terça-feira, 15 de setembro de 2015

VAMOS REPENSAR O MUNDO E AS IDEIAS FEITAS?


Talvez não seja preciso repensar o mundo, mas prepararmo-nos sim para mudar as ideias feitas sobre tantos lugares-comuns seguros. Ou securitários para nós.

"A utopia é o sonho necessário e a realidade é o desafio permanente." É uma frase de Daniel Cohn-Bendit, na entrevista que ontem, dia 12,  lhe fez o jornal Le Monde.
E é de utopia que temos de falar neste momento em que se decide o destino de centenas de milhares de pessoas a quem a Europa vai dar guarida. Porque deve.
Nahum Gutman, retrato do filho 1936

Porque uma criança deve ser protegida seja onde for. Não é por acaso que escolhi esta pintura de criança, de Nahum Gutman, pintor judeu, nascido em 1898, na Bessarábia russa. Este é o retrato do filho pequenino (chamado Hemi, em 1936). Que, se não tivessem fugido a tempo, teria sido morto como tantos bébés o foram durante o Holocausto. Mas isto não deve repetir-se.
imagem do pequeno sírio afogado

 crianças (Z.F.)

Migrantes? refugiados? Jogos de palavras: gente são! Humanos são! Crianças, mulheres. E sempre os humanos migraram daqui para ali, à procura dum futuro ou a fugir de algo. A começar pelos nossos navegantes - os das descobertas! 

O que fomos nós se não "boat people" que chegavam de fora para desorganizar os outros? Quem nos conta o que eles pensaram nessa altura? Podemos imaginar, como anedota...

Le radeau de la Méduse, de Géricault

E quem procurou a globalização do mundo - a seu favor? E quem foi explorar os poços de petróleo pelos iraques, líbias e coisas parecidas?
Náufragos sempre os que não estavam preparados para as grandes viagens! Quantos morreram em naufrágios, em lutas contra flibusteiros e outros? Fugindo de tiranos e ditadores? fugindo da miséria?
Náufragos de Géricault: Le radeau de la Méduse


E hoje é igual: basta lembrar as fotografias desses naufragados nas diversas praias do sul da Europa, ou o percurso de “condenados” que fazem a pé, ou em comboios superlotados, a subir para o norte da Europa, à procura da salvação: do seu Eldorado

E lá volta a imagem do pequeno sírio que correu o mundo e chocou as almas mais duras. Mas quantas mais houve ao longo dos tempos - e que esquecemos?
"Guernica" de Picasso (pormenor)




Toda a imagem de morte de uma criança aparece-nos como um escândalo.” Palavras de Philippe Dagen, crítico de Arte, em Le Monde. “E a representação dessa morte é insuportável. O horror que nos causa esta fotografia de um pequeno cadáver aportado a uma praia turca.”

Dagen assimila-a a outras imagens que, ao longo dos séculos nos emocionaram na Arte, e nos chocaram na pintura antiga e moderna.
A figura da criança morta liga-se directamente a outras memórias de obras célebres que representam um episódio bíblico “O massacre dos inocentes.” 
 Nicolas Poussin (1625 ou 1629)

Giotto (1302-1305)

Domenico Ghirlandaio (1485)

E fala do quadro de Nicolas Poussin (1625 ou 29), ou o mais antigo de todos, o de Giotto (1302-5), o de Domenico Ghirlandaio (Florença, Santa Maria Novella, 1485) de Guido Reni (Pinacoteca de Bolonha, 1611)  que trataram o  mesmo tema. Todos falam do massacre das crianças. Dos "inocentes".
Guido Reni (1611)

Poussin fê-lo com uma violência  extraordinária. Os bracinhos no ar mostram o medo da criança; o desespero da mãe; o horror da mulher de azul que ergue para os céus o olhar.
Mais tarde, virá "Guernica" de Picasso (1937) e, mais tarde ainda, “Le Charnier” também dele (1945) e a denúncia da guerra.


Voltando aos refugiados, procuro  ouvir vozes sensatas e inteligentes, porque não podemos deixar-nos levar por falsos nacionalismos ou populismos fáceis que exploram o natural receio das pessoas que pensam que  “é mais um problema para nós!” 
No entanto, é, apenas e  uma vez mais,  uma questão de humanidade, de solidariedade...
Migrantes ou refugiados? Iguais! Uns são bons os outros são maus? Há os cristãos árabes e os árabes muçulmanos? Vem por aí o Estado Islâmico?
arame farpado hoje e ontem:  refugiadas do Vietname

arame farpado na Hungria

Uns países querem ajudar, inventam soluções generosas, enquanto outros constroem “fronteiras” de arame farpado onde crianças e mulheres se ferem e deixam as roupas rasgadas?
passarinho em arame farpado

Não será melhor tentar repensar esta crise humana? Como negarmos a ajuda a quem foi precipitado num túnel sem saída? Que prefere morrer a deixar-se matar a fogo lento, na guerra insana que grassa pelo mundo deles e se reflecte no “nosso”?
refugiados sírios

