segunda-feira, 18 de março de 2013

A cozinha do restaurante Benfica, em São Tomé




O fogo nascia do chão, como se o deus Vulcão o tivesse feito nascer com um toque mágico.
As figuras acocoradas em redor do lume agitavam ritmicamente  longas colheres de pau, mexendo nas panelas negras. Tampas e trempes, talheres desirmanados, estavam espalhadas por aqui e por ali.

Verdadeiras naturezas mortas, o peixe seco, ou o polvo, com o seu cheiro forte, as bananas-pão verdes e compridas, ou a bola da fruta-pão eram um jogo de cores. Uns  frangos magros pendiam de espetos colocados sobre o fogo.


frutas de São Tomé (no site de São Tomé e Príncipe)

Verduras tropicais, quiabos maquequê,  o safú e as ervas perfumadas, e os frutos de odores acres, estavam arranjados em tabuleiros de madeira, ou numa serapilheira no chão, à espera de serem utilizados.

Harmoniosamente dispostos, como num quadro. Tão diferentes das frutas que eu conhecia.

As sombras reflectiam-se na parede branca onde a fuligem se fixava em pequenas manchas. Algo de místico se desprendia daquelas sombras que se moviam com gestos lentos e de costas direitas, remexendo continuamente nos caldeirões.

fruta pão e banana pão (internet)

O fumo espalhava-se pela cozinha. Postas de peixes grelhados nas brasas saíam para a sala, em grandes travessas, acompanhados por matabala cozida, ou frita, mandioca, ou a simples banana-pão.
Lembro uma figurinha de menina, magra e ágil, que saltitava, ou se baixava de repente a apanhar coisas do chão, e que todos chamavam.
- Lina, vem cá!
menina com trancinhas (imagem da net)


Outro dizia:
- Lina traz lá...
E ela, no passo elástico, com o cabelo em trancinhas espetadas, era a única figura que se animava.  Brilhava, a meio da escuridão e dos reflexos rubros da fogueira. Os seus olhos observavam tudo e as mãos pequeninas não paravam de se agitar, como se dançassem no ar.  Fora, a paisagem imóvel no calor, dormia. O sol queimava a terra, abrindo gretas no solo avermelhado, ou negro.

A Baía de Ana Chaves, em São Tomé (fotografia de fotografia)

Às vezes, sentava-se junto do clarão, com os olhos fitos nas chamas. Os olhos eram duas contas negras, ou duas estrelinhas cintilantes. 
Apoiava a cabeça no braço e ficava pensativa. Com um pau, distraída, avivava as brasas do lume. O que veria ela? Em que pensava? Nos frutos pendentes do cacaueiro? Nas mangas que colhia, de manhã, perfumadas como pinhões.


uma ponte, no Príncipe (fotografia de fotografia)

Ou nos ossobós que cantavam no interior da floresta envolta no nevoeiro e anunciavam as chuvas? 
menina de São Tomé (fotografia de fotografia)


o fruto do cacau, ainda na árvore (fotografia de fotografia)

Pouco durava o seu momento de entrega ao repouso, ou ao sonho. Logo se ouviam vozes daqui ou dali, a chamá-la:
- Lina, vem cá...
a flor do café (tirada da internet)

Qual elfozinho,  florinha fresca na floresta em brasa, ela ia, de fogo em fogo, de panela em panela, levar as ervas, os legumes.

Dava a ajuda da sua juventude, da beleza e da alegria calma. Arrancava sorrisos nos rostos cansados, suados e negros de carvão, à volta da fogueira e da grande chaminé. As mãos mexiam com mais delicadeza nos frutos. Eu espreitava à entrada da cozinha,fascinada com aquele quadro vivo -descoberta maravilhosa de uma realidade desconhecida e cheia de calor humano e de olhares que me aqueciam.
o safú (imagem da internet)

paisagem de São Tomé (fotografia de fotografia)

 Era assim a cozinha do restaurante Benfica, em São Tomé.

Quando saí para a rua, nessa tarde, a cidade esvaía-se num colorido desbotado. Chovia torrencialmente. Soube-me bem a frescura da água que lavava a poeira das estradas.



fotografia de MJF



Nota: as fotografias que "fotografei" foram tiradas de um livro muito belo sobre São Tomé, intitulado "São Tomé e Príncipe", de Michel Tournadre (Editions Regards, 2000), em edição bilingue (francês e português). Aproveitei a beleza das imagens...Agradeço.

10 comentários:

  1. Isso tudo não tem preço que pague, isso é vida, é história pura.

    bjs nossos

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  2. Vim aqui descansar os olhos e a alma, de um trabalho cansativo que me tem ocupado por estes dias - papelada e mais papelada!
    Gostei deste bocadinho de "conversa" aqui no seu cantinho.
    Sente-se a amizade da Maria João por estas terras, por estas pessoas!

    Um beijinho grande

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  3. Saudações nobre amiga além mares, terra distante mas perto do coração. É um grande prazer ao passar por aqui e encontra salutares e auspiciosidades que enriquece o coração, mente e conhecimento. Vivemos em um tempo onde o corre corre é cima de cada um, cada promesa um vazia coletivo e de cada achado uma raridade quase infinita. Agradeço pela visita, pelo carinho e mais ainda, por apreciar o Jazz, ritmo esse que pouco consegue enterder. Uma vez mais ofereço minha paz, seja feliz e cuide bem de voce, hoje, sempre e mais um dia. Até breve e Namaste

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  4. ...........FANTASTICO!...gostei de sentir os cheiros á medida que ía lendo...e o ultimo cheiro é o de terra molhada...aquele que só em Africa se sente!...beijo imenso...obrigada...pela partilha! Helena Falcão

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    1. Obrigada eu, prima! Sei bem quanto podes entender tudo isto... bjs

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  5. Gostei muito. Não há como a Maria João para descrições vívidas, como o pincel do artista, dos tempos em que não havia máquinas fotográficas.
    Obrigado por partilhar connosco e obrigado pela sua amizade.
    São Tomé, Tel Aviv e a Itália, todo ale,a continuam a ser os seus amores.

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  6. Olá Maria,

    Obrigada por partilhar e me encantar com essa maravilha de escritos e fotos,amei!!!
    Abs
    amiga d'outro lado d mundo

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  7. Uma linda descrição de um bocadinho de África, onde tudo nos sabe a exuberância, talvez por diferente. És afortunada por tê-lo vivido em primeira pessoa, e poder descrevê-lo como tu és capaz.
    Beijinhos

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  8. Ah São Tomé e Príncipe, que saudades, daqueles dias, calmo, sereno e tranquilo, em ver as belezas do Nosso Criador, em tdo o que você olha, é maravilhoso, as pessoas, com o carisma, e mesmo na pobreza, elas de alguma maneira são felizes , pelo pouco q tem, mas em tdo são agradecidas ao Senhor, Soberano e Único Deus, que olha sim pelo povo q sofre muitas vezes, mas a cada dia da o seu pão, e aqui , onde estamos muitas vezes com muito e não são nada, pois estão vazios de Deus, infelizmente,mas do outro lado d ocêano, tdo é diferente...

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