Íamos brincar para a Corredoura, nesses tempos da minha infância.
Era um pequeno parque, em terreno inclinado, que subia até à rua de cima, a Rua da Escola Técnica.
Havia o parque infantil com os seus divertimentos, cavalinhos de madeira, o "sobe e desce", o escorregador e a areia onde caíamos.
E havia flores, arbustos recortando canteiros de pedrinhas, formando sebes torneadas, com bagas pequeninas e bem encarnadas.
E havia áleas de areia batida, com banquinhos de cada lado, para se descansar do passeio.Evoco sempre um quadrinho de Miguel Barrias, de grande intimidade, com dois vultos caminhando apoiados um ao outro.
Para mim, aquele óleo, que via em casa dos meus pais e que hoje é meu, era a minha Corredoura no Outono, com as folhas pintalgadas de amarelo e vermelho.
Era igual ao caminho que eu conhecia e ia dar ao parque, ladeado de árvores, com um banco de madeira, de um lado e do outro.
A meio do parque, havia um lago, protegido com grades altas, onde nadavam peixinhos encarnados.
Levávamos miolinhos de pão nos bolsos para deitar no lago e chamar a atenção dos peixes.
Vê-los nadar, em sinuosas linhas vermelhas, em direcção a nós, era um prazer enorme para mim nessa altura.
Um dia tive a ideia de ir pescar!
Peguei num carrinho de linhas e num alfinete que a Florinda me dobrou ao meio e prendi no bico do alfinete um bocado de pão.
Os peixinhos vieram velozes e comeram o pão. Claro que eu não pesquei nada, mas também sei que a minha intenção não era essa. Nem sonhava poder matar desse modo cruel um daqueles mágicos seres que adorava ver!
Do lado de dentro, havia árvores altas. Salgueiros. Olmos. Choupos.
Via-se a rama de um choupo chorão que pendia, tocando ao de leve as águas verdes.
A casa amarela não era suficientemente espaçosa para permitir as brincadeiras que, ao ar livre, eram possíveis.
Lá vínhamos todas, de bibes brancos com folhos nos ombros, e laços na cabeça.
De Inverno, vestíamos camisolas de lã, por debaixo desses tais bibes, e meias de renda grossa a sair das eternas botas de cabedal com atilhos de que eu gostava tanto.
E as faces vermelhas do frio.
E os olhos brilhantes.
Eu era uma maria-rapaz, saltava, corria, esfolava os joelhos nas quedas e continuava.
Um dia ofereceram-me uma bola vermelha. Eu gostava muito de jogar à bola!
Vejo-me na fotografia agarrada a ela, com força, e um travo de melancolia que às vezes tinha nas fotografias desse tempo.
Numa das áleas da Corredoura, havia um banco de pedra, caiado de branco, arqueado no espaldar, atrás. E um grande retrato de bronze que soube ser do poeta da cidade, José Duro, que morreu tuberculoso, jovem e infeliz, do qual muitos anos mais tarde li os poemas.
Não sei onde foi parar esse baixo-relevo com o perfil do poeta.
A D. Maria da Alegria, a minha professora, esperava ao pé da porta do quintal, pigarreava e tinha a respiração ofegante que lhe conhecia desde os primeiros dias. Sofria da tiróide. Pelo menos era o que eu ouvia dizer, que tinha "bócio"... Um dia foi operada e ficou com uma cicatriz enorme, no pescoço, que me afligia.
Outras vezes, é a minha imagem ao lado da minha tia, bem agarrada a ela, a descer pelo passeio inclinado, que eu recordo.
Nessa imagem, a minha tia traz um casaco de Inverno, comprido. Imagino-a a rir, o bâton vermelho e os cabelos um pouco encaracolados, de risco ao lado, presos com um ganchinho.
Eu, com o meu casaquinho felpudo muito quente, estou de boca aberta.
Penso que era uma criança bem disposta. Às vezes tinha as minhas birras, mas, ali, estava contente porque era o meu tio que ia connosco e estava a tirar a fotografia.
Vejo as árvores perderem as folhas amarelas, depois os ramos secos e esticados e os troncos esbranquiçados dos salgueiros.
Vejo a chuva miudinha começar a cair.
Chegava o Inverno e nessa estação só saíamos nos dias de sol. Ficava de trás dos vidros a ver os regatinhos de chuva nos vidros, ou chegada à braseira a ler, ou à espera das castanhas assadas que a Florinda fazia para nós.
Depois, a Primavera e as florinhas brancas, ou cor de rosa, ou de todas as cores, rebentavam.
Recordo o perfume dos liláses. Havia árvores de lilás, na Corredoura, com suas flores de pétalas de um roxo delicado, e pequeninas, em cachos pendentes.
E voltávamos a sair, para ir brincar para a Corredoura...
O tempo passa tão depressa. Onde estão hoje essas amigas? E a casa amarela e a gente que lá viveu? E o parque da Corredoura onde está? E o busto de José Duro?
Nota: as fotografias da Corredoura foram-me "cedidas" por um portalegrense, José Fernando; o quadro é de Miguel Barrias, pintor nascido em Vila Real mas que viveu em Portalegre; o quadrinho da casa amarela é da minha autoria...