Encontrei vários depoimentos sobre o assunto no Monde do passado dia 10. 
Leio o que diz Robert Badinter, antigo ministro da Justiça de Mitterrand e ex-presidente do Conselho Constitucional francês, homem justo e honesto.
É uma voz inteligente e equilibrada no meio deste gritar sem sentido - e cada um para seu lado.
Robert Badinter recomenda que “no acolhimento, instalação e acompanhamento dessas pessoas fragilizadas e abandonadas seja acompanhado dos meios financeiros e humanos necessários para os realizarem com dignidade.” 
refugiados, chegada à  Alemanha
Subentende-se: que não sejam “arrumados” em qualquer barracão, ou armazéns abandonados, ou casernas desocupadas, ao “deus dará”.
Enquanto os governos hesitam sobre o número de refugiados que podem acolher, o resto das pessoas vão de um extremo ao outro, entre o medo do desconhecido e o desejo de serem solidários; de ajudarem quem chega sem nada a não ser o próprio corpo.
refugiados recebidos pelos fãs do 'Arsenal', clube de futebol 

O medo é mau conselheiro sempre. Com medo, alguns perguntam já: Será que os refugiados vão roubar os nossos empregos - que já parecem tão maus e tão mal pagos? Por que é que dão casas aos refugiados e há tanta gente que vive nas ruas? Como é que o nosso país vai aguentar?
refugiados, imagens extraordinárias de Le Monde

Como explicar que não há esse perigo? Os refugiados pedem asilo. Querem um trabalho, é óbvio. A verdade é que a Europa precisa de mão de obra: essa imigração vem preparada, tem cursos, pode ocupar lugares que estão vazios. Porque houve também outras migrações: para fora. Ou porque a população da Europa envelhece. Um dos motivos pelos quais a Alemanha vai acolher já 800.000 refugiados é esse mesmo.
Estes serão os novos imigrantes na Europa. Quantas ‘levas’ já chegaram à Europa e quantas migrações se cruzaram? Já esquecemos os “boat people” a fugir de um Vietname dilacerado? Já esquecemos? Eram os anos 70/80... Eram mulheres e crianças como agora. Gente sem nada. Desprotegidos. 
“boat people” em fuga do Vietname
É sempre uma questão dar ou não asilo - para conseguir que os náufragos de tantas costas e de tantas guerras possam sobreviver. Aconteceu e acontecerá toda a vida...

“Hoje se a Europa recusar asilo a essa gente é como se os afogasse definitivamente.”
Nahum Gutman, No Moshav 



E por cá, como vamos recebê-los? Não sei o que se prepara mas é importante que se sigam exemplos dignos - de solidariedade real e de humanidade.  E temos de reconhecer que,  neste caso, a Alemanha tem sido exemplar e a Hungria tem sido a vergonha da Europa!
Nahum Gutman, Grande árvore no meio das oliveiras 

È exemplar também o movimento solidário das pessoas comuns a receber os refugiados nas praias da Grécia e nos países onde vão conseguindo chegar. Das marchas de apoio dos "descalços" - em Veneza, por exemplo, e outras cidades da Itália. E os que levam água, fruta, e gestos de consolo, sorrisos ou palavras de boas vindas.
Nahum Gutman, Pastor árabe

Sim, porque eles não nos vêm roubar nada. São coisas diferentes. Os financiamentos e as ajudas às cidades que os vão receber vêm de outros meios, da própria EU e nada interfere com as dificuldades que já existem na Europa: diria que são “dinheiros” diferentes…

O que acontece por cá, ou por lá, e tanto nos preocupa –desemprego, gentes sem casa, filhos que voltaram a viver na casa dos pais, emigrantes de todas as idades para outras terras, sim isso tudo não tem que ver com estes migrantes que vão chegar. 

Esses (nossos) problemas têm outra origem: deveriam ser - e são, mesmo que escamoteados- da conta dos governantes e das suas políticas de austeridade extrema que conduziram tantos à pobreza!


Os refugiados não têm que pagar por isso…
"A utopia é o sonho necessário e a realidade é o desafio permanente."
desenho de Paolo Lombardi

(*)
Nahum Gutman nasceu na Bessarábia- Moldávia (então russa), em 15 de Outubro de 1898 e morreu em 28 de Setembro de 1980, em Israel. O pai era escritor. Em 1903, fugiram por Odessa até à Palestina Otomana onde se estabeleceram. Gutman estuda pintura nos anos 20-26 em Berlim, Viena e Paris.

4 comentários:

  1. Guerras, fome, atrocidades...
    O mundo continua este lugar de desassossego.

    É uma situação preocupante, mas a Europa terá capacidade para tanto?

    Um beijinho grande:)

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    1. Pois é, Isabel, é um desafio enorme para a Europa. Mas se não os recebemos nós...qual é a alternativa? Difícil vai ser - e muito!
      Beijinhos

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  2. É claro que a Europa tem de acolher estas pessoas. Ainda por cima porque o Ocidente tem culpa na instabilidade que se vive tanto no Médio Oriente como no Norte de África. Eram regimes ditatoriais, mas têm de ser os nacionais desses países a resolver os seus próprios problemas. Mesmo que o Ocidente dê uma ajuda não é chegar lá e bombardeá-los.

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