terça-feira, 12 de junho de 2012

O Japão visto pelos portugueses, no século XVI. E vice-versa...


comerciantes portugueses no Japão, os Nanban-Jin
biombo em estilo "Nanban", representando um barco português

 Ando a ler um livro sobre as relações de Portugal com o Japão. Há muitos séculos.
Chama-se “O impacte português sobre a civilização japonesa” (Editora Dom Quixote, 1970).

O livro é de Armando Martins Janeira que muito sabia do Japão. Estudioso das coisas japonesas, sabia falar correctamente japonês.



Durante muitos anos foi diplomata no Japão, absorvendo e amando profundamente a cultura que ia descobrindo e que o fascinava. De tal modo que mudou o apelido de “Janeiro” para “Janeira” que era como lhe chamavam os seus amigos japoneses.

Conheci-o em Roma, onde foi embaixador. Homem transmontano, a sua atitude era, porém, oriental, se bem que nada o aproximasse fisicamente do povo japonês.
Talvez apenas o olhar velado, concentrado, quando ouvia os outros falar. 

Lendo o livro, percebo melhor o seu ar japonês - "a composta e agradável gravidade”, que alguns consideraram ser característica comum entre portugueses e japoneses "nascidos em climas idênticos” (Engelbert Kaempfer).


Na sua casa, havia a cerimónia do chá e as flores estavam sempre dispostas em belos arranjos de cores suaves.

Como amo a literatura japonesa, o Japão, a contenção e a delicadeza em todas as situações, tive a curiosidade de o ler, tantos anos depois.

Descubro, numa obra muito bem organizada, a chegada dos primeiros portugueses ao Japão.

Passa o ano de 1542 (ou 1543, segundo alguns) quando os portugueses chegam à ilha de Tanegashima, quase por engano.

Não porque não fosse do conhecimento a existência desse povo. Havia anos que os portugueses demandavam o Japão.

a escritora Murasaki Ishiburi (século XI-XII) , em desenho de Tosa Mitsuoki (século XVI)


Essa “ilha grande, de gente branca, de boas maneiras e bela”, no dizer do veneziano Marco Polo ao referir-se ao Japão -a que chamou Cipangu.


desenho japonês "haiku"


O primeiro a chamar-lhe "Japão" foi o português Tomé Pires, na Suma Oriental.

O nome viria de um dialecto malaio - “japun” ou “japung” –“se não o foi do mandarim Ji-pan (...). Esta palavra, como hoje Nippon, significa “país originado no sol”. (oc., p.27)
gravura, castelo Himeji no Japão

Continuo a ler.

Portugueses e japoneses já se teriam cruzado “nas pequenas ilhas chinesas, à entrada de Liampó, na embocadura do rio Chekiang”, mas é por puro acaso que um junco português, talvez à procura de Liampó, se vai perder, a meio de grande temporal, e aportar a Tanegashima, no Sul do Japão.


Ando Hiroshige (1797-1858), Tokaido
Ando Hiroshige, as estações da lua


O que pensaram eles de nós? E o que pensámos nós deles?

Numa crónica japonesa de 1606 (“Teppo-ki” ou Crónica da Espingarda), o bonzo zen, Nampo Bunshi, fala das primeiras espingardas no Japão e refere o desembarque dos portugueses (23 de Setembro de 1543) na praia de Nishimura Ko-ura.
Batalha, período Sengoku



Interessante saber que, no fim da Guerra, “os japoneses ergueram ali uma lápide em memória dos portugueses (...)”
lápide-memória aos portugueses (1945)

Como nos viram eles?


