segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O amanhecer de Truman Capote ou Breakfast at Tiffany's


Estive a ler, nestes dias de convalescença, um livro de Truman Capote: "Ao começo do dia". Um livrinho da Colecção Miniatura, uma antologia de 4 contos. Encontrei-o, por acaso, quando andava à procura de outro livro. 

“Ao começo do dia” é o título da tradução de “Breakfast at Tiffany’s”, o primeiro conto que dá o nome à edição americana. Hoje o livro passou a chamar-se "Boneca de Luxo". Por influência do filme de Blake Edwards (1961)que assim foi traduzido em português? Acho que é um mau título...


E depara-se-me a figurinha da Holly (Holiday) Golightly que nos enche de melancolia e um poucochinho da depressão azul (a mais suave) que ela por vezes sentia…

No livrinho, quatro contos que são quatro choques com o "amanhecer" da vida: a sua vida, a de Capote. "Ao começar do dia" -que me pareceu de início um título sem sentido- acaba por estar certo. 



A Holly do "Breakfast", o Buddy do conto de Natal e a magia das coisas pequenas, o Tico Feo, a cantar ao som da sua guitarra, enquanto sonha com a fuga e a liberdade (“A guitarra de diamantes”) - são seres nascidos, ao abandono, num triste "começar" de vida. 
Confesso que “Memória de Natal” me comoveu até as lagrimas! Buddy, o pequeno Buddy-Capote, e a sua velha amiga, um pouco trôpega já, espírito simples -a quem não dá nenhum nome- enchem-nos de ternura e compaixão, sem saber como lhes podemos pegar, sem os magoar... 



Como na história da “Harpa de Ervas”, inesquecível romance poético da adolescência, também na "Memória de Natal" amanhece um dia de Outono. 
E "ela" diz: “Buddy, acorda, é dia dos bolos de fruta”.



Porque vão chegar as festas, e o Natal deles os dois tinha que se preparar com tempo! E lá vão buscar ao mealheiro as parcas economias, alguns tostões que iam apanhando por aqui e por ali, em trabalhos que faziam, em serviços, ou dos dinheiros que a “família” (que vivia na mesma casa e os ignorava) lhes ia dando. 


E dirigem-se à floresta com um carrinho enorme que servira de berço a Buddy e que lhes é muito útil ainda hoje. Vão buscar quilos de nozes, abandonadas depois da colheita, debaixo das folhas secas da nogueira Pecan. 
E, com o dinheiro que juntaram, seguem os dois para a cidade comprar as coisas maravilhosas e perfumadas que Ela iria pôr nos bolos.

Meninos-bichos, meninos que cresceram selvagens. Como Holly e o irmão Fred- que vagueiam, esfomeados, roubando nas quintas os ovos e a fruta. Ou as galinhas...

E penso na história da galinha de outra menina – esta originária de Tocantins, no Brasil, perto do Amazonas- que há pouco ma contou. A história das galinhas “pescadas” com anzol, embrulhado em milho amolecido e atado a um fio, e puxadas para fora da capoeira dos vizinhos. 
"Lá vinha pelo ar, cá-cá-rá-cá, a galinha meio esparvoadaDireita à panela!", contava, rindo às gargalhadas. A panela de água quente que fervia na cozinha para a depenarem… 
E continuou, séria: "A minha infância foi difícil, mas eu fartei-me de brincar e de ser feliz!"

Infâncias difíceis, com certeza. Encaradas de modos diferentes, escondidas detrás da imaginação de cada um.

E volto a Holly, a menina-bicho, que foi encontrada a roubar, e é fechada na capoeira.
Pai, encontrei dois meninos selvagens e fechei-os no galinheiro”, disse, numa manhã fria, a filha mais velha de Doc, o "doutor de cavalos".  E, assim, ela e o irmão são salvos por Doc (uma boa alma) e pelos seus filhos. 
Holly que, um dia, vai parar a Nova-Iorque, à montra do "Tiffany's", a loja de diamantes.
Enfim, não vou contar tudo... Leiam a história!

