quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Viagem a Marrocos: Os burrinhos de Fez


Fez é uma cidade linda e estranha, cheia de contrastes.


Da riqueza dos velhos palácios medievais e das mesquitas, com enfeites em materiais preciosos, chega-se à pobreza, ao abandono de certas vielas da cidade velha, até à "mellah", , o antigo bairro judeu ou à zona dos curtidores de peles, as "Tanneries" (curtumes), onde o couro é preparado, com tanino.

Esta é o bairro de Bab el-Ftouh, e é característico aqui o cheiro (pestilento) das tintas, dos ingredientes usados na própria "curtição".



Mas depressa se segue para o Bairro Andaluz, com a sua mesquita andaluza cheia de belos azulejos.

A chegada a Fez, vindos de Rabat, faz-se por uma auto-estrada das mais belas que conheço, pelo enquadramento.
As paisagens que atravessa são de grande variedade e beleza. Suaves colinas verdes, de contornos arredondados e doces, campos e campos a perder de vista, cobertos de malmequeres grandes, cor de laranja, coisa que não me lembro de ver em nenhum outro lugar.

A luz forte e crua do sol bem no alto faz brilhar tudo aqui em baixo. As pedras das montanhas surgem, de repente, como cristais, na sua brancura e chocam, ferem o olhar desprevenido. Mais adiante, do nada, aparecem florestas de árvores escuras, com as copas cerradas e troncos bem alinhados.

E a auto-estrada segue, serpenteando, descendo até Fez...

Fez, ainda hoje uma terra perdida no tempo entre a idade medieval e a idade moderna, foi a mais antiga cidade imperial (com Meknes) de Marrocos, foi a capital até 1912, data em que a França –que colonizou Marrocos- a mudou para Rabat.
É o centro religioso e espiritual mais importante do país, e nela está situada a universidade mais antiga do mundo, a Universidade Al-Qarawiyyn (ou El-Karaouine).
Perto dela, fica a Mesquita do mesmo nome.


A cidade velha, Fez El-Bali, a medieval, a das mais de 100 mesquitas cujos muezzin, ao cair da tarde, entoam no alto dos minaretes, como que ao desafio, a oração do fim do dia.
Quadro do pintor Jea-Léon Gérôme, "o muzzin"

Uma melopeia monótona e impressionante, sons que sobem e descem, vozes que se vão perdendo no ar, se cruzam como ecos, se respondem, e, de súbito, desaparecem.

Atrás, ficam os ruídos da Medina e das gentes que se apressam para o jantar.

A medina de Fez foi sempre um lugar claustrofóbico, para mim...



Quando entrava por uma das portas da Medina, normalmente era a Bab Bou Jeloud, nunca sabia quando ia poder sair!
Sabia, sim, que tinha de percorrer, lá dentro, um labirinto de ruas desconhecidas, ruelas indecifráveis nos mapas que levava, e que só sairia no momento em que o guia nos indicasse a saída...


Porque toda a medina é constiuída por essas ruelas a subir e a descer, tão inclinadas e estreitas que o único transporte possível para tudo o que exista, cargas e descargas, doentes, mudanças, abastecimento... é o indispensável -e amoroso- burro!
Muitas vezes pensei, nos momentos de cansaço, quando nunca mais via o fim do caminho, pois é verdade, muitas vezes pensei que quem me ia salvar, seria um burrinho daqueles!


Lá iam eles levar para dentro da Medina tudo o que faz falta, desde bilhas de gás, caixotes de madeira, sacas de carvão, detergentes, roupas. E até gente...


Às vezes vem a mula, senhoril e enfeitada, mais respeitada pelo dono...
Mas o mais frequente é verem-se os burrinhos, concentrados nos seus afazeres, com a doçura e a paciência de sempre, obrigados a acelerar o trote pelos donos, à força de pau.
Homens que não se coíbem de bater no lombo dos animais, nas pernas magras, ou, na melhor das hipóteses, na carga que levam...

Vão gritando: "burro! burro!", para afastar os passantes que se vêem obrigados a quase trepar para cima dos providenciais degraus das casas, ou encostarem-se nos portais, para os deixar passar.

Havia burros de
todos os feitios e tamanhos, jovens burros de olhos grandes e pestanudos, burros velhos de pelo cinzento e velho, de flor na orelha, com as pernas feridas, alguns a comer farripas de palha, numa paragem inesperada e benfazeja...



Enquanto vivi em Marrocos, pensava fazer um livro de fotografias só com os burros! Tenho pena de ter desistido da ideia, mas ainda guardo algumas, que aqui vos deixo, como lembrança.