Estes homens, bárbaros do Sudeste, são comerciantes. Compreendem até certo ponto a distinção entre superior e inferior, mas não sei se existe entre eles um sistema próprio de etiqueta. Bebem em copo sem o oferecerem aos outros; comem com os dedos e não com os pauzinhos como nós. Mostram os sentimentos sem nenhum rebuço. (...) São gente que passa a vida errando, e trocam as coisas que têm pelas que não têm, mas no fundo são gente que não faz mal.” (p.31-32)
Biombo "Nanban" atribuído a Kano-Domi (1593-1600)

Para eles, éramos os "nanbon-jin", quer dizer "bárbaros do Sul". De facto,  a "Arte Nanbon" refere-se às obras pintadas (geralmente biombos) em que aparecem representados os comerciantes ou os fidalgos portugueses.
biombo "Nanban", Museu de Arte Antiga

Em 1562, diz o “rei” de Kagoshima, numa carta ao provincial da Companhia de Jesus:

“(...) por os portugueses serem bons homens, folgamos muito que eles venham a nossas terras, porque aqui não lhes farão nenhum agravo (...) porque depois que o mundo é mundo não vimos tal gente como são os portugueses.”

Se não primamos pelas boas maneiras (diz o autor: “em boas maneiras, a Europa esteve sempre, e continua a estar, muito abaixo dos povos do Extremo Oriente”), a verdade é que no Japão “fizeram um alto conceito dos Portugueses como homens de honra e de coragem”.
portugueses, num biombo "Nanban" de Kano-Domi

O “rei” dirá ainda:

Muito me espanto quando vejo por cá portugueses com seus navios, porque tendo Portugal tão longe e a Índia cousa tão grande, vir um navio tanto número de léguas, e enxergarem esta pequena ilhas de  minhas terras, é maravilha”.


E a nós, Portugueses, o que nos impressionou?

O primeiro testemunho é de Jorge Álvares (1544).
Transmontano de Freixo de Espada à Cinta, enamora-se da natureza daquela terra: das flores, dos frutos, dos pomares, dos rios.

portugueses admirando um pavão

Fala de tudo com pormenores de cor e de sabores. Admira a agricultura e o modo como é feita. Descreve as casas baixas e os tectos soltos, para melhor resistirem aos ventos,  apenas cobertos de grandes pedras para os segurar.

Conta dos animais que caçam, dos peixes, da comida. Das águas quentes e frias e  do hábito que os japoneses tinham do banho, um longo banho –diário!

Do queijo que parece “fresco”, feito de feijões (o tofu que hoje conhecemos todos, feito dos “feijões” da soja...), e do hábito estranho de nunca comerem os animais criados junto deles.

Fazem três refeições ao dia e pouca quantidade. Comem “arroz e gravanços, milho, mungo, inhames e trigo”.

Utakawa Kunisada pinta a actriz japonesa Ono Komachi

Diz ele: "as mulheres são proporcionadas e muito brancas, pintando-se com alvaiade; são humildes de condição; as honradas são muito castas e amigas da honra dos maridos e há outras muito más mulheres (...) São mulheres muito limpas. As boas mulheres são muito veneradas pelos maridos, em quem mandam. Vão onde querem sem perguntar nada aos maridos.”
Sakura, de Ando Hisho


Murasaki, numa pintura do século XVIII


Deste relato dirá o historiador japonês Minoru Izawe: “é como a primeira geografia natural, social, cultural  e política do Japão” –tratado esse traduzido em 7 idiomas pela Europa.

Em 1549, escreverá S. Francisco Xavier que vai tentar "cristianizar" os japoneses, pela primeira vez.

 “Entre gente infiel não se achará outra que ganhe aos japões. É gente de muito boa conversação, geralmente boa e não maldosa: gente de muita honra. (...) É gente pobre em geral e a pobreza entre os fidalgos não a têm por afronta: estimam mais a honra que as riquezas”.

Murasaki Shikibu, escrevendo (pintura do século XIX)

E mais:

Gente de muito juízo e curiosa de saber, assim nas cousas de Deus, como as outras da ciência”.

Em 1551, é o padre jesuíta Cosme de Torres que anota:
Motoori Norinag, estudioso do seéculo XVIII, "auto-retrato!



