sexta-feira, 18 de março de 2016

ARTHUR RIMBAUD, O REBELDE VIAJANTE



Toda a gente falou de Rimbaud! Todos conhecem Rimbaud! Pois eu não conhecia milhentos aspectos da sua vida e da sua obra – tão breve, três ou quatro anos!- que ‘marcou’ a poesia moderna!
Rimbaud, o poeta adolescente? Rimbaud o poeta satânico? Rimbaud o rebelde? E por que não Rimbaud o eterno vagabundo, o insatisfeito? 
Musée Rimbaud, Charleville

Estudei Rimbaud, como muitos alunos de Românicas, ensinei Rimbaud, como muitos professores de Literatura Francesa, que fui. Mas quanto ficou por saber! Quanto há sempre a descobrir, se o quisermos! O conhecimento é um dos bens que a todos é (devia ser) permitido!
Comecei a reler a poesia dele, os textos em prosa, as cartas e fascinou-me descobrir a sua vagabundagem pelo mundo. Um poeta errante.

Arthur-Jean Rimbaud nasceu em Charleville, nas Ardenas, em 29 de Outubro de 1854. 


Charleville
Morreu, a 10 de Novembro de 1891, no Hospital de Marselha. Em 25 de Maio, tinha-lhe sido amputada a perna direita. Viera de Harare  e de Aden, onde vivera muitos anos a comerciar e a viajar, por zonas agrestes, áridas, de difícil acesso, pelas montanhas a dorso de cavalo, ou de mula. Ou mesmo a pé, sem confortos nem descanso, em climas com grandes amplitudes térmicas duros de suportar para um europeu
Em Marselha, os médicos dizem: “Neoplasia”. Ou cancro dos ossos? Cancro que se generalizou. Tinha 37 anos e tinha vivido várias estações da vida no Inferno.
Na Introdução de Charles-Edmond Magny, à obra “Arthur Rimbaud” (Pierre Seghers Editeur -Colection poètes d’aujourd’hui) leio:

Rimbaud atravessou, dos 16 aos 19 anos, como um meteoro, a literatura francesa, deixando a poesia estigmatizada para sempre pela sua passagem.” (pg.9)
As suas deambulações de vagabundo livre, de viajante solitário de espírito interiorizado, conduzem-no cada vez mais longe. 
E a mim, a curiosidade leva-me a procurar tudo o que tenho em casa sobre ele. 
E folheio, perdida e encantada, as Oeuvres Complètes, na Pleiade, com um estudo de Antoine Adam e notas preciosas aos poemas e aos escritos do Poeta.

E a ajuda de um livro precioso que me ofereceu uma amiga italiana que ama Rimbaud (Rimbaud, Una Stagione in Inferno e Illuminazioni, edição bilingue da Oscar Mondadori). Livrinho que tem um Prefácio e uma Cronologia, muito bem feitos, de Gianni Nicoletti. 
Rimbaud, o revoltado, o fugitivo, o insatisfeito, o vagabundo, o aventureiro descobre-se, em 1870, aos 16 anos, anti-bonapartista (Napoleão III) e contra a guerra franco-prussiana que decorria e matava jovens soldados de um lado e de outro. 

Reconhece-se do lado dos pobres e dizem muitos que foi um communard ainda adolescente. A Comuna de Paris é de 1871 e dura de Março a Maio, uma Primavera só.
 início da Comuna, 18 de Março 1871

 Na primeira fuga, em Agosto de 1870, a direcção é Paris, mas o bilhete estava pago apenas até Mohan: comprara-o com o dinheiro da venda dos livros que recebera de prémio, no Colégio. 
Rimbaud, em1870, foto de Etienne Carjat

Apanhado sem bilhete, na Gare du Nord, é encarcerado na prisão de Mazas. No dia 5 de Outubro, escreve ao seu Professor de Retórica, e amigo, Izambard, pedindo que o venha buscar.
Maison d'arrêt de Mazas


Georges Izambard
Georges Izambard era professor no Colégio e sabia que aquele aluno era excepcional. Entusiasmou-o quando ele lhe mostrou o que escrevia. Tinha então 15 anos. Tem confiança nele. Agora, vai tirá-lo da prisão e dá-lhe abrigo em Douai, onde vivia.
Douai, hoje

A 2 de Outubro, Rimbaud parte e consegue chegar a Charleroi (na Bélgica)  - vai até Bruxelas.
A 25 de Fevereiro de 1871, foge de novo. Desta vez, vende o relógio, e vai a Paris. Sem dinheiro, deve ter sofrido fome e frio e, nos bairros pobres onde se aloja, o espectáculo da miséria que contempla é desolador. As crianças sujas e com fome pedem pelas ruas, há imenso alcoolismo e prostituição.

