Mário de Sá-Carneiro nasce em Lisboa, em 19 de Maio de 1890. Em Abril de 1916, suicida-se em Paris.
Descubro coisas que me impressionam, pela inteligência e sensibilidade, e que me ajudam a pensar sobre o poeta e a poesia.
Continua Gaspar Simões:
“Já um dia o escrevi: a sua obra é uma tentativa de fuga por inadaptação. Uma fuga por inadaptação incompleta. Inadaptado ao mundo, tentou partir para onde houvesse harmonia entre a sua sensibilidade e o meio em que exercê-la; inadaptado ao “Astro” para onde se evadira (...) regressou à terra para nela soçobrar."
E esse seu "conflito" com a vida como o viveu?
N ão me acho no que projecto.
Ou: perdi-me dentro de mim
João Gaspar Simões escreve um Prefácio fundamental (para o qual não pediu nunca qualquer pagamento à Editora) ao volume de “Poesia II” - cito a edição de 1973 (Editora Ática, pp 12 e 13).
Descubro coisas que me impressionam, pela inteligência e sensibilidade, e que me ajudam a pensar sobre o poeta e a poesia.
Deixo algumas passagens deste "ensaio":
“Quando da poesia lírica se trata: então toda a comunicabilidade está na própria poesia. Aí temos de ir buscar o seu corpo e o seu espírito.”
“A poesia clássica contava; a poesia moderna sugere. Isto para reduzir a uma fórmula relativamente simples o que por natureza é complexo.”
“Logicamente, discursivamente, nada há a fazer: a menos que se pretenda substituir por qualquer discurso arbitrário aquilo que por natureza é silêncio, êxtase, símbolo.”
Continua Gaspar Simões:
“Já um dia o escrevi: a sua obra é uma tentativa de fuga por inadaptação. Uma fuga por inadaptação incompleta. Inadaptado ao mundo, tentou partir para onde houvesse harmonia entre a sua sensibilidade e o meio em que exercê-la; inadaptado ao “Astro” para onde se evadira (...) regressou à terra para nela soçobrar."
E esse seu "conflito" com a vida como o viveu?
Viveu-o “apenas no campo estético".
"Sensível, não inteligente; inteligente só quando sensível. Os seus sentidos sentiam de mais."
"Havia nele o excesso. 'Morro à míngua, de excesso', ele o disse. O afinamento dos sentidos era tão agudo em Sá-carneiro que ultrapassava a sensação." (...) Sentia-se transparente: não detinha a sensação do mundo, a percepção da realidade (...) era um cristal translúcido. Quem vê um cristal?""Sensível, não inteligente; inteligente só quando sensível. Os seus sentidos sentiam de mais."
"Sensível até ao imponderável, toda a realidade o tocava. Melhor, toda a realidade o atravessava. E ele, sentindo-se atravessado por ela, percebia-se sem realidade perante o mundo".
Dispersão
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:Se me olho a um espelho, erro-
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,É com saudades de mim.”
In "Dispersão", Paris Maio 1913
Nos seus últimos poemas (1915/1916), diz ainda Gaspar Simões:
"Esse cristal que ele era torna-se opaco. Ou, pelo menos, humano. Passa a reflectir a luz. As suas virtudes demasiado formais na fase meramente sensitiva ganham uma densidade humana imprevista."
In "Dispersão", Paris Maio 1913
Nos seus últimos poemas (1915/1916), diz ainda Gaspar Simões:
"Esse cristal que ele era torna-se opaco. Ou, pelo menos, humano. Passa a reflectir a luz. As suas virtudes demasiado formais na fase meramente sensitiva ganham uma densidade humana imprevista."
"É preciso frisar que estas duas fases não são perfeitamente distintas na obra de Sá-Carneiro", assinala Gaspar Simões.
Interpenetram-se.
"(...) agora para Sá-Carneiro chegou o momento decisivo. Não pode suportar mais o mundo, onde continua um ser à parte, criatura sem suporte, homem sem amigos."
Tem de abandonar Paris, o seu "abrigo", o lugar que ama...
A ideia da morte invade-o, persegue-o.
