sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Voltando à Poesia: relendo Mário de Sá Carneiro...

Mário de Sá-Carneiro nasce em Lisboa, em 19 de Maio de 1890. Em Abril de 1916, suicida-se em Paris.

João Gaspar Simões escreve um Prefácio fundamental (para o qual não pediu nunca qualquer pagamento à Editora) ao volume de  “Poesia II” - cito a edição de 1973 (Editora Ática, pp 12 e 13).


Descubro coisas que me impressionam, pela inteligência e sensibilidade, e que me ajudam a pensar sobre o poeta e a poesia. 


Deixo algumas passagens deste "ensaio":
“Quando da poesia lírica se trata: então toda a comunicabilidade está na própria poesia. Aí temos de ir buscar o seu corpo e o seu espírito.”


“A poesia clássica contava; a poesia moderna sugere. Isto para reduzir a uma fórmula relativamente simples o que por natureza é complexo.”


 “Logicamente, discursivamente, nada há a fazer: a menos que se pretenda substituir por qualquer discurso arbitrário aquilo que por natureza é silêncio, êxtase, símbolo.”


Continua  Gaspar Simões: 


“Já um dia o escrevi: a sua obra é uma tentativa de fuga por inadaptação. Uma fuga por inadaptação incompleta. Inadaptado ao mundo, tentou partir para onde houvesse harmonia entre a sua sensibilidade e o meio em que exercê-la; inadaptado ao “Astro” para onde se evadira (...) regressou à terra para nela soçobrar."




E esse seu "conflito" com a vida como o viveu?
Viveu-o “apenas no campo estético"


"Sensível, não inteligente; inteligente só quando sensível. Os seus sentidos sentiam de mais."
"Havia nele o excesso. 'Morro à míngua, de excesso', ele o disse. O afinamento dos sentidos era tão agudo em Sá-carneiro que ultrapassava a sensação." (...) Sentia-se transparente: não detinha a sensação do mundo, a percepção da realidade (...) era um cristal translúcido. Quem vê um cristal?"
"Sensível até ao imponderável, toda a realidade o tocava. Melhor, toda a realidade o atravessava. E ele, sentindo-se atravessado por ela, percebia-se sem realidade perante o mundo".

Disperso e perdido. Perdido dentro de si próprio...A dispersão é um do seus estados de espírito.

Dispersão
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:


Se me olho a um espelho, erro-
Não me acho no que projecto.

Ou: perdi-me dentro de mim


Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,


É com saudades de mim.”


In "Dispersão", Paris Maio 1913
Nos seus últimos poemas (1915/1916), diz ainda Gaspar Simões: 


"Esse cristal que ele era torna-se opaco. Ou, pelo menos, humano. Passa a reflectir a luz. As suas virtudes demasiado formais na fase meramente sensitiva ganham uma densidade humana imprevista."
"É preciso frisar que estas duas fases não são perfeitamente distintas na obra de Sá-Carneiro", assinala Gaspar Simões. 

Interpenetram-se.

"(...) agora para Sá-Carneiro chegou o momento decisivo. Não pode suportar mais o mundo, onde continua um ser à parte, criatura sem suporte, homem sem amigos."

Tem de abandonar Paris, o seu "abrigo", o lugar que ama...
A ideia da morte invade-o, persegue-o.


O abrigo

Paris da minha ternura
Ó meu Paris, meu menino,
Meu inefável brinquedo...
-Paris do lindo segredo
Ausente do meu destino.
Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto, 
E hoje, quando me sinto, 
É com saudades de mim. 
  
Passei pela minha vida 
Um astro doido a sonhar. 
Na ânsia de ultrapassar, 
Nem dei pela minha vida... 
  
Para mim é sempre ontem, 
Não tenho amanhã nem hoje: 
O tempo que aos outros foge 
Cai sobre mim feito ontem. 
  
(O Domingo de Paris 
Lembra-me o desaparecido 
Que sentia comovido 
Os Domingos de Paris: 
  
Porque um domingo é família, 
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza 
Não têm bem-estar nem família). 
  
