quinta-feira, 3 de setembro de 2015

O RATINHO TEM UMA AMIGA QUE VEIO DOS TOCANTINS…


Os dois estão encantados a mexer na bolsinha brilhante que me ofereceu uma jovem amiga que veio do Brasil passar uns dias, com a mãe, e nos visitou. Trouxe-me de prenda este lindo trabalho artístico em “capim dourado”, artesanato característico da sua terra.

- O Brasil não é um país como os outros – é um mundo, não é?, disse o Ratinho, depois de vermos, no Atlas, onde ficava a terra da menina.
- Perto da cidade de Palmas, ao pé do  rio Tocantins. E cultivam lá o capim. Depois colhem-no e deixam-no secar. E fazem estes trabalhos.

- Parece oiro mesmo! Os tocantins eram índios, não eram?, exclamou o Ouricinho entusiasmado. Com penas na cabeça como nos filmes?
índio tocantim

- Não é desses índios que tu julgas - corrigiu o Ratinho. Esses são os “Peles vermelhas”.
- Eu sei. E havia os “caras-pálidas” que, lá no Oeste, seríamos nós.
“Nós?”, pensei eu e ri-me. A verdade é que mais branquinhos do que o Ouricinho e o Ratinho não há!
 o chefe Mohawk, Joseph Brant, na Europa
O Ratinho explicou:
- Estes tocantins são índios da América do Sul, como os tupis, os guaranis dos romances do José de Alencar. Ou os bororo de que falou Levi-Strauss. E têm até línguas diferentes. Também usam penas… E pintam-se, nas festas. 
 corpos e pinturas tocantins

- Usam penas??? Que giro!
- Sim. No ano passado, houve os Jogos dos Povos Indígenas quando passou por lá o Mundial. Lá no Brasil. E eles participaram com os seus "jogos"!
Participante dos Jogos dos Povos Indígenas (2014)

- Sim, a menina contou isso, eu lembro-me. Disse que perto da terra dela falam tocantim. E que há outras etnias… E também estudam.

- Pois há. Vi imagens muito belas na internet! E encontrei os Karajá, os Javaé, os Xambioá e os Xerentes.
O Ratinho continuava a mostrar os seus conhecimentos e nós ouvíamos.
- Xerentes? Que estranho nome!
- Mais estranho ainda é o que significa. Eles chamam-se a si próprios Akwen que quer dizer “indivíduo” ou “gente importante”! Acho que vieram das terras secas do Nordeste à procura de água no Norte…
- Tanta coisa que tu sabes, Ratinho!, disse o Dan.

Confesso que estava espantada também.
- Ele é uma enciclopédia! Não  achas? Um cérebro! Hihihi…
O Ouricinho é tão bom, não tem inveja de ninguém e gosta de ouvir a sabedoria do amigo.
- E viste que olhos lindos tinha a menina tocantim? Rasgados…Mongóis, acho.
- Ó Ouricinho Dan, o Brasil é um país enorme e riquíssimo de tudo! Terras, gentes, línguas, “raças”. Esses índios pertencem todos à raça mongol.
- Deve dizer-se etnias não sabes?
Desta vez, ele não resistira a corrigir o Ratinho sabichão.
- É mais politicamente correcto. Acho eu.
- Tens razão, claro…


O Ratinho concordou, mas distraído, pois estava embrenhado no Atlas.
- Vês aqui a Amazónia? Tão grande e tão bela! Chamam-lhe o “pulmão do mundo”.
- Chamavam-lhe, disse eu. Cada vez há menos árvores e mais plantações de cana e de palmeiras! Cortam o arvoredo todo…

- Destroem a floresta virgem!, lamentou o Ratinho. As imagens com o capim são tão bonitas...


-Destroem para quê?, perguntou o Ouricinho. 
Parecia um pequenino aluno que tudo queria saber.
 - É para o combustível, um carburante vegetal. Verde, dizem!, indignava-se o Ratinho. Os madeireiros desbravam as florestas, queimam, cortam e dão cabo do equilíbrio do mundo. E chamam-lhe combustível “verde”!
- Por isso o clima está o que está! Negócios é que é! Verde era a floresta virgem!
Não valia a pena estarmos ali a desfiar as desgraças da Amazónia e a nossa utopia - e mudámos de assunto. Espantava-me do que eles tinham já aprendido nestes poucos anos. Tinham crescido e sabem muito.
Voltámos a pegar na bolsinha de capim amarelo que parecia feita de oiro fino.
- A menina índia explicou que fazem bolsinhas, chapéus, brincos, jarrinhas, tudo com esta bela erva dourada.
O Ouricinho estava contente.