O abrigo
Paris da minha ternuraÓ meu Paris, meu menino,Meu inefável brinquedo...-Paris do lindo segredoAusente do meu destino.Perdi-me dentro de mimPorque eu era labirinto,E hoje, quando me sinto,É com saudades de mim.Passei pela minha vidaUm astro doido a sonhar.Na ânsia de ultrapassar,Nem dei pela minha vida...Para mim é sempre ontem,Não tenho amanhã nem hoje:O tempo que aos outros fogeCai sobre mim feito ontem.(O Domingo de ParisLembra-me o desaparecidoQue sentia comovidoOs Domingos de Paris:Porque um domingo é família,É bem-estar, é singeleza,E os que olham a belezaNão têm bem-estar nem família).O pobre moço das ânsias...tu, sim, tu eras alguém!E foi por isso tambémQue te abismaste nas ânsias.in "Indícios de Oiro" Paris em Setembro 191 Tudo se precipita de repente. Paris vai-lhe ser "tirado", o pai não lhe vai mandar dinheiro e quer que volte a Lisboa. Desesperado, tenta matar-se uma vez, não consegue. Algures num balouço uma criança balouça sobre o precipício. Escreve uma carta a Fernando Pessoa "anunciando" o suicídio e, dessa vez, consegue. Era Abril de 1916. Mário de Sá-Carneiro envenena-se com estricnina.Na minha Alma há um balouçoO RecreioQue está sempre a balouçar Balouço à beira dum poço, Bem difícil de montar... E um menino de bibe Sobre ele sempre a brincar... Se a corda se parte um dia (E já vai estando esgarçada), Era uma vez a folia: Morre a criança afogada... Cá por mim não mudo a corda, Seria grande estopada... Se o indez morre, deixá-lo... Mais vale morrer de bibe Que de casaca...Deixá-lo balouçar-se enquanto vive...Mudar a corda era fácil... Tal ideia nunca tive..."Indícios de Oiro"; Paris, Setembro 1915Para terminar, vou procurar estas palavras de Gaspar Simões, magistrais:
Caranguejola
"Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
P'ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito p'ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...
Noite sempre p'lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
P'lo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...
Se me doem os pés e não sei andar direito,
P'ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde.
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará
P'ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. C'o a breca! levem-me p'rá enfermaria -
Isto é: p'ra um quarto particular que o meu pai pagará.
Justo. Um quarto de hospital - higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo...
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras.
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou."
"Últimos poemas"- Paris Novembro 1915
A corda do balouço partiu-se, o menino afogou-se, morreu de bibe...
A corda do balouço partiu-se, o menino afogou-se, morreu de bibe...
retrato pintado por Abel Manta
Gostei muito deste post.
ResponderEliminarGosto dos poemas que escolheu.
Beijinhos
Um dos meus escritores dilectos. O primeiro de quem li toda a obra.
ResponderEliminarP.S. Uma pequena correcção: suicidou-se em 1916.
Bom fim-de-semana.
MJ,
ResponderEliminarMário de Sá Carneiro morreu com o bibe de menino. Morreu naquele quarto em Paris, morreu precocemente... e eu lamento tanto que tivesse morrido daquele jeito.
Adoro-o tal como adorei a sua postagem. Tudo muito belo! :)
Beijinhos.
Uma lição de Gaspar Simões -mais uma lição de João Gaspar Simões- sobre Sá-Carneiro.
ResponderEliminarAprende-se mesmo quando se relê.
Gaspar Simões é o maior crítico literário português de todos os tempos.
Gaspar Simões (também novelista, romancista e dramaturgo) é um dos nossos grandes do século XX.
Gaspar Simões é, hoje, indecente e incultamene, o escritor português contemporâneo mais esquecido.
Que vergonha!
Maria João,
ResponderEliminarQue post fascinante! E que bom relembrar Sá-Carneiro, sempre ofuscado por Fernando Pessoa.
Tenho uma paixão (como muita gente) por Pessoa, mas nos últimos tempos revalorizei Sá-Carneiro. Nalguns aspectos, Sá-Carneiro ainda é mais actual que o seu grande amigo.
Tenho-o relido com admiração e encantamento.
O seu texto e imagens fazem inveja a ensaios ambiciosos que circulam em revistas sisudas...
Muitos parabéns!
Beijinhos,
lurdes
Tenho uma enorme admiração por Sá Carneiro e sempre falo nele aos meus alunos. Conhece a noite de Adriana Calcanhoto com a poesia dele?
ResponderEliminarBeijinhos com imensa saudade
Que bom ver como é amado Sá-Carneiro.Tão mal-amado ou pouco-amado pelas "Selectas" e "Antologias" poéticas. Tão verdadeiro e duro e doloroso...
ResponderEliminarObrigada André, já corrigi a data.
Ana, pelo menos este "não traiu a sua infância", não aceitou compromissos.
Claro, Manuel, que o Gaspar Simões era grande!
Sim, Lurdes, tens razão: "Nalguns aspectos, Sá-Carneiro ainda é mais actual que o seu grande amigo."
Luisinha não conheço essa canção, só conheço "eu não sou eu/nem sou o outro..." Vou procurar.
Bom domingo para todos!
O que dizer depois que a Lurdes disse tudo, com uma precisão cirúrgica?
ResponderEliminar"O seu texto e imagens fazem inveja a ensaios ambiciosos que circulam em revistas sisudas..."
Querida M. J. Falcão, obrigado por nos fazer lembrar da grandeza, algo esquecida, desse grande escritor português.
A confissão de Lúcio é um momento sublime da literatura portuguesa e sua correspondência com Fernando Pessoa é genial.
Um fraterno abraço do lado de cá do Atlântico, onde o sol tropical nos faz quase derreter.