O pobre moço das ânsias... 
tu, sim, tu eras alguém! 
E foi por isso também 
Que te abismaste nas ânsias. 
in "Indícios de Oiro" Paris em Setembro 191 Tudo se precipita de repente. Paris vai-lhe ser "tirado", o pai não lhe vai mandar dinheiro e quer que volte a Lisboa. Desesperado, tenta matar-se uma vez, não consegue. Algures num balouço uma criança balouça sobre o precipício. Escreve uma carta a Fernando Pessoa "anunciando" o suicídio e, dessa vez, consegue.  Era Abril de 1916. Mário de Sá-Carneiro envenena-se com estricnina.  
O Recreio
Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar Balouço à beira dum poço, Bem difícil de montar... E um menino de bibe Sobre ele sempre a brincar... Se a corda se parte um dia (E já vai estando esgarçada), Era uma vez a folia: Morre a criança afogada... Cá por mim não mudo a corda, Seria grande estopada... Se o indez morre, deixá-lo... Mais vale morrer de bibe Que de casaca...
Deixá-lo balouçar-se enquanto vive...
Mudar a corda era fácil... Tal ideia nunca tive...
"Indícios de Oiro"; Paris, Setembro 1915
Para terminar, vou procurar estas palavras de Gaspar Simões, magistrais:
"O Homem que afronta a morte é um homem: Sá-Carneiro desceu, pois, ao plano da vida, por estar prestes a fechar-se no seu quarto de Paris, de smoking vestido, pronto para a viagem derradeira. Morre em beleza, já que em beleza não pôde viver."
Caranguejola

"Ah, que me metam entre cobertores,

E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...

Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.

P'ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito p'ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...
Noite sempre p'lo meu quarto. As cortinas corridas,

E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
P'lo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...
Se me doem os pés e não sei andar direito,

P'ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde.
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?

E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará

P'ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. C'o a breca! levem-me p'rá enfermaria -
Isto é: p'ra um quarto particular que o meu pai pagará.
Justo. Um quarto de hospital - higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;

Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo...
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras.
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou."
"Últimos poemas"- Paris Novembro 1915


A corda do balouço partiu-se, o menino afogou-se, morreu de bibe...
retrato pintado por Abel Manta

8 comentários:

  1. Gostei muito deste post.
    Gosto dos poemas que escolheu.
    Beijinhos

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  2. Um dos meus escritores dilectos. O primeiro de quem li toda a obra.

    P.S. Uma pequena correcção: suicidou-se em 1916.

    Bom fim-de-semana.

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  3. MJ,
    Mário de Sá Carneiro morreu com o bibe de menino. Morreu naquele quarto em Paris, morreu precocemente... e eu lamento tanto que tivesse morrido daquele jeito.
    Adoro-o tal como adorei a sua postagem. Tudo muito belo! :)
    Beijinhos.

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  4. Uma lição de Gaspar Simões -mais uma lição de João Gaspar Simões- sobre Sá-Carneiro.

    Aprende-se mesmo quando se relê.

    Gaspar Simões é o maior crítico literário português de todos os tempos.

    Gaspar Simões (também novelista, romancista e dramaturgo) é um dos nossos grandes do século XX.

    Gaspar Simões é, hoje, indecente e incultamene, o escritor português contemporâneo mais esquecido.

    Que vergonha!

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  5. Maria João,

    Que post fascinante! E que bom relembrar Sá-Carneiro, sempre ofuscado por Fernando Pessoa.
    Tenho uma paixão (como muita gente) por Pessoa, mas nos últimos tempos revalorizei Sá-Carneiro. Nalguns aspectos, Sá-Carneiro ainda é mais actual que o seu grande amigo.
    Tenho-o relido com admiração e encantamento.

    O seu texto e imagens fazem inveja a ensaios ambiciosos que circulam em revistas sisudas...
    Muitos parabéns!
    Beijinhos,
    lurdes

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  6. Tenho uma enorme admiração por Sá Carneiro e sempre falo nele aos meus alunos. Conhece a noite de Adriana Calcanhoto com a poesia dele?
    Beijinhos com imensa saudade

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  7. Que bom ver como é amado Sá-Carneiro.Tão mal-amado ou pouco-amado pelas "Selectas" e "Antologias" poéticas. Tão verdadeiro e duro e doloroso...
    Obrigada André, já corrigi a data.
    Ana, pelo menos este "não traiu a sua infância", não aceitou compromissos.
    Claro, Manuel, que o Gaspar Simões era grande!
    Sim, Lurdes, tens razão: "Nalguns aspectos, Sá-Carneiro ainda é mais actual que o seu grande amigo."
    Luisinha não conheço essa canção, só conheço "eu não sou eu/nem sou o outro..." Vou procurar.
    Bom domingo para todos!

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  8. O que dizer depois que a Lurdes disse tudo, com uma precisão cirúrgica?
    "O seu texto e imagens fazem inveja a ensaios ambiciosos que circulam em revistas sisudas..."
    Querida M. J. Falcão, obrigado por nos fazer lembrar da grandeza, algo esquecida, desse grande escritor português.
    A confissão de Lúcio é um momento sublime da literatura portuguesa e sua correspondência com Fernando Pessoa é genial.
    Um fraterno abraço do lado de cá do Atlântico, onde o sol tropical nos faz quase derreter.

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