De facto, ela falara disso: "é o artesanato da nossa região, cultivam o capim na jagalão, depois é ceifado e deixa-se secar. Fazem todos os objectos que querem.”
- E que mais há na tua terra, perguntara o Ouricinho, curioso como sempre.
- Há a música! Há o modão sertanejo!
- O modão? Como é? Canta lá!
O Ouricinho queria ouvir. A menina pegou no telemóvel, ligou ao Google e ouvimos uma nostálgica moda do sertão, em viola caipira.
 Os sertões! Tive saudades de outros mundos, de outros tempos, das minhas leituras, das alunas brasileiras, meio índias também, a Pat e a caçula Virgínia que não vejo há tanto.
E os escritores brasileiros como esquecê-los? José de Alencar escritor do Romantismo, com o Guarani, Ubirajara ou Iracema. O que eu gostei desses livros!
E Erico Verísimo, Lins do Rego, Os sertões de Euclides da Cunha, os sertanejos, o Nordeste e a pobreza de Vidas secas de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Machado de Assis. Cada um com o seu encanto e tão diferentes.
O Ratinho tinha o ar sonhador de certos dias.
- Ainda estou a pensar nos tocantins. Guerreiros, não eram? Têm sinais no corpo, pinturas. Lembras-te do Ubirajara?
Falava para mim. O Ouricinho não tinha lido tanto como nós.
- Sim, do José de Alencar! O 'senhor da lança', queria dizer o nome. Esse era um guarani.  Que amava uma jovem tocantim,,,
- Sabes tanta coisa, disse o Ouricinho, embevecido a olhar para mim.
- É das leituras, acrescentou o Ratinho. Ela lê muito!
O Ouricinho queria saber mais e mais.
- E os outros índios, os Sioux, os Pawnees dos nossos filmes de 'cowboys' serão da família? São parecidos, não achas? Os mesmos olhos rasgados…
- A 'prega mongólica das pálpebras', disse o Ratinho, pertencem à mesma “raça mongólica”.
- Tão longe uns dos outros? E os mongóis da Mongólia estão deste lado do oceano! E os esquimós!
O Ratinho suspirou, contente. Percebi que se iniciava uma lição de antropologia. Ou de Etnologia. Deixei-o falar.
- Foram as migrações milenares que os levaram de um lado para o outro. Os continentes que se separaram e outros que se formaram ,aglutinando-se. E separaram os mongóis dos índios das Américas.
arqueiro mongol, dinastia Ming
O Ratinho a falar

- Gosto tanto de aprender! Ainda há tanto para eu estudar! Onde aprendeste tudo isso?
Apontou para mim:
- Foi ela?
- Sim, foi ela claro. Eu fui aluno dela antes de tu chegares. E ensinou-me o que havia para ler cá em casa. O Claude Lévi-Strauss e os outros todos…

Agora era o Ratinho.
- Leste La Pensée Sauvage, eu sei. 
E estendia o dedo para mim:
- Ela estudou Etnologia e Antropologia, nos estudos dela!
- Mas não foi Letras, e línguas e literaturas que tu estudaste?
Claude Lévi-Strauss e os índios Bororo

O Ouricinho estava espantado. Meti-me na conversa para explicar uma ou duas coisas.
- Ouricinho, ouve bem. Há sempre uma possibilidade de aprendermos o que queremos. E há escolhas e preferências. 
- Pensas que é possível escolher, hoje? 
O Ratinho estava muito céptico.
- Penso que ainda é possível...
"Seria?", pensei.
- Eu pude escolher disciplinas que não pertenciam ao meu curso, que eram “opções”. Cada um escolhia o que lhe interessava. A mim interessavam-me os 'humanos' nas suas diferenças e igualdades…
- Sim, "Tristes Trópicos" é um lindo livro sobre outros índios da Amazónia. Tão diferentes de nós, ocidentais. E tão iguais!, disse o Ratinho, melancólico. 
Concordei:
- Outras culturas, os mesmos desgostos e os mesmos anseios, não é?
Pensativo, o Ratinho Poeta perguntou:
- Ainda há quem se interesse pelos estudo dos humanos nestes tempos? Saber das relações afectivas, dos costumes tão diversos uns dos outros, dos desejos que são semelhantes. Dos ideais e das ilusões? Da beleza e do amor?
jovem índia da Amazónia
- Claro que sim, Ratinho! Nunca devemos desistir de acreditar nisso!
- Achas? Num tempo em que domina o  rei-dinheiro e a obsessão do ganho nojento que traz com dele. Valerá a pena pensarmos em ideal?
- O bezerro de oiro! A fúria de enriquecer! E todos os males que vêm atrás...
E o Ouricinho abanava a cabeça, triste. 
- E o teu Boudha é de oiro também?
Agora o meu amigo ria-se. Talvez quisesse não pensar e preferisse um pouco de ironia.
Tinha que os convencer de que não ia ser assim, não os podia deixar desanimados com o futuro.
- Não é de oiro, é de bronze e gosto muito dele! Deu-mo o Manuel e ponho lá moedinhas debaixo dele para dar sorte. 
O Ratinho riu-se.
- E dinheiro...
- Ouçam bem, os ideais viverão sempre no sítio onde houver um homem a sonhar seja com o que for! A menina índia também tem o seu sonho!
O cavaleiro azul, de Kandinsky


- Claro! Um sonho dourado como o "capim". Quer ser médica, disse-me ela. O sonho! Sim, o tal poema que me ensinaste que falava do sonho que era uma bola colorida entre as mão de uma criança…
- Eu sei, eu sei! “Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida…” Já mo ensinaste também. É do poeta Gedeão.

O que podia eu fazer? Ri-me com eles. O saquinho de capim doirado luzia como se tivesse vida. Como se fosse uma lua cheia sobre o lago de Palmas. Nos Tocantins.

Algures, no sertão dos Tocantins, ao pé do rio, uma menina índia tinha pensado em oferecer-mo e isso era tão bonito! 
Como desesperar da vida e do tempo que passa?!
* * *
Bem, deixo um "modão" para ouvirem...


2 comentários:

  1. Que bonito! Tudo!
    Esse ratinho é uma maravilha! As coisas que ele sabe e como fala bem! Gosto de o ouvir. Quem muito lê muito aprende!
    É culto, inteligente e um bom amigo!

    A sua bolsinha é muito linda e os brincos e os colares feitos com o mesmo material são lindíssimos. Têm uma cor mesmo bonita!

    Ouvi a música sertaneja. Gosto.

    Mais um post que é uma maravilha:)

    Um beijinho grande:)

    ResponderEliminar
  2. Assim..........

    sequestrados no paraíso

    Bj

    ResponderEliminar