sexta-feira, 4 de setembro de 2015

“Por vezes é necessário comparar o incomparável"...

desenho de Lita

Falta-me o meu indignado preferido. Se ainda estivesse vivo, teria já de certeza protestado. 
Fala-se muito e pouco se diz. Ontem, a fotografia do menino afogado que veio dar às costas da Turquia, provocou certa celeuma nos jornais. Quis pôr a imagem, num desenho de Lita, porque pelos vistos é o único modo de "acordar as consciências anestesiadas"! Os anjos tapam os olhos, doloridos, feridos,  e não querem ver...
o anjo ferido de Hugo Simberg

John Maillord Turner, Naufrágio

barquinho de papel amarelo (internet)

O barco, um barco de papel, frágil, naufraga, na noite. Os náufragos perdem-se uns dos outros na escuridão. Chamam-se e não se ouvem. Entram em pânico. 
Conta um sobrevivente: “Perdi a minha mulher e os dois filhos pequeninos. Perdi-os das minhas mãos.” Tem um rosto macerado, sem expressão, sem sentimentos. É o pai do menino cuja fotografia girou o mundo nas últimas horas. 
Diz, com dignidade: “Não quero a Europa. Nem aceito o asilo que me dá o Canadá, que antes mo recusou. Quero voltar para a minha terra Kobane e enterrar os meus mortos. Nada me interessa mais na vida.”

E nós o que dizemos a isto? Tanta moleza, pasmaceira, egoísmo, contas e mais contas que são apenas provas dum egoísmo escondido, a fingir que é a defesa dos países ou dos povos, pelos governantes! Perante um drama sem solução? Ou terá alguma solução?

Camões escreveu, no final do Canto I (estância 106), estes versos espantosos - sobre os pobres humanos, esses "bichos da terra tão pequenos" que afrontam o mar, à procura de melhor sorte. Como hoje, não é?

"No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?"

Li, finalmente, o artigo que me animou! O ensaísta Guy Sorman escreveu-o, hoje, em Le Monde. Uma voz que vai mais longe, diz coisas profundas e verdadeiras. Vou copiar uma parte porque acho importante que se leia.

“Por vezes é necessário comparar o incomparável. Já que mais nãos seja para acordar as consciências anestesiadas. Entre 1933 e 1940, vários milhões de refugiados que escapam da Alemanha, da Polónia e dos países balcânicos, fugindo do nazismo, deparam-se com as fronteiras fechadas. Chamavam-se Nathan, Samuel, Rachel. Nathan, mais previdente, fugira no Verão de 1933 – cinco meses depois da tomada do poder por Hitler. Quer ir para os Estados Unidos mas o visto é-lhe recusado. Tenta a Espanha, recusado também. Um pouco ao acaso, escolhe a França que não o acolhe mas também não o expulsa (só a partir de 1938, acontecerão as expulsões de judeus que tentavam entrar em França). Nathan sobreviveu ao governo de Vichy e reune-se à Resistência. (…)

- Faço um aparte meu e lembro os Espanhóis, no final da Guerra Civil, fugidos da Espanha franquista e parados na fronteira, em França. Recusados!
fugidos da Espanha franquista, 1938


E chegamos ao que não tem nenhuma relação com o que vem acima: a fuga de milhões, refugiados da Síria, do Iraqe e da Eritreia. Sem relação, porque os fugitivos de hoje, Latifa, Ali e Ahmed, não são massacrados com a mesma eficiência industrial? Devemos pensar que quem corre o risco de se afogar, de morrer sufocados num camião, de morrer de sede e de fome numa estrada da Grécia são ‘turistas’ ou pessoas que vêm, trivialmente, à procura dum emprego com a família atrás, em Inglaterra?
Não. Eles também fogem ao extermínio: correm o risco de morrer afogados, ou asfixiados, gaseados, metralhados, bombardeados ou de fome.
                          Judeus nos campos
(…) Este êxodo que os europeus – os povos e os governantes- consideram apenas uma “crise” técnica que exige apenas alguns ajustamentos legais.
Se Nathan fosse vivo, não tenho dúvidas nenhumas que reconheceria em Ali e Ahmed o seu próprio rosto, o seu próprio destino, a sua própria angústia. (…) Reconheceria os mesmos argumentos nas mesmas fronteiras: “A Europa não pode integrar tuddo, a opinião pública não é favorável aos estrangeiros judeus e outros 'métèques' já demasiado numerosos. (…)"
Talvez só a alemã Merkel “reconheça” a medida real do drama e procure soluções humanitárias. Porque, como alemã, ela sabe que Ahmed é Nathan, 75 anos mais tarde. (…)
Tenho vergonha da Europa pelo seu egoísmo, a sua miopia histórica e a sua arrogância de pequeno-burguês satisfeito. Por isso, para mim, Ahmed é meu irmão e Latifa é minha irmã.
Porque, calculem, Nathan era o meu pai!

Este artigo deu-me vontade de respirar fundo! Estimula-me. Farta de hesitações, de egoísmos, dos ‘confortos que temos, das desculpas em não querer aceitar o ‘outro’. Desculpas para termos ‘mais’ e não ’menos’. E a solidariedade? 
No entanto, estamos já tão em baixo! Tão pobres alguns! Tão humilhados! Tão vendidos!
Não perceberam ainda que já perdemos tudo? Ou que o estamos para perder? Resta-nos manter a dignidade de querer ajudar, realmente! Até como pessoas que ajudam outras pessoas apenas. Sei que começam a aparecer grupos de "entre-ajuda". Talvez a solidariedade não seja letra morta.
imagem do jornal La Stampa

E digo que Ahmed e Latifa podiam ser meus irmãos (se eu tivesse nascido na Síria), porque Nathan poderia ter sido meu pai (se tivesse sido judia nos tempos dos nazis)!

6 comentários:

  1. "Não perceberam ainda que já perdemos tudo? Ou que o estamos para perder? Resta-nos manter a dignidade de querer ajudar, realmente!" ....

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  2. É uma situação muito complicada...
    Será que a Europa tem condições para socorrer tanta gente? Numa Europa com tanto desemprego...

    Que mundo este...

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  3. Eu sobretudo tenho vergonha de mim mesma, podes acreditar. Sobra-me um quarto e um prato de comida, seria capaz de pôr um refugiado na minha cómoda vida? Enquanto não for capaz de o fazer, procuro pelo menos respeitar ao máximo o sofrimento dos outros.

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  4. Não há palavras... apenas obrigada por esta partilha.
    Beijinho. :))

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  5. Fabuloso este testemunho. Não falta acrescentar nada.
    Obrigado e parabéns, MJ.
    Tenho os olhos feridos da areia...

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  6. Olá, MJ.
    Aqui tem um excelente postagem, acerca dum tema que deixa-nos a consciência curvada pelo peso.
    Não há que ter vergonha da Europa, porque a vergonha pertence à Humanidade. Porque o Homem é o animal mais cruel sobre o planeta.
    Esta é uma tragédia dantesca. Mais uma.
    É guerra, é fome, é nada.
    Mas não é fácil tomar decisões para um problema de tal envergadura. Não, não é fácil.
    abraço

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