domingo, 17 de março de 2013

Ainda o escritor japonês (policial) Matsumoto: "O Vaso de areia"


Figura interessante a de Matsumoto. Seichô Matsumoto foi um jornalista japonês, homem culto, que decidiu escrever outras coisas e teve sucesso, no Japão dos anos cinquenta.

Matsumoto em 1936

Gosto do estilo dele, seco, das descrições breves mas vivas, como em pinceladas que pintam uma realidade diversa, num tom, que não é europeu, queria dizer, que não é ocidental.
a nebulosa da constelação Orion

O segundo romance -que acabei de ler- chama-se  O Vaso de areia

Noto em tudo a sensibilidade especial do autor e a variedade dos assuntos que lhe interessam. Fala da sensibilidade criativa. Creio que ele a tem.

Não pude impedir-me de pensar que sem a sensibilidade criativa não há senão uma performance técnica." (pg. 80)

Aqui, é um dos seus personagens, o inspector, que comenta um artigo numa revista cultural,  sobre a música dodecafónica.Que, aliás, vai fazer parte da "trama" do romance.

Encanta-me ficar a conhecer melhor os hábitos dos japoneses, povo que admiro: a sua pintura, literatura e poesia atraem-me.

Aparecem de um modo diferente, sem agressividade, falam com suavidade, movem-se com delicadeza e respeito.


desenho do pintor Hocusai

Além disso, ama a natureza que sabe observar nos mais pequenos pormenores. E analisa os estados de ânimo, as paixões, a ambição, o sacrifício.


imagem do filme de Mizoguchi, "Contos da Lua Vaga depois da chuva"


Outra coisa que me interessou foi ver o cuidado, a minúcia com que descreve os trabalhos do comissário e da polícia de investigação criminal. 

Matsumoto procura ser explícito, claro, quase científico: o modo como examina a cena do crime; ou como são estudadas as impressões digitais, as pistas - tantas coisas que hoje estão ultrapassadas. 

De 1954 até hoje muito se “evoluiu” nesse campo.

A descrição da constelação Orion, por exemplo, no céu de uma noite outonal é belíssima. A Orion anuncia a chegada do Outono, no Japão.



Fumiko dava o braço a Sekigawa. A rua estava sombria e ouvia-se ao longe o ruído triste do comboio. Fumiko olhou para o céu cheio de estrelas. Ele disse:
- Já é tarde, Orion já ali está.
- Qual é a Orion?
-Aquela ali, mais em baixo. Sekigawa apontava para o céu com o dedo. Vês as três estrelas alinhadas no  meio e as outras quatro à volta?



- Ah, ali?
- Sim. Aparece sempre no Outono.
E continuou:
 - De Inverno brilha intensamente, no céu puro. Quando a vejo aparecer, penso logo que o Outono vem aí.” (Pg 78)


os áceres vermelhos do Japão


Lembro a descrição da paisagem e dos arrozais, quase dentro da cidade:

À beira da estrada, havia casas. Os susuki tinham embranquecido. Seguiu pela rua do comércio, que partia da estação, e depressa se encontrou no bairro novo, que se fora construindo no meio dos campos." (pg 75)


Susukis ao luar (fotografia enviada por  Yoshyuki Sakano)

(Traduzir "susuki"? Difícil. Pedi ajuda a um amigo japonês: nada como a imagem que me enviou logo- aqui a deixo...)

Pouco mais adiante, escreve Matsumoto:



"Havia casas do outro lado dos arrozais, depois havia bosques, valas, e, mais longe ainda, uma colina coberta de casas novas. Era no fundo uma paisagem clássica dos arrabaldes da cidade. " (p.83)

A acção e a intriga desenvolvem-se entre observação, análise psicológica e o fluir do pensamento. O comissário desta vez chama-se Imanishi.

São belas também as personagens femininas. 

Uma delas é inesquecível, misteriosa e melancólica. 



Claude Monet (1875) Le train dans la nuit

Na carruagem do comboio... Ah!sim, há sempre comboios e estações e linhas férreas nos livros de Matsumoto! E mapas para não nos perdermos na viagem.


E isso é mais um dos seus atractivos para mim: adoro comboios e histórias policiais que se passam em comboios!


Uma cena muito conseguida, em que se desenham as duas personagens que vão ter um papel decisivo. 

Na carruagem, pois, uma figura feminina delicada, sentada e silenciosa,  levanta-se, abre a malinha de mão e deita uma nuvem de papelinhos brancos para a linha.





“Viajava no comboio da noite. Foi em Koju creio que a jovem veio sentar-se no lugar à minha frente. Poderia ter sido apenas a impressão de um encontro com uma bela mulher, só que ela abriu a janela do comboio e deitou qualquer coisa fora, logo que o comboio saiu de Outsuki, coisas que pareciam papelinhos. Os papelinhos começaram a voltejar, ao vento, como flocos de neve.”

desenho japonês (imagem da net)

A paisagem corre, os campos  desfilam na geada do fim de tarde de Inverno, e a personagem masculina -que só vai ser importante porque “assistiu” a esta cena, fica maravilhado com a elegância e a delicadeza dos traços da jovem mulher.

Pintura de Kobaiyashi

A acção é sempre viva, o suspense mantém-se e o final surpreende-nos, apesar de ser natural, porque o autor no-lo sugeriu desde o início, sem nos forçar a entendê-lo.Pouco a pouco, tudo se vai desenrolar frente aos nossos olhos.

Tal como se espera de um bom livro policial!



Nota 1. O romance está traduzido em francês, nas editions Picquier poche (colecção L’Asie en Noir)

Nota 2. A Orion é uma constelação em forma de trapézio, com quatro estrelas nos seus ângulos e três estrelas muito brilhantes no meio: Delta, Epsilon e Zeta, chamadas "as três Marias".
No Japão, está ligada à história do Clã Genji (wikipedia).

Nota 3. Mais sobre Mtsumoto:

5 comentários:

  1. Deve ser muito interessante esse policial que acabas de ler.
    O Japão é um referente em muitas coisas, "...como é tão grande um povo tão pequeno"!
    Se fosse mais rica, era um dos países que visitava de certeza. Menos mal que hoje não é indispensável viajar para conhecer montes de coisas! E de pessoas...
    Beijinho

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    1. Eu também adorava conhecer...Talvez nos saia o euromilhões...e vamos as duas!
      beijo

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  2. Adorei este post.
    A Maria João consegue colocar poesia até em policiais!
    Fui espreitar o outro post, porque tinha uma vaga ideia de ter lido alguma coisa.
    Mas acho que não há nada em português. Pelo menos no meu site habitual - wook, onde sempre procuro o que quero, antes de ir à livraria.
    Já encomendei o Romance do Genji - espero que haja!

    Também gosto de comboios.

    Um beijinho grande e boa semana!

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    1. Ó Isabel, tu és o máximo! Obrigada. Fico contente por teres gostado!
      E o Genji vais lendo aos bocados, mas vais gostar de certeza, porque tens sensibilidade para isso...
      Uma boa (meia?) semana de trabalho e depois...férias!

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