Em Setembro, festejando os vinte anos que passaram sobre a morte do grande escritor belga, saíu, em França, um livro escrito com o que Simenon "disse" e "escreveu", "falou", "comentou": é o seu "Autodictionnaire"(1).
A televisão Eurochannel durante o mês de Setembro também homenageou Georges Simenon com um ciclo de filmes sobre o Inspector Maigret.
Pierre Assouline é o inventor do tal "autodiccionário": foi ele que teve a ideia, juntou em ficheiros com milhares de páginas tudo o que pôde - tarefa não-fácil, desproporcionada... Como o era o escritor a que se dedica: Exagerado, excessivo emtudo... excepto na feitura dos romances que, esses, têm uma estrutura perfeita, equilibrada).
Não devemos esquecer que Simenon não é só um autor de livros policiais: há os seus romances" duros" -"les romans romans", como ele lhes chama -obras de grande fôlego do dia a dia, das vidas das "pauvres gens" de que tão bem sabia falar.
Dos dias que vivem sozinhos, frustrados, sofrem, odeiam, invejam e se vingam. Dos que sofrem porque são agredidos, porque são maltratados e não têm coragem para fugir de um destino que os marcou à nascença. Dos que procuram esse destino e o seguem quase involuntariamente, sabendo que lhes vai ser fatal.
Simenon é um "fenómeno", o fenómeno Simenon, como lhe chamava o grande André Gide...
Que "fenómeno", afinal?
Da Wikipedia: "Georges Simenon foi um romancista de uma fecundidade extraordinária: escreveu 192 romances, 158 novelas, alem de obras autobiográficas e numerosos artigos e reportagens sob seu nome e mais 176 romances, dezenas de novelas, contos e artigos sob 27 pseudónimos diferentes. As tiragens acumuladas dos seus livros atingem mais de 500 milhões de exemplares. É o autor belga, e o quarto autor de língua francesa, mais traduzido em todo o mundo. O seu personagem mais famoso é o Comissário Maigret, personagem de 75 novelas e 28 contos."
E quando estava cansado de escrever... começava a escrever uma história com o inspector Maigret, para descansar.
Sim, porque era assim que repousava: a escrever..
Pierre Assouline, na entrevista que lhe faz a revista francesa, "Nouvel Observateur", falando da figura e biografia “excessivas” de Simenon e do seu extraordinário poder de trabalho conta como André Gide se sentia fascinado com a sua “mecânica narrativa”. De facto, devora os seus romances à medida que saem...
"No total, diz Assouline, escreveu 400 romances, (70 do Comissário Maigret), viveu em 33 domicílios diferentes, diz ter tido 10.000 mulheres... "
De facto, excessivo...
Recordemos um pouco da biografia e da obra de Simenon:
Quando chega a Paris vindo de Liège, nessa época -os famosos anos 20- aprofunda o seu conhecimento do meio boémio, das prostitutas, dos bêbedos, dos anarquistas, e dos artistas e mesmo futuros assassinos. Frequenta também um grupo de artistas chamados "La Caque", onde encontrara uma estudante de Belas-Artes, Régine Renchon, com quem se casa em 1923.
São os anos da descoberta da grande capital que aprende a amar com as suas desordens, os seus delírios. Parte para a descoberta dos bistrots, brasseries e restaurantes e cabarets, encontrando seus personagens na população parisiense, artesãos, serviçais, pobres das ruas.
Encontra também Joséphine Baker por quem tem uma grande paixão, indo de férias com ela para a ilha de Aix (1927).
Entretanto casara com Tigy segundo ele próprio conta: "para não fazer muitas asneiras..."
Em 1928 faz uma longa viagem de barco, para suas reportagens, descobrindo a água e a navegação, que aparecem sempre em sua obra.
Em 1929 decide fazer uma viagem pela França, explorando os canais num barco que mandou construir, o ‘’Ostrogoth’’, no qual viverá, com Tigy, e a criada, Boule, até 1931.
Em 1930, numa série de novelas escritas para ‘’Detective’’, uma colecção nova criada por Joseph Kessel, aparece pela primeira vez o personagem ‘’Comissário Maigret’’.
Descobre, também, por essa altura, uma paixão pela navegação e por La Rochelle, onde no "Café de la Paix’’, -que aparece em obras suas e se tornaria seu quartel-general- pediu uma garrafa de Champagne ao ouvir a declaração de guerra alemã em 1939; ante ao espanto dos presentes, disse: "ao menos não será bebida pelos alemães".
Passa a morar em La Rochelle, onde nasce seu filho Marc, em 1939, filho de Tigy (Régine, pintora, belga como ele, com quem casara em 1923).
Em 1945, depois do fim da guerra, vai viver nos Estados Unidos, percorrendo nos dez anos seguintes o continente, para saciar sua curiosidade e seu apetite de viver, quase diria, bulimia de viver...
Durante esses anos americanos, visita sempre Nova Iorque, Flórida, Arizona e a Califórnia e toda a costa Leste, milha a milha, os motéis, as estradas e as paisagens grandiosas.
