desenho de Lita
Falta-me
o meu indignado preferido. Se ainda estivesse vivo, teria já de certeza protestado.
Fala-se muito e
pouco se diz. Ontem, a fotografia do menino afogado que veio dar às costas da
Turquia, provocou certa celeuma nos jornais. Quis pôr a imagem, num desenho de Lita, porque pelos vistos é o único modo de "acordar as consciências anestesiadas"! Os anjos tapam os olhos, doloridos, feridos, e não querem ver...
o anjo ferido de Hugo Simberg
John Maillord Turner, Naufrágio
barquinho de papel amarelo (internet)
O barco, um barco de papel, frágil, naufraga, na noite. Os
náufragos perdem-se uns dos outros na escuridão. Chamam-se e não se ouvem.
Entram em pânico.
Conta um sobrevivente: “Perdi a minha mulher e os dois filhos
pequeninos. Perdi-os das minhas mãos.” Tem um rosto macerado, sem expressão,
sem sentimentos. É o pai do menino cuja fotografia girou o mundo nas últimas horas.
Diz, com dignidade: “Não quero a Europa. Nem aceito o asilo
que me dá o Canadá, que antes mo recusou. Quero voltar para a minha terra Kobane
e enterrar os meus mortos. Nada me interessa mais na vida.”
E nós o que dizemos a isto? Tanta
moleza, pasmaceira, egoísmo, contas e mais contas que são apenas provas dum
egoísmo escondido, a fingir que é a defesa dos países ou dos povos, pelos governantes! Perante um drama sem solução? Ou terá alguma solução?
Camões
escreveu, no final do Canto I (estância 106), estes versos espantosos - sobre os pobres humanos, esses "bichos da terra tão pequenos" que afrontam o mar, à procura de melhor sorte. Como hoje, não é?
Tantas
vezes a morte apercebida!
Na
terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta
necessidade avorrecida!
Onde
pode acolher-se um fraco humano,
Onde
terá segura a curta vida,
Que
não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra
um bicho da terra tão pequeno?"
Li,
finalmente, o artigo que me animou! O ensaísta Guy Sorman escreveu-o, hoje, em Le Monde. Uma voz que vai mais longe, diz coisas profundas e verdadeiras. Vou
copiar uma parte porque acho importante que se leia.
“Por
vezes é necessário comparar o incomparável. Já que mais nãos seja para acordar
as consciências anestesiadas. Entre 1933 e 1940, vários milhões de refugiados
que escapam da Alemanha, da Polónia e dos países balcânicos, fugindo do
nazismo, deparam-se com as fronteiras fechadas. Chamavam-se Nathan, Samuel,
Rachel. Nathan, mais previdente, fugira no Verão de 1933 – cinco meses depois da
tomada do poder por Hitler. Quer ir para os Estados Unidos mas o visto é-lhe
recusado. Tenta a Espanha, recusado também. Um pouco ao acaso, escolhe a França
que não o acolhe mas também não o expulsa (só a partir de 1938, acontecerão as
expulsões de judeus que tentavam entrar em França). Nathan sobreviveu ao
governo de Vichy e reune-se à Resistência. (…)
- Faço um aparte meu e lembro os Espanhóis, no final da Guerra Civil, fugidos da Espanha franquista e parados na fronteira, em França. Recusados!
- Faço um aparte meu e lembro os Espanhóis, no final da Guerra Civil, fugidos da Espanha franquista e parados na fronteira, em França. Recusados!
fugidos da Espanha franquista, 1938
E
chegamos ao que não tem nenhuma relação com o que vem acima: a fuga de milhões,
refugiados da Síria, do Iraqe e da Eritreia. Sem relação, porque os fugitivos
de hoje, Latifa, Ali e Ahmed, não são massacrados com a mesma eficiência
industrial? Devemos pensar que quem corre o risco de se afogar, de morrer
sufocados num camião, de morrer de sede e de fome numa estrada da Grécia são ‘turistas’
ou pessoas que vêm, trivialmente, à procura dum emprego com a família atrás, em
Inglaterra?
Não.
Eles também fogem ao extermínio: correm o risco de morrer afogados, ou asfixiados,
gaseados, metralhados, bombardeados ou de fome.
Judeus nos campos
(…) Este
êxodo que os europeus – os povos e os governantes- consideram apenas uma “crise”
técnica que exige apenas alguns ajustamentos legais.
Se Nathan fosse vivo, não tenho dúvidas nenhumas que reconheceria em Ali e Ahmed o seu
próprio rosto, o seu próprio destino, a sua própria angústia. (…) Reconheceria
os mesmos argumentos nas mesmas fronteiras: “A Europa não pode integrar tuddo, a
opinião pública não é favorável aos estrangeiros judeus e outros 'métèques' já demasiado numerosos. (…)"
Talvez só a alemã Merkel “reconheça” a medida real do drama e procure soluções humanitárias. Porque, como alemã, ela sabe que Ahmed é Nathan, 75 anos mais tarde. (…)
Talvez só a alemã Merkel “reconheça” a medida real do drama e procure soluções humanitárias. Porque, como alemã, ela sabe que Ahmed é Nathan, 75 anos mais tarde. (…)
Tenho
vergonha da Europa pelo seu egoísmo, a sua miopia histórica e a sua arrogância
de pequeno-burguês satisfeito. Por isso, para mim, Ahmed é meu irmão e Latifa é
minha irmã.
Porque,
calculem, Nathan era o meu pai!”
Este
artigo deu-me vontade de respirar fundo! Estimula-me. Farta de hesitações, de
egoísmos, dos ‘confortos que temos, das desculpas em não querer aceitar o ‘outro’.
Desculpas para termos ‘mais’ e não ’menos’. E a solidariedade?
No entanto, estamos
já tão em baixo! Tão pobres alguns! Tão humilhados! Tão vendidos!
Não
perceberam ainda que já perdemos tudo? Ou que o estamos para perder? Resta-nos
manter a dignidade de querer ajudar, realmente! Até como pessoas que ajudam outras pessoas apenas. Sei que começam a aparecer grupos de "entre-ajuda". Talvez a solidariedade não seja letra morta.
imagem do jornal La Stampa
"Não perceberam ainda que já perdemos tudo? Ou que o estamos para perder? Resta-nos manter a dignidade de querer ajudar, realmente!" ....
ResponderEliminarÉ uma situação muito complicada...
ResponderEliminarSerá que a Europa tem condições para socorrer tanta gente? Numa Europa com tanto desemprego...
Que mundo este...
Eu sobretudo tenho vergonha de mim mesma, podes acreditar. Sobra-me um quarto e um prato de comida, seria capaz de pôr um refugiado na minha cómoda vida? Enquanto não for capaz de o fazer, procuro pelo menos respeitar ao máximo o sofrimento dos outros.
ResponderEliminarNão há palavras... apenas obrigada por esta partilha.
ResponderEliminarBeijinho. :))
Fabuloso este testemunho. Não falta acrescentar nada.
ResponderEliminarObrigado e parabéns, MJ.
Tenho os olhos feridos da areia...
Olá, MJ.
ResponderEliminarAqui tem um excelente postagem, acerca dum tema que deixa-nos a consciência curvada pelo peso.
Não há que ter vergonha da Europa, porque a vergonha pertence à Humanidade. Porque o Homem é o animal mais cruel sobre o planeta.
Esta é uma tragédia dantesca. Mais uma.
É guerra, é fome, é nada.
Mas não é fácil tomar decisões para um problema de tal envergadura. Não, não é fácil.
abraço