sábado, 8 de novembro de 2014

AINDA A CRISE, O POLVO ... E O COMBATE NECESSÁRIO!


Mais um artigo que me entusiasmou -quando não me entusiasmar, quer dizer que "morri"-, no Nouvel Observateur de16 de Outubro (o último número com este nome, pois o de 23 de Outubro já saiu com o título de “L’Obs”) e que fala de um livro importante: “Est-ce ainsi que les hommes vivente? Faire face à la crise et resister”, da psicanalista Claude Halmos.
Porque esta crise atinge-nos mais do que se julga: "afecta até o desejo de viver.” 
Georges-Frederick Watts, "Afogada" 

Procuro pinturas que recordem desgraças semelhantes, ligadas a outras crises e descubro Georges-Frederick Watts e a grande fome da Irlanda!
 G.F.Watts "A grande fome"

E por que razão me entusiasmei? Porque vi que há pessoas que tentam entender este problema "humano", entender a sério, nas suas raízes e consequências. 
Vi que existe alguém que não desiste nem baixa os braços perante o horror que foi e é este tempo - em que uma crise económica se instalou, seguida de uma crise social,  e ganhou espaço como um polvo que tudo prende e atrai nos seus infinitos braços.

Klee, Peixes

E penso no Padre António Vieira e no "Sermão de Santo António aos Peixes", em São Luís do Maranhão, quando diz aos peixes (e o Padre António Vieira aos homens) que o animal pior de todos os que há na criação é o “polvo” (*)… 
Santo António a pregar aos peixes, (Guimarães)

o Santo António pobre, das notas de 20 escudos...

Pde. António Vieira, retrato anónimo

Metaforicamente, claro, o polvo hoje é este capitalismo financeiro, a "hipocrisia tão santa" deste sistema  de viver que tudo “engoliu” e triturou com os seus tentáculos! Lançando à sua volta uma mancha negra de tinta, enganadora e traiçoeira - como a do polvo de que fala António Vieira... Sem esquecer todo os outros "peixes" agressivos!
 G.F.Watts, "A Morte e a Inocência"

De que fala, pois, o livro de Claude Halmos? Explica o que todos sabemos: como a crise económica de hoje não poupa ninguém. E como isso atinge profundamente o nosso espírito e a nossa vida familiar e social. 
Diz Claude Halmos (**): “Perder o trabalho, recear perdê-lo, viver na incerteza, no empobrecimento crescente, ou mesmo na pobreza, estar convencido de que o mundo de amanhã vai ser ainda mais difícil para os filhos: estas provações atingem-nos para além de um simples stress.”


Todos o sabemos, é claro. Mas quem o diz? Bem, Claude Halmos di-lo: A crise económica criou uma outra crise, uma crise psicológica que rói, corrói, despedaça os corações, os corpos e as cabeças. Atinge as pessoas no seio da vida social e do equilíbrio familiar, afecta até o desejo de viver.”

Desse sofrimento real e dessa realidade social, atingidos no seu âmago, pouca gente fala claramente. A classe política, órgãos de informação, psicólogos quem fala?, interroga-se a escritora.
Ora o silêncio tem graves consequências: condena os atingidos a julgarem-se sozinhos a enfrentar os seus sofrimentos e a ter vergonha deles. Claude Halmos quebra, pois, o silêncio e lança um grito de alarme, como já o fez noutros campos. 
E, ainda mais, dá armas para se poder compreender -e atravessar- esta crise.
Dizer a essas pessoas “se não consegues suportar o que suportas, não é culpa tua, nem é uma tua fragilidade. Não o suportas porque é uma coisa invivível"  é dizer-lhes que não devem desistir de lutar.

 G.F.Watts 

Que devem ir até ao fim, que devem bater-se. Para sobreviverem! Para comunicarem com os outros. Para resistirem. Saberem que não são eles que estão doentes, mas sim que o mundo em que vivem é anormal.

As vítimas da crise – a quem ela chama “os fracassados da crise”- têm necessidade de tratamento, de ajuda, porque, atingidos por uma vaga destructiva, “o traumatismo que sofreram é equivalente ao de uma guerra, uma morte, um acidente, uma ruptura.”


Hokusai, a Grande Vaga

Importante sem dúvida este trabalho de Halmos, porque nos faz perceber que esta crise económica engendrou uma crise psicológica tremenda! 
Porque é bom saber e afirmar forte que a culpa não é dos que foram apanhados pelos tentáculos do polvo, mas do próprio polvo! 

Esses desgraçados que se culpabilizam, se auto-acusam, se desqualificam, se “menorizam”, caem em depressão e  atentam contra a vida como se fossem eles os únicos e os primeiros responsáveis do seu drama e da situação para que "arrastaram" a própria família!

E essas pessoas –os tais fracassados da crise- estão em perigo. “Por muito forte que um ser humano seja, não pode suportar o insuportável”, diz Claude Halmos.
E não se trata da sua incapacidade pessoal ou da sua história de falhanço pessoal, mas de uma realidade social exterior.

Hokusai, Pesca ao abalone

Para a autora, é fundamental falar do assunto, e ajudar os que estão em perigo. Falar para resistir, falar para trocar ideias com os outros, falar para partilhar os sofrimentos, e para –finalmente!- ver esses sofrimentos e esses medos reconhecidos pela sociedade.

Ufa! Fiquei aliviada! Há ainda alguém que pensa nos outros! Posso pôr, para terminar, o quadro de  Watts que fala da Esperança, que vi na maravilhosa Tate Gallery, em Londres!

 G.F.Watts, "Hope" (1886)

* * *

(*) Sobre o polvo, diz o Pde. António Vieira, in "Sermão aos Peixes", cap. V:
“(...) com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (…) o dito polvo é o maior traidor do mar. (…)
Se está nos limos, faz-se vestir ou pintar das mesmas cores - de todas aquelas verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente e fá-lo prisioneiro.”


(**) Quem é Claude Halmos? 


3 comentários:

  1. Excelente texto como sempre

    Na verdade a canalha anda à solta

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  2. Excelente texto, como diz o Mar Arável.

    Esta crise é realmente motivo para desânimo e o pior de tudo é a falta de perspectivas, a falta de esperança, que, a cada dia que passa, se acentua.

    Enfim, vamos ver o que o futuro nos reserva!

    Um beijinho grande e um bom domingo:)

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  3. O padre António Vieira é uma velha paixão. Já não lia este sermão há muito tempo.
    Obrigada pela forma como o traz.
    Beijinho. :))

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