Por quê escolher esta Holly como protagonista da sua famosa novela? 
Heroína sem heroísmo, demoro-me nela e na sua vida de mistério, descoberta uma manhã pelo narrador-Fred, ao cima das escadas da casa onde vivia, na Brownstones. 



Famosa pelo filme que do romance foi tirado, com uma inteligente e sensível Audrey Hepburn  que a imortalizou? Sim, sem dúvida,  mais conhecida através do filme - mas, já em si mesma, fantástica de humanidade.


Comecei a ler e quis esquecer completamente Audrey, como se “esta” Holly do livro fosse uma desconhecida. 

E tanta coisa tem dentro dela esta “maluquinha” fora do vulgar! 
Quem era? Por que vive assim de poiso em poiso à procura de quem lhe dê a segurança? Já amou? Ama, ou não ama? Quer pertencer ou não quer pertencer?

O que vejo então? Uma trangalhadanças esquelética, de cabelos loiros pintados de várias tonalidades, empoleirada em saltos altos, meio selvagem e meio simples ou ingénua, inconsciente com um sentido da auto-defesa elevado à 5ª potência! E com uma guitarra.



E lá vem com o gato-sem-nome pendurado do ombro, ou roçando-se atrás das pernas magricelas da que nunca foi sua dona. 
Porque "isto" é importante para perceber Holly. O gato não tem nome porque não é de ninguém: só se dá (na opinião dela) um nome a uma coisa que nos pertence, ou que protegemos, ou que tem um sítio… 

Encontrámo-nos ao pé do rio; nunca nos pertencemos um ao outro…”
Assim vão os dois, “soltos” pela vida, meio marginais, meio desejando não o ser.

É um bocado inconveniente ele não ter nome – reconhece- mas eu não tenho nenhum direito a dar-lho. Tem que esperar até ter dono”.
Holly não é de ninguém, não tem sítio que seja seu, não tem dono, nem quer ter, como poderá ela ser dona de alguma coisa? De um gato que seja?
Ele é independente, eu também. Eu não quero possuir o quer que seja sem ter encontrado o lugar onde as coisas e eu podem pertencer-se mutuamente.”


Truman Capote, com um gato sem nome?

Como a vê o escritor? Neste caso, o narrador, sem nome também, a quem Holly chama de Fred que é o nome do irmão bem-amado, tão longe, a viver noutro mundo.



Diz o narrador:
Ela estava na escada. Atingiu o patamar e a manta de retalhos da sua cabeleira – listas fulvas alternadas com mechas louro-albino e amarelas captou a luza da entrada. Era uma noite quente, quase de Verão, e ela trazia um vestido fino e fresco negro; sapatos-sandália também negros; uma gargantilha de pérolas. 

Como toda a sua elegância esbelta, mantinha um ar saudável de “cereais” para pequeno almoço, frescura de sabonete e limão, sólido rosa a escurecer-lhe as faces. A boca era grande, o nariz arrebitado. Um par de óculos escuros apagava-lhe os olhos.” (pg.15)


Depois iremos saber que -sem aqueles óculos negros graduados- ela não vê nada, era como o Mr. Magoo da banda desenhada, com os olhos azuis muito claros, salpicados de vários pontinhos, abertos mas sem ver e com as mãos a tactear para encontrar fosse o que fosse. 



No fundo, Holly está sozinha e anda à procura de alguma coisa. De um afecto, de alguém que a queira, a sério? Talvez, apenas, de quem lhe dê a tal segurança de que ela, menina pobre, necessita... 
O mesmo afecto que Truman Capote procurou, sozinho e perdido, num mundo e numa sociedade que valorizava demais mas que o não merecia...


E por que razão é que “Tiffany’s” – a loja de diamantes-  aparece na história? Porque -para ela- é o lugar mais parecido com o sítio que procura, onde se sentiria bem. Confortável… 
Entretanto, vai vivendo -desequilibrada- do dinheiro que os homens lhe dão, das gorgetas que deveria dar e não dá, dos jantares e almoços que lhe pagam e das toilettes que a si própria compra com esse dinheiro...

