava que a achassem bonita.

Mas quando ia a Casablanca, onde ia passar sempre o fim de semana, nos últimos tempos, dizia-me que preferia vestir a djellaba e não se pintava.
"Sinto-me mais segura assim, madame..."


Quando voltava, na segunda-feira, trazia sempre novidades e conversávamos as duas na cozinha enquanto ela fazia os "batebouts" para o lanche.

Falava-me da infelicidade da irmã, desprezada, batida pelo marido, maltratada e humilhada pela outra mulher, de quem era criada.

Um dia, em gravidez adiantada, foge, doente, para o hospital. Fica lá, tem a criança e a mãe depois levou-a para casa.

Vivia no terror que o marido a fosse buscar outra vez...

Pouco a pouco, a Hanane foi aprendendo um ou outro prato. Mas, muitas vezes não punha sal na comida, ou esquecia-se do acompanhamento.
Um dia trouxe de casa da mãe umas receitas: tajine de galinha com azeitonas, e outra com passas sultanas e pinhões.
Durante muito tempo ficámos a comer tajine de galinha...

Lembro uma vez quando um amigo nos foi visitar e lhe ensinou a fazer "gaspacho"! O ar espantado e, ao mesmo tempo, fascinado com que a Hanane e a Fathma olhavam para ele. Um homem a cozinhar era qualquer coisa que não imaginavam...
Era doce a Hanane, tinha meiguice a tratar comigo, acabei por me afeiçoar a ela.
Íamos juntas às compras e divertíamo-nos quando eu pegava no carro e ia a acelerar até ao primeiro semáforo, à saída do bairro de Souissi.

Ela ria, contente, fechando os olhos e mostrando os dentes muito brancos...

Outras vezes arriscávamo-nos até mais longe. Pela estrada que levava a Casablanca íamos até ao "Marjane", grande Centro Comercial moderníssimo.
A Kasbah des Oudaïas, vista do lado do mar

Ou levava-a ao centro da cidade, não à velha Medina, perto da Kasbah des Oudaïas,
que também conhecíamos, mas sim à parte nova de Rabat: a Avenida Mohamed V.
edifício dos Correios, em Rabat
Atravessando meia cidade, parando por aqui e por ali.
Ao fundo da avenida desmesurada, que corta a cidade ao meio, fica o belo Mausoléu de Mohamed V:

É a grande via do comércio, lojas, movimento, pastelarias e cafés.

A Avenida Mohamed V, de dia e "by night"...
Eu e a Hanane sentávamo-nos numa pastelaria, a comer bolinhos de amêndoa e a beber café.

Beber café era uma espécie de “transgressão” -ou provocação inocente...- para mim e para ela, pois o costume era tomar-se chá com hortelã.

Eu escolhia a mesa perto da vidraça e ficávamos as duas do lado de cá, a ver a rua, de costas viradas para os que lá estavam. Sentia olhares, pesados, nas minhas costas.
Se me virasse de repente, no entanto, veria apenas os rostos impávidos dos homens, encostados à parede, a fumar, a beber um chá de hortelã, ou um anis, como se nós não existíssemos.

Quando me vim embora de Marrocos, a mãe da Hanane veio buscá-la.

Vira-a poucas vezes. Era uma mulher alta e elegante, figura imponente, com um porte que me lembrava o da cantora egípcia Oum Kalthoum, que me habituara a ouvir quando a Hazna estivera lá em casa.

Trouxe-me uma djellaba como recordação. Ofereci-lhe um colar de pedras verdes que a minha filha me dera.

À despedida, a Hanane abraçou-se a mim, comovida. Vejo os olhos dela com lágrimas.
Deu-me um beijo e disse: “dou-te o Corão que o meu pai me ofereceu antes de morrer, para não te esqueceres de mim...”

O Corão que a Hanane me ofereceu, mais um "alaúde" que um dia me deu...

Um lindo exemplar embrulhado num saquinho de seda preta, que guardo na minha estante.

Nunca mais soube dela, mas não a esqueci.

_________

A famosa cantora egípcia, Oum Kalthoum:
http://www.youtube.com/watch?v=vjfH8a8wDOU

2 comentários:

  1. Bonita história e bonita cidade.E bonito sorriso nos lábios de uma rapariga sem sorte:a vida não é justa, mas é admirável a capacidade que as pessoas têm de seguir sorrindo. Aprende-se mais dos perdedores que dos triunfadores! Beijinhos

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  2. Sei que tu sabes compreender. Obrigada.

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