“São discretos quanto se pode cuidar: governam-se pela razão (...). Têm mui linda conversação que parece que todos se criaram em paços de grandes senhores: os cumprimentos que têm uns com os outros é impossível de descrever.”
pintura de Tosa Mitsuoki (1539-1613)


Acrescenta: “Murmuram pouco de seus próximos e a nenhum têm inveja”. Estranhou que não dissessem mal uns dos outros!


O trabalho dos padres jesuítas é um longo trabalho de estudo e adaptação, de “integração” dos costumes japoneses na própria liturgia;  no entanto, a intolerância e ortodoxia da religião impediu que essa acção frutificasse.


"Esta intolerância – o fanatismo pode ser também uma força- tornou-se com o tempo a maior fraqueza da ofensiva cristã”, observa Martins Janeira (p. 112-113).



O que teria sido o Japão se se tivesse cristianizado?


Responde o autor, seguindo de perto Lafcadio Hearn: “que nem o artista nem o sociólogo pode lamentar o malogro das missões. A sua extirpação, que permitiu à sociedade japonesa evoluir até ao seu tipo-limite, preservou para os olhos modernos o mundo maravilhoso da arte japonesa (...)”.

Lembro a delicadeza e a liberdade da Arte no Japão, a literatura, a fantástico e realista novela Genji Monogatari, de Murasaki Ishiguri, as pinturas de Hiroshige ou Hokusai. 


pintura de Tosa Mitsuoki, Murasaki autora dos "Contos de Genji"
Tosa Mitsuoki
Tosa Mitsuoki, ilustrações para os "Contos de Genji", de Murasaki

texto japonês da edição dos "Contos de Genji"


De qualquer modo, houve um intercâmbio e uma certa simbiose entre os dois povos em confronto.

Talvez certa “semelhança” nos caracteres, apesar das grandes diferenças, tenha facilitado, como diz Martins Janeira, citando a propósito vários estudiosos das relações entre os dois povos, o entendimento de japoneses e portugueses.

Tornaram desde o início fáceis as relações e os contactos amigáveis, sempre na base do respeito mútuo, que impediu, por exemplo, que os japoneses tratassem os portugueses com a sobranceria com que trataram depois os Holandeses.” (p. 42)

Vendo a beleza das imagens que encontrei, fico agradecida à intolerância dos missionários que, desse modo involuntário, preservou a beleza!

Continuo a ler o livro, cheia de curiosidade!



Muitas das imagens encontrei-as na internet. Aquelas a preto e branco, no livro de Martins Janeira e outras ainda no livrinho "Arte Chinesa e Japonesa" (ed. Scala) que a minha amiga Isabel me ofereceu. 

6 comentários:

  1. Muito interessante e muito bonito o post.
    Gostei imenso de ler.

    Um beijinho

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  2. É um mundo que nos falta conhecer, não achas? Mas... quem sabe?... Um dia... somos da casta do holandês voador..., do judeu errante...

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  3. A cultura nipona é uma fonte de sabedoria e de beleza. Oxalá todos fôssemos assim, "estimando mais a honra que a riqueza", e governando-nos pela razão. Também é verdade que os portugueses são gente de honra e de coragem, e muito educados — a maioria, claro.
    Perfeito não há ninguém, mas há grandes diferenças entre as pessoas e os povos.
    Ficou-te um post lindo, já sabes que admiro a tua capacidade de trabalho e também o entusiasmo que pões em tudo o que fazes, nota-se sempre.
    Um grande beijinho

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  4. Muito interessante.
    Martins Janeira tinha uma admiração muito grande por Wenceslau de Moraes e ambos pela cultura japonesa e pelo Japão.
    Fiquei com vontade de ler... Até o tenho cá...
    Beijinhos

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  5. Leia, leia, Cláudia! Vai gostar! Pensei que ia "dar uma olhadela" e afinal prendeu-me que já vou na página 211!
    beijinhos

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  6. Meu belo Falcão Lunar.
    Adorei, adorei este post.
    Embora saiba muitas coisas sobre o Japãp, ainda me falta saber muito mais.
    beijo

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