Volta a casa, 15 dias mais tarde, atravessando as linhas inimigas (houvera um armistício na Guerra franco-prussiana). Diz-se “franco-atirador” e assim foi passando as linhas. Quando regressa a Charleville, fora proclamada a Comuna.
A Comuna de Paris, 1871

A 10 de Setembro desse ano, volta a Paris, agora a convite do poeta Paul Verlaine, que conhecera, através de um amigo ligado ao “ocultismo”, e a quem mandara algumas das suas poesias. 
Verlaine está à espera dele na Gare de l’Est com Charles Cros. Vai instalarse em casa dos sogros de Verlaine onde Rimbaud conhece a mulher Mathilde Mauté. Por uns tempos fica em casa dos Mauté, na rue Nicolet. 
Verlaine e Rimbaud (1871-2?)

Inicia uma tumultuosa relação com Verlaine. Rimbaud tem 17 anos e Verlaine mais dez do que ele e já  um poeta afirmado. Começam cenas violentas entre ele e a mulher que não suporta aquela situação. 
Rimbaud aluga, então, uma mansarda na rue Campagne Première. Quando o dinheiro acaba, são os amigos que o alojam. Frequenta os meios literários e boémios de Paris.
 Verlaine e Rimbaud, "Coin de table" de Fantin-Latour

 Verlaine e Rimbaud, 1872 (pormenor)
Rimbaud volta para Charleville mas por pouco tempo. Depressa,  se instala em Paris, a viver com Verlaine. 

Paul Verlaine, pintado por Courbet, s/data
Em Maio de 1872, estão os dois em Bruxelas. E, em Setembro, estão em Londres, onde Verlaine o abandona sem dinheiro. Decidira voltar para Paris, para a mulher.
Rimbaud vive com imensas dificuldades numa Londres complicada, neste fim de século, cheia de pobreza. Essas circunstâncias levam-no a voltar para casa, em 1873. 

Verlaine entretanto fora viver para Bruxelas e pede-lhe para ir ter com ele. Nesse ano, em Julho, Paul Verlaine, bêbado, dispara dois tiros e fere Rimbaud, que faz queixa dele. 
Rimbaud, ferido, pintado pelo pintor Rosnan
Verlaine é preso. Julgado, é condenado a 2 anos de prisão. Separam-se de vez.

Rimbaud volta a Paris, mas os amigos comuns abandonam-no. Riem-se dele. São cruéis e Paris torna-se inóspita. Volta a casa.

E recomeçam as viagens e as errâncias: Paris, Londres, agora sozinho. Depois, em 1875, corre a Itália, a pé: Milão, Livorno, Siena. Sofre uma insolação e é repatriado para Marselha. Volta a viajar sem destino: Viena, a Holanda - onde se alista no exército colonial holandês, na Legião Estrangeira. 
a Ilha de Java 
Embarca, em Roterdão, a 19 de Maio no ‘Prins Van Orange’. Chega a Java e a Battavia, na Indonésia. Segue para Samarang com a sua unidade. 
Battavia

A 15 de Agosto é dado como desertor. Foge num  cargueiro para Liverpool. Em 1877, está em Bremen, e entra para a Marinha dos USA.

 Farol de Alexandria
Regressa a casa. E parte de novo, empregado num circo (o Circo Loisset), e faz várias tournées pela Escandinávia: Noruega, Suécia.  E, outra partida em 1878. Egipto, em Alexandria, depois Chipre onde arranja trabalho numas escavações. 
Em 1879, volta a França, à casa das Ardenas, a curar uma febre tifóide. Em 1880, está de regresso a Chipre.
Cada vez mais para oriente, adentra-se na África Oriental: Somália, Etiópia. Arranja trabalha em Harare. 
 Harare
Depois segue-se Aden, no Yemen. Longa peregrinação pelo Mar Vermelho. 


 Aden

Outra vez de regresso à Etiópia, Harare, onde vai trabalhar numa companhia export-import.


Aden, cidade velha, hoje, destruída pelas guerras infindáveis
E anda de Aden para Harare, à roda do Golfo de Aden. Em 1882, volta a Aden. Compra uma boa máquina fotográfica e fixa paisagens e gentes. Interessa-se pela exploração geográfica e escreve alguns artigos para revistas francesas. 
Esboço de Fantin-Latour, 1872
Longe, na Europa, ficou o adolescente que não queria crescer. Agora é um homem duro à procura dum destino e de outra vida. Talvez, apenas, a quimera do ouro! 
Pensava na sua terra?  É provável, quando tinha tempo para isso. Nas cartas aos familiares queixava-se das condições de trabalho violento, do clima. 
Harare, 1884

De Aden, em 1884, escreve à família falando da dureza da vida. “Ignoro pessoalmente para onde serei arrastado em breve, por que caminhos, e por onde, e por que razão, e como! (…) a minha vida aqui é por vezes um pesadelo.
Ou então: “O clima de Harare e o da Abissínia é excelente (,…) ao passo que viver nas costas do Mar Vermelho enerva os mais resistentes; e num ano uma pessoa envelhece como quatro anos noutro lugar.”
Harare, 1884

Mais adiante, noutra carta: “Não julguem que passo uma boa vida. Longe disso. Muitas vezes penso até que é impossível ter-se uma vida mais penosa do que a minha.”
E ainda: “Estou condenado a viver muito tempo ainda, para sempre talvez, nestas paragens onde já sou conhecido, e onde encontrarei trabalho; enquanto que, em França, seria um estrangeiro e não encontraria nada.”
O que não o impede de amar esses lugares a que chama também "ce sale pays" (porcaria de país). 
Pensava voltar assim que tivesse o dinheiro necessário: queria abrir um negócio, casar e ter uma família.