Miguel Barrias(Vila Real, 1904-1952)
Funda no Porto, em Janeiro de 1929, com Heitor Cramez, uma empresa de ensino por correspondência na área do desenho, designada por Escola Nacional de Desenho.
Assume as funções de professor provisório da Escola Comercial e Industrial José Júlio Rodrigues no ano lectivo de 1929-30, substituindo Trindade Chagas.
As amigas estão na cabeça e no coração.
ResponderEliminarA menina MJ era linda e transformou a Corredoura (um sítio em que passeei algumas vezes) num poema.
As histórias que conta são muito bonitas.
A pintura outonal é linda e deve ter sido pintada por um pintor portalegrense (?). A aguarela com a casa amarela está linda.
Não foi o Van Gogh que viveu também numa casa amarela?
Gostei muito de tudo. Grata também pelo comentário que deixou no meu canto. Deixei lá uma pergunta.
Beijinhos! :)
Tudo muito belo
ResponderEliminarO Outono é assim
um apeadeiro para as belas tempestades
Gosto muito quando se recorda de coisas belas assim, realmente daria e deu um livro.
ResponderEliminarbjs e saudade
Que lindo post.
ResponderEliminarQuanta ternura nestas memórias, naquele quadro do Miguel Barrias...
E aquela menina ali, parece muito bem comportada!
Um beijinho
Completei um pouco o post, com uma nota sobre Barrias e sobre o amigo portalegrense que me cedeu as fotos da Corredoura!
ResponderEliminarObrigada pelas palavras amigas...
o falcão
É sempre tão reconfortante ler as suas histórias... enchem-me de ternura e nostalgia...
ResponderEliminarObrigada pela partilha.
beijinho
Adorei MJ Falcão.
ResponderEliminarUm grande beijinho
Blue
À menina maria-rapaz, um obrigada pela porta aberta para as suas memórias felizes.
ResponderEliminarComo eras linda agarrada à tua bola. Estás igual.
Beijo grande.
Helena
Olá, Maria João
ResponderEliminarTambém eu fui maria-rapaz. Adorava jogar à bola e era raro o dia que não chegava a casa com as calças rasgadas e os joelhos esfolados. Sim, porque eu não usava saias...isso era coisa de meninas!!
Tantas saudades desses tempos!! Não havia preocupações; apenas inocência e vontade de brincar e descobrir.
As histórias da casa amarela, que na verdade não são histórias são realidade, são maravilhosas. Adorei ler o livro.
De maneiras diferentes, mas muitos de nós na n/ infância também vivemos numa casa amarela... é tão bom recordar e sonhar!!
Um beijinho do tamanho do mundo,
Cláudia
Querida Maria João,
ResponderEliminarTambém me recordo da Corredoura assim. Hoje, é um espaço sem identidade nem qualidade.
O que seria de nós sem as memórias?
Beijinhos com imensas saudades
Na Casa Amarela guardas as vivências mais incontaminadas, e é onde mais gostas de voltar.
ResponderEliminarDepois veem outras casas, de muitas cores, e a todas elas já só podemos aceder com a memória e a saudade.
A única vida possível é sempre isto; aqui; agora.
Mando-te um beijinho enorme
O quadrinho da tua autoria é uma ternura...
Vê-se que era uma menina feliz e é impressionante como mantém vivas essas memórias da infância. Eu também usava desses "bibes", mas não me recordo de tantas coisas, nem sei escrever assim (e muito menos pintar).
ResponderEliminarMuito obrigada pelo prazer que me deu, amiga.
Tens um livro publicado sobre a casa amarela? Conta-me!
ResponderEliminarA magia da Corredoura de antigamente foi perdida. Era linda noutros tempos.
ResponderEliminarAs tuas fotos de infância são lindas, o teu olhar continua o mesmo.
Hoje o jardim da Corredoura não tem nada de mágico, é como diz a D. Luísa "um espaço sem identidade.."
Beijos Falcão Lunar
Estou toda contente! Tantas mensagens boas!
ResponderEliminarLivros, Maria, tenho um publicado em São Tomé do qual me resta um exemplar: dei os outros todos! Ainda não te conhecia, foi em 2006.
Os outros são uns livrinhos que a minha filha me trouxe impressos (surpresa grande!)da Índia: Histórias da Casa Amarela (que tenho indo publicado por aqui...) e Recordação da Ilha...(posso arranjar-te um exemplar!!!)
Que pena que a Corredoura já não seja a mesam, Carlota! Tinha tanta magia, como tu dizes. Ou era a magia dos nossos olhos, na infância???
Fico à espera desse livro que me podes arranjar, e desejo-te já agora uma noite descansada, como dizia a minha avó.
ResponderEliminarMary Jo... Olá, minha linda...
ResponderEliminarObrigada pela tua partilha... Sempre cheia de cor, a pinceladas como só tu as dás...
Sem Corredoura e outras ouras, mas com o oiro bravio da esperança, e o brilho do sonho, caminhas na companhia de quem te quer ver, ler e sentir...
Beijos, muitos...
Romi