Bem, aí vamos perceber que, na origem de todos os males, está a depressão, não a depressão azul, suportável, mas a depressão vermelha que a fazia arrastar-se sem conseguir viver o dia. 

Havia várias soluções mas não resultavam nunca: nem as bebidas, nem a marijuana – que “a fazia rir como uma parva”- e nem as aspirinas …

Este diálogo entre Holly e o narrador explica melhor a situação.
“-Sabe daqueles dias em que nos sentimos deprimidos ao rubro?
- O mesmo que depressão azul?
- Não – disse ela devagar. - Não, esta azul deve-se mais a estarmos a engordar ou porque está a chover há tempo demais. Ficamos tristes; é só. Mas as depressões vermelhas são horríveis. Temos medo, suamos infernalmente e não sabemos por quê. Só do que temos a certeza é que algo mau está a acontecer sem saber o que é.  Já teve essa sensação?
- Bastantes vezes. Há quem lhe chame “angst”.
- Muito bem, Angst. E o que é que lhe faz?
- Bem, beber ajuda...
- Experimentei. E também aspirinas."


E conclui: 
"O melhor que arranjei até agora foi meter-me num táxi e ir direita ao Tiffany’s. Acalma-me logo o sossego e o ar de orgulho daquilo tudo; nada de muito grave nos pode acontecer ali (…). Se puder encontrar um sítio na vida real que me faça sentir como no Tiffany’s, compro alguma mobília e ponho um nome ao gato.”



Assim, nas manhãs de grande angústia, ela vai simbolicamentetomar o pequeno almoço”, frente à montra do Tiffany’s. Para se sentir bem!

Quantas coisas estranhas - e simples- na vida de Holly! Quanto abandono e desespero. Quanta esperança. Quanta imaginação e quanta invenção...

Onde pára Holly? E o gato?  O gato esse arranjou um dono. Mas a Holly? Pois é, ninguém sabe onde pára a Holly!  Mas podemos sempre imaginar! 
Truman Capote deixa tudo em aberto... Toda a sua vida de solidão, de desânimo e de esperança ele deixou-a em aberto.
Truman Capote, fotografado por Cartier Bresson

(*) A depressão azul : de “blue”- azul, mas que também quer dizer "triste", ou "neura"…
(**) “Angst”: termo técnico alemão, da psicologia, para indicar angústia, inquietação. 


Nota biográfica: “Truman Streckfus Persons, mais conhecido como Truman Capote (Nova Orleans, 30 de setembro de 1924 -Los Angeles, 25 de agosto de 1984) foi um escritor, roteirista e dramaturgo norte-americano, escritor de vários contos, romances e peças teatrais, reconhecidas como clássicos literários.” (wikipedia)


6 comentários:

  1. O genial Truman Capote! Adorei esta obra, que tão bem relatas, é maravilhosa, e também li e tenho In cold Blood, que não sei como se intitula aí.
    Mando-te um beijinho enorme!

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    1. Sim, Truman Capote é genial! Beijinhos
      (o livro chama-se "A sangue frio")

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  2. Gostei muito de ler o post.
    Apetece-me ir a correr ler os livros que tenho, do Truman Capote!

    Gosto muito da Audrey Hepburn. Era uma mulher muito bonita e discreta.

    Um beijinho grande e continuação de melhoras:)

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  3. Um excelente autor, numa excelente colecção que é a «Miniatura», apresentados e lembrados num excelente post, que como referiu a Isabel, dá logo vontade de ir ler Truman Capote!
    O volume de Romain Rolland já vai a caminho...

    Beijinhos.:))

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    1. Tens toda a razão em quereres ir já ler os livros dele! No próximo weekend começa a Harpa de Ervas... Vais adorar!

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  4. Gostei muito de ler o que escreveste ! Truman Capote está sempre em cima da minha mesa e, como ele escreveu não sei onde, "as palavras salvaram-me da tristeza", o que ele escreve fica bem dentro de nós, torna-se companhia, talvez nos salvem também de qualquer tristeza ?!:.. Beijinhos,
    Mamé

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