A situação da perna é muito grace, tem febre alta, dores insuportáveis no joelho. Com força de vontade inquebrável, manda construir uma espécie de maca que ele próprio desenha, e paga aos empregados para que o levem a Aden. Ali, o médico inglês considera que tem de ser operado de urgência. Aconselha-o a embarcar  imediatamente para Marselha, onde chega destruído e sem forças. Afinal quando volta à terra é para se tratar e para morrer!
Tinha alguma esperança? Talvez. A verdade é que luta durante meses para viver. 
Amputam-lhe a perna e tudo corre mal. Sem se poder mexer, com as muletas com que não se equilibra, arrasta os dias deitado na cama. Depois, o 'mal' alastra, estende-se à outra perna, sofre de paralisia. Valeu-lhe a irmã, Isabelle.

Escreve-lhe do hospital : "penso que as causas da minha doença foram o clima e Harare, frio de Novembro a Março. Eu protegia-me pouco, sempre só com uma camisa e calças de algodão. Corria quilómetros (...) e fazia longas cavalgadas pelas montanhas abruptas do país (carta de 15 de Julho, pg. 688, Oeuvres Complètes, Pléiade)."
Não se consola com o que lhe aconteceu. Angústia, desilusão, desespero. Lamenta-se, deprimido. Ainda vai de comboio às Ardenas mas volta ao hospital. Para nunca mais sair de lá. Perde a sensibilidade no braço direito, depois no esquerdo. Tem delírios.  A irmã acompanha-o e é uma companheira maravilhosa até à sua morte. 
Arthur Rimbaud, retrato feito pela irmã (1891)

A 10 de Setembro escreve ela à mãe: "As dores não cessam, nem a paralisia dos braços. Está magro, tem os olhos encovados e olheiras negras."
A morrer, pensa nos amigos “de lá”, e sonha que voltou a Harare e conversa com a irmã imaginando que já lá está e que têm muitos problemas a resolver – ele e a irmã.
Sonha acordado (pg 706, op. cit) com Harare - e conta à irmã o que imagina, e "quer que o seu sonho seja como ele diz"
É Isabelle que conta à mãe: 
"Estamos em Harare os dois, partimos sempre para Aden, é preciso arranjar cavalos, organizar a caravana; ele sente que anda bem com a perna articulada, damos belos passeios em cima de burros enfeitados de panos de cores lindas." (carta de 28 de Setembro -um mês antes de morrer).
Volta, então, a Harare e Aden...E apressa-a:  "Vite, vite, on nous attend, fermons les valises et partons!"
Como escrevera,  nos seus 16-17 anos, na impaciência, na infantil 'não resignação ao tempo' (*),  na pressa de avançar: 

"Ah, vite, vite un peu; là-bas, par-delà la nuit, ces recompenses futures, eternelles…les échaperons-nous?"

Morreu, a 10 de Novembro de 1891. Era a última viagem!

Mas esse viajante insatisfeito, o menino impaciente que se aborrece sozinho, o poeta errante, tem um destino singular. Rimbaud permanece único ainda hoje. E a sua poesia é discutida e não há nenhum acordo sobre o sentido 'verdadeiro'  dos seus poemas. E muito se 'inventa'!
água-forte  de Valentine Hugo
Stephane Mallarmé define-o, nas Divagations,  como um meteoro: “Com o brilho de um meteoro, aceso sem outro motivo se não a sua presença, e que desaparece sozinho, apagando-se”.
 Stephane Mallarmé, pintado por Renoir


Terá o poeta, "meteoro" brilhante, encontrado -'là-bas, par-delà la nuit' - as tais recompensas futuras eternas? 


(*)NOTAS:  Explicava Claude-Edmond Magny que a impaciência  era o seu pior "pecado" "A impaciência que é, aliás, um pecado infantil, a não resignação ao tempo”. 


3 comentários:

  1. Meu Deus, uma vida tão atribulada! Tanta coisa vivida numa vida tão curta!

    Gostei muito de ler o post. Conheço pouco a poesia de Rimbaud.

    Um beijinho:)

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  2. Já me tinha esquecido da vida duríssima de Rimbaud, que talvez me faça gostar ainda mais da sua magnífica poesia, dessas que fazem história da literatura. Um grande entre os grandes.
    Bjsss

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