Vai conhecer a sua futura segunda mulher, a canadiana Denyse Quimet, 17 anos mais nova, com a qual vai viver uma paixão intensa de ciúmes, discussõe e álcool.
Denyse que vai ser sua secretária e, depois, mulher e com quem tem 3 filhos: Jean, Marie-Jo e Pierre. Ligação acidentada, violenta, possessiva, doentia. Que continua para lá da separação, com livros escritos pelos dois -vingando-se ("Un oiseau pour le chat", de Denyse Simenon, é um exemplo disso), ofendendo o outro no que escrevem. Que vai marcar o destino da filha, Marie-Jo, muito ligada ao pai e que não aguenta, suicidando-se aos 25 anos.
Escreve vários textos autobiográficos, desde "Pedigree".
“Des traces de pas” espécie de diário que começa em em 20 de Setembro de 1973 e acaba a 30 de março de 80 (publicado em 1975, por Presses de la cité)
Em 1981, dois anos depois do suicídio da filha, publica
“Mémoires Intimes" (seguidas do "livro de Marie-Jo": cartas, poemas, bilhetes de Marie-Jo escritos ao pai desde Dezembro de 72 até 1978, a última carta, sem data).
No prefácio “carta-dedicatória datada de 16 de Fevereiro de 1980 começa um diálogo (monólogo) com Marie-Jo.
Já no fim da vida conhece a italiana Teresa que vai ser a companheira dedicada, atenciosa, suave, dos últimos anos. Simenon morre a 4 de Setembro de 1989, há vinte anos pois.
No "Nouvel Observateur" de 10-16 de Setembro de 2009, sai essa longa entrevista -que acima referi- com Pierre Assouline, escritor e biógrafo de Simenon ("Simenon"), autor do tal "autodiccionário" de Simenon.
Quando o entrevistador lhe pergunta se também ele, Assouline, é excessivo -tendo em conta o trabalho que fez: as milhares de páginas que teve de ler, cartas, “files”, entrevistas ou intervenções que ouviu, cartas inéditas, ficheiros etc. na rádio ou na televisão sem citar a sua [de Assouline] enorme bibliografia, os inúmeros livros publicados, o blog, prefácios e artigos que escreve, etc, Assouline responde:
“Nem pensar: eu escrevo um livro por ano. Ele escrevia cinco. Tudo nele é coerente [na desmedida]: nasceu sob o signo do excesso. Quando fala é durante horas; quando escreve é um livro de 3 em 3 meses e perde 5 kg por livro; quando escreve cartas são 10 por dia; quando ganha dinheiro é uma fortuna; quando é adaptado ao cinema passa a ser o escritor “mais adaptado”...
Não é só Assouline que se "espanta" com este escritor: é o leitor comum que pega num dos seus romances e lê, lê até o acabar, sem largar um momento; é o professor sueco que ensina francês com o livro "Maigret et le clochard" porque considera que nesse livro está tudo o que é preciso para se ficar a saber o essencial do francês falado; são as inúmeras colecções que o publicam nas línguas faladas neste mundo: traduções em dezenas de línguas.....
E é o conhecido e exigente escritor francês, André Gide, que já em 1938 se espanta. E fala de "fenómeno". E refere sua fantástica "mecânica narrativa"dos seus romances. De facto, por causa dessa narrativa, lê os livros de Simenon uns atrás dos outros à medida que vão saindo:
É André Gide que diz na "Correspondência Georges Simenon-André Gide", intitulada: "...sans trop de pudeur, Correspondance 1938-1950" (prefácio e notas de Dominique Fernandez e a edição é curada por Benoït Denis, da Universidade de Liège, Carnets, Omnibus), em carta de 31 de Dezembro de 1938, dirigida a Georges Simenon:
"Todos estes livros [seus] (os que publicou de há dois anos para cá) espantaram-me imenso, especialmente "Le Cheval Blanc" que acabei mesmo ontem à noite e do qual li algumas páginas a Jean Schulemberger e depois a Roger Martin du Gard: as do extraordinário diálogo entre Arbelet e o Tio Felix, que me encantou."
"Mas, o que queria dizer, precisamente, no meu artigo [sobre si], é o curioso malentendido que se estabeleceu no que diz respeito a si; passa por um autor popular e a verdade é que não se dirige ao grande público (gros public). Os próprios temas dos seus livros, os mínimos problemas psicológicos que levanta, dirigem-se aos delicados, aos sensíveis; àqueles que, precisamente, pensam, enquanto o não lerem: "Simenon não escreve para nós." E, no meu artigo, quereria dizer-lhes que se enganam..."
Num pequeno dossier com alguns rascunhos de Gide para o tal artigo (que aparecerá nos "Cahiers du Nord, 1, 2 (13º ano -1939)", número dedicado a Simenon, escreve:
"Simenon tem admiradores por toda a parte e mesmo os que se fazem esquisitos e dizem: "Oh, Simenon escreve de mais! (...) desejo declarar que considero Simenon um grande romancista, o maior talvez e o mais verdadeiro que temos hoje em França."
