sexta-feira, 4 de setembro de 2009

A casa amarela: o meu avô






O meu avô aparecia, à noite, com um cão branco e preto. Vinha deixar a avó em nossa casa, para passar o serão. Muitas vezes, juntavam-se-lhes as outras irmãs da minha avó, a tia Zèzinha, a tia Leopoldina e a tia Mariquinhas.
Sempre bem vestido, cheirava bem. Seguia para o cinema e levava o cão, o Tommy, que o esperava fora.
O meu avô era uma pessoa doce, um homem bonito, sempre bem arranjado, agradável que não criava problemas a ninguém, pelo contrário, gostava de ajudar toda a gente. Eu nunca lhe vi nenhum defeito.
Recordo uma fotografia com ele, os dois a descer as escadas da Igreja de S. Cristóvão. Ele com o
chapéu cinzento, o fato de colete, cigarro na mão