Mas Fez é também a cidade dos principescos palácios : o maravilhoso Palácio Dar el- Makhzen, saído dos tempos d' As Mil e Uma Noites, hoje muitos deles adaptados a restaurantes de luxo.
Das mesquitas em número infindável e das madrasas (medrassa, ou medersa, era a escola onde se estudava o Corão), umas e outras igualmente ricas e belas: uma é a Madrasa El- Attarine, do século XIV, com o seu interior rico em mosaicos e azulejos, formando arabescos ou desenhando traços caligráficos (a religião islâmica proíbe qualquer representação humana, ou mesmo figuração animal), em cores de suaves matizes.
Recordo a Mesquita el-Karaouine, e também a Madrasa Cherratin, construída pelo Moulay-ar-Rachid, em 1670.

No interior da medina, aguarda-nos, porém, a surpresa de espaços abertos, amplas praças sombreadas de árvores frondosas, onde se bebe o refrescante chá verde com um grande molho de hortelã, e se comem bolinhos de amêndoa, passinhas de uva e tâmaras.

Fez é uma cidade inesquecível...

6 comentários:

  1. Oi MJ,
    isso post é maravilhoso! Pois acredito ser a primeira vez que ouço falar de Fez do ponto dos burrinhos que tem de ter a misma dignidade doutras coisas que se lembram dissa cidade. Quanto ao livro, acho que nao devia desistir... talvez reconsiderar de fazer isso com a lado as palavras e as descripçoes utilizadas nisso post...

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  2. Olá, Nela!
    Grazie!
    Fico sempre contente quando vens até aqui...
    Os burros de Marrocos pareceram-me excepcionais... Talvez porque há muitos e tem-se tempo de os observar com calma. De norte a sul do país!
    Mas os de Fez foram os que mais me impressionaram...
    Beijos e buon week end!

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  3. A ideia parece-me maravilhosa! Uma figura tão simpática e ao mesmo tempo triste e paciente... um testemunho silenciosos dos escravos de Fez!!

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  4. Gostei da história,Fez deve ser realmente muito bonita.De Marrocos,só
    conheço Casablanca.
    Tenho pena de não ter escolhido Marraquexe,mas o medo de me sentir mal
    com o calor,não
    me deixa pensar bem...e às vezes temos que fazer opções.É a vida...
    Beijos
    Branca José

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  5. Quis comentar o texto anterior, mas faltaram-me as palavras. Agora, parecem transbordar...Exímia contadora de histórias, mestre na arte de pintar com palavras - já o sabemos, mas a surpresa vai-se repetindo de dia para dia. Agora, estava eu posta em sossego a viajar pelos livros, quando a Maria João resolve aguçar-me o apetite de partir para Fez... Resisto, tenho de resistir. E escrevo(-lhe), e vou deixar a cidade de lado, e tantas outra coisas. Mas os burrinhos de Fez, ah!, esses estão cantados para todo o sempre na língua portuguesa!
    Sem terem histórias nem grandeza, nas suas mãos de artista deram uma aguarela. Qual pic-nic de burguesas, qual ramalhete rubro de papoulas, qual seio pudico de donzela?!... Os burrinhos de Fez, sim, esses seres dóceis, companheiros dos estrangeiros (e não só) em Marrocos- são eles que me(nos) cativam. Não me parecem nada diferentes dos burrinhos de Portugal - dos que em tempos houve e ainda se vêem por terras benditas de Trás-os Montes. Mas esquecidos, aliás, como esquecido está o interior de Portugal, país cada vez mais reduzido a um "jardim à beira mar plantado"...
    Fabuloso texto, Maria João!
    Muitos Parabéns!
    Grande Abraço da Lurdes

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  6. Bem, isto não é um "comment", é um BIG COMMENT!
    "Dimais, dôtôra!", diria a Milly das minhas histórias de S. Tomé, "dimais!..."
    Não exageremos... Mas os burrinhos de Fez mereciam a lembrança e o teu entusiasmo!
    Por eles, aceito o elogio à "aguarela"... (Oh, quem me dera fazer essa aguarela!)
    Os burrinhos de cá, adoro-os, mas não os vejo há tanto! Ainda bem que os há em Trás os Montes...
    No jornal, li há uns tempos que uns "maduros" tinham decidido fazer um "lar" (retiro, sossego, paz...) para burros velhos e abandonados e achei-os sensacionais!
    Um grande beijo, querida!
    Obrigada.

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