E logo adiante fala dos temas, das personagens escolhidas, as tais "petites gens":
"A horrível mediocridade da vida quotidiana. o Esforço desesperado, criminoso para escapar ao aborrecimento (l'ennui), ao cansaço de andar à roda. De repente, um sobressalto fortuito, provocado por quase nada e eis que o autómata sai da pista do seu carroucel. É uma inconsequência que dura apenas um instante, e toda a vida que lhe resta para viver a seguir é para se arrepender. Oh! não nada de arrepemndimento religioso, simplesmente não pode voltar para trás para dentro da sociedade daqueles que continuam a andara à roda como antes."
"A horrível mediocridade da vida quotidiana. o Esforço desesperado, criminoso para escapar ao aborrecimento (l'ennui), ao cansaço de andar à roda. De repente, um sobressalto fortuito, provocado por quase nada e eis que o autómata sai da pista do seu carroucel. É uma inconsequência que dura apenas um instante, e toda a vida que lhe resta para viver a seguir é para se arrepender. Oh! não nada de arrepemndimento religioso, simplesmente não pode voltar para trás para dentro da sociedade daqueles que continuam a andara à roda como antes."
Provas dessa "atracção" que as obras de Simenon exercem são os infindáveis número de filmes tirados dos seus livros (rivaliza com a outra grande, Agatha Christie), as inumeráveis séries do Comissário Maigret: há um Maigret em toda a parte do mundo, em todas as nacionalidades..
De Jean Gabin, o fascinante e inesquecível actor que é sempre bom. (Acho que só os actores ingleses têm essa prerogativa: como Laurence Olivier, Dirk Bogarde, Michael Caine, Anthony Hopkins - ou o americano Spencer Tracy ou ainda Dustin Hoffman.)
Depois de Gabin, vêm outros franceses: Jean Richard, Bruno Cremer (na foto ao lado); o inglês Michael Gambon (em baixo, com o célebre cachimbo de Maigret); o italiano Gino Cervi.
Haverá já um Maigret japonês? Virá a aparecer um Maigret chinês?
Nada me surpreende neste campo...
Bem, mas para fazer um Maigret não são todos os actores que servem, confesso...
É uma personagem única, na sua simplicidade, na sua filosofia de "comprendre et ne pas juger...", não lhe competem os julgamentos: ele tenta apenas compreender e é nesse esforço de se abrir aos outros, entender todos os mundos por mais estranhos que parecçam, saber as razões profundas que levam a um acto que se sente a enorme humanidade que o torna exemplar.
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(1) "Autodictionnaire Simenon", por Pierre Assouline, Omnibus, 810 páginas, 26 euros.
(2) Pierre Assouline, nascido em 1953, é um jornalista e romancista francês. Escreveu várias biografias de escritores entre elas a de Georges Simenon, intitulada "Simenon". Escreve um blog muito conhecido em França, "la république des livres".
Alguns livros importantes sobre Georges Simenon:
"Simenon", de Pierre Assouline
"Georges Simenon, romancier de l'instinct", de Pierre Debrey-Ritzen, Editions Favre, Zurique, 1989
"Georges Simenon, romancier de l'instinct", de Pierre Debrey-Ritzen, Editions Favre, Zurique, 1989
"The man who wasn't Maigret", de Patrick Mqarnham, Bloomsbury Publishing, Londres
"Correspondência Simenon-Gide ...sans ombre de pudeur", Carnets Omnibus, Paris
Correspondência Simenon-Fellini "Carissimo Simenon-Mon cher Fellini", Adelphi, Roma
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Ilustrações:
1. fotografia de Simenon com Jean Cocteau, em 1963, no Festival de Cannes.
1. fotografia de Simenon com Jean Cocteau, em 1963, no Festival de Cannes.
2. capa do romance "Port des brumes", colecção Livres de Poche
3. Jean Gabin e Simone Simon, num filme em 1938
4. Quadro de Theo Van Risselbergue, pintor e amigo de Gide cuja mulher "la petite dame" como lhe chama os amigos foi uma das melhores amigas de Gide
5. "Un corps sans tête", publicado em francês na Russia, 2001
6. Capa e contra-capa da mesma edição escolar, Editions Raguda, com pequeno glossário francês-russo (ainda se vê o preço no verso: 46 rublos)
7. foto de Georges Simenon, 1960
8. capa do DVD da série einglesa dedicada ao Inspector Maigret, com o actor Michael Gabon
9. Joséphine Baker, grande cantora e bailarina dos anos 20
10. "Maigret tend un piège", capa com Bruno Cremer
11. filme francês "Maigret voit rouge", realizado por Gilles Grangier, 1963, com Jean Gabin
12"Des traces de pas", livro-diário de Simenon, Presses de la Cité, Paris, 19
13. "Mémoires Intimes", Presses de la Cité, Paris, 1981
14. capa de um DVD "Maigret"
15. André Gide, escritor francês (
16. André Gide, jovem
17. o actor francês Bruno Cremer, um dos melhores Maigret
18. o actor inglês Michael Gambon