Talvez
não seja preciso repensar o mundo, mas prepararmo-nos sim para mudar as ideias
feitas sobre tantos lugares-comuns seguros. Ou securitários para nós.
"A utopia é o sonho necessário e a
realidade é o desafio permanente." É uma frase de Daniel
Cohn-Bendit, na entrevista que ontem, dia 12, lhe fez o jornal Le
Monde.
E é de utopia que temos de falar neste momento em que se decide o destino de centenas
de milhares de pessoas a quem a Europa vai dar guarida. Porque deve.
Porque uma criança deve ser protegida seja onde for. Não é por acaso que escolhi esta pintura de criança, de Nahum Gutman, pintor judeu, nascido em 1898, na Bessarábia russa. Este é o retrato do filho pequenino (chamado Hemi, em 1936). Que, se não tivessem fugido a tempo, teria sido morto como tantos bébés o foram durante o Holocausto. Mas isto não deve repetir-se.
Nahum Gutman, retrato do filho 1936
imagem do pequeno sírio afogado
crianças (Z.F.)
O que fomos nós se não "boat people" que chegavam de fora para desorganizar os outros? Quem nos conta o que eles pensaram nessa altura? Podemos imaginar, como anedota...
Le radeau de la Méduse, de Géricault
E quem procurou a globalização do mundo - a seu favor? E quem foi explorar os poços de petróleo pelos iraques, líbias e coisas parecidas?
Náufragos sempre os que não estavam preparados para as grandes viagens! Quantos morreram em naufrágios, em lutas contra flibusteiros e outros? Fugindo de tiranos e ditadores? fugindo da miséria?
E hoje é igual: basta
lembrar as fotografias desses naufragados nas diversas praias do sul da Europa,
ou o percurso de “condenados” que fazem a pé, ou em comboios superlotados, a subir para o norte da Europa, à
procura da salvação: do seu Eldorado!
Náufragos de Géricault: Le radeau de la Méduse
E lá volta a imagem do pequeno sírio que correu o
mundo e chocou as almas mais duras. Mas quantas mais houve ao longo dos tempos - e que esquecemos?
"Guernica" de Picasso (pormenor)
“Toda
a imagem de morte de uma criança aparece-nos como um escândalo.” Palavras de
Philippe Dagen, crítico de Arte, em Le Monde. “E a representação dessa morte é
insuportável. O horror que nos causa esta fotografia de um pequeno cadáver
aportado a uma praia turca.”
Dagen
assimila-a a outras imagens que, ao longo dos séculos nos emocionaram na Arte, e
nos chocaram na pintura antiga e moderna.
“A
figura da criança morta liga-se directamente a outras memórias de obras célebres
que representam um episódio bíblico “O massacre dos inocentes.”
Nicolas Poussin (1625 ou 1629)
Giotto (1302-1305)
Domenico Ghirlandaio (1485)
E
fala do quadro de Nicolas Poussin (1625 ou 29), ou o mais antigo de todos, o de Giotto (1302-5), o de Domenico Ghirlandaio (Florença, Santa Maria Novella, 1485) de Guido Reni (Pinacoteca de Bolonha, 1611) que trataram o mesmo tema. Todos falam do massacre das crianças. Dos "inocentes".
Guido Reni (1611)
Poussin fê-lo com uma violência
extraordinária. Os bracinhos no ar mostram o medo da criança; o desespero da mãe; o horror da mulher de azul que ergue para os céus o olhar.
Voltando
aos refugiados, procuro ouvir vozes
sensatas e inteligentes, porque não podemos deixar-nos levar por falsos nacionalismos
ou populismos fáceis que exploram o natural receio das pessoas que pensam
que “é mais um problema para nós!”
No entanto, é, apenas e uma vez mais, uma questão de humanidade, de solidariedade...
No entanto, é, apenas e uma vez mais, uma questão de humanidade, de solidariedade...
Migrantes
ou refugiados? Iguais! Uns são bons os outros são maus? Há os cristãos árabes e os árabes muçulmanos? Vem por aí o Estado Islâmico?
arame farpado hoje e ontem: refugiadas do Vietname
arame farpado na Hungria
passarinho em arame farpado
Não
será melhor tentar repensar esta crise humana? Como negarmos a ajuda a quem foi
precipitado num túnel sem saída? Que prefere morrer a deixar-se matar a fogo
lento, na guerra insana que grassa pelo mundo deles e se reflecte no “nosso”?
refugiados sírios
Encontrei vários depoimentos sobre o assunto no Monde do passado dia 10.
Leio o que diz Robert Badinter, antigo ministro da Justiça de Mitterrand e ex-presidente do Conselho Constitucional francês, homem justo e honesto.
Leio o que diz Robert Badinter, antigo ministro da Justiça de Mitterrand e ex-presidente do Conselho Constitucional francês, homem justo e honesto.
É uma voz inteligente e equilibrada no meio deste gritar sem sentido - e cada um para seu lado.
Robert Badinter recomenda que “no acolhimento, instalação e acompanhamento dessas pessoas fragilizadas
e abandonadas seja acompanhado dos meios financeiros e humanos necessários para
os realizarem com dignidade.”
refugiados, chegada à Alemanha
Subentende-se: que não sejam “arrumados” em
qualquer barracão, ou armazéns abandonados, ou casernas desocupadas, ao “deus
dará”.
Enquanto
os governos hesitam sobre o número de refugiados que podem acolher, o resto das
pessoas vão de um extremo ao outro, entre o medo do desconhecido e o desejo de serem solidários;
de ajudarem quem chega sem nada a não ser o próprio corpo.
refugiados recebidos pelos fãs do 'Arsenal', clube de futebol
Como
explicar que não há esse perigo? Os refugiados pedem asilo. Querem um trabalho,
é óbvio. A verdade é que a Europa precisa de mão de obra: essa imigração vem preparada, tem cursos, pode ocupar lugares que estão vazios. Porque houve também outras migrações: para fora. Ou porque a população da Europa envelhece. Um dos motivos pelos
quais a Alemanha vai acolher já 800.000 refugiados é esse mesmo.
Estes serão os novos
imigrantes na Europa. Quantas ‘levas’ já chegaram à Europa e quantas migrações se
cruzaram? Já esquecemos os “boat people” a fugir de um Vietname dilacerado? Já esquecemos? Eram os anos 70/80... Eram mulheres e crianças como agora. Gente sem nada. Desprotegidos.
“boat people” em fuga do Vietname
É sempre uma questão dar ou não asilo - para conseguir que os náufragos de tantas costas e de tantas guerras possam sobreviver. Aconteceu e acontecerá toda a vida...
“Hoje se a Europa recusar asilo a essa gente é
como se os afogasse definitivamente.”
Nahum Gutman, No Moshav
E
por cá, como vamos recebê-los? Não sei o que se prepara mas é importante que se
sigam exemplos dignos - de solidariedade real e de humanidade. E temos de reconhecer que, neste caso, a Alemanha tem sido exemplar e a
Hungria tem sido a vergonha da Europa!
È
exemplar também o movimento solidário das pessoas comuns a receber os refugiados
nas praias da Grécia e nos países onde vão conseguindo chegar. Das marchas de apoio dos "descalços" - em Veneza, por exemplo, e outras cidades da Itália. E os que levam água, fruta, e
gestos de consolo, sorrisos ou palavras de boas vindas.
Sim,
porque eles não nos vêm roubar nada. São coisas diferentes. Os financiamentos e
as ajudas às cidades que os vão receber vêm de outros meios, da própria EU e
nada interfere com as dificuldades que já existem na Europa: diria que são “dinheiros”
diferentes…
O
que acontece por cá, ou por lá, e tanto nos preocupa –desemprego, gentes sem casa,
filhos que voltaram a viver na casa dos pais, emigrantes de todas as idades para
outras terras, sim isso tudo não tem que ver com estes migrantes que vão
chegar.
Esses (nossos) problemas têm outra origem: deveriam ser - e são, mesmo que escamoteados- da conta dos governantes
e das suas políticas de austeridade extrema que conduziram tantos à pobreza!
Os
refugiados não têm que pagar por isso…
"A utopia é o sonho necessário e a realidade é o desafio permanente."
(*)
"A utopia é o sonho necessário e a realidade é o desafio permanente."
desenho de Paolo Lombardi
Nahum Gutman nasceu na Bessarábia- Moldávia (então russa), em 15 de Outubro de 1898 e morreu em 28 de Setembro de 1980, em Israel. O pai era
escritor. Em 1903, fugiram por Odessa até à Palestina Otomana onde se estabeleceram. Gutman estuda pintura nos anos 20-26 em Berlim, Viena e Paris.
Guerras, fome, atrocidades...
ResponderEliminarO mundo continua este lugar de desassossego.
É uma situação preocupante, mas a Europa terá capacidade para tanto?
Um beijinho grande:)
Pois é, Isabel, é um desafio enorme para a Europa. Mas se não os recebemos nós...qual é a alternativa? Difícil vai ser - e muito!
EliminarBeijinhos
UM DIA SEREMOS DE NOVO CRIANÇAS
ResponderEliminarÉ claro que a Europa tem de acolher estas pessoas. Ainda por cima porque o Ocidente tem culpa na instabilidade que se vive tanto no Médio Oriente como no Norte de África. Eram regimes ditatoriais, mas têm de ser os nacionais desses países a resolver os seus próprios problemas. Mesmo que o Ocidente dê uma ajuda não é chegar lá e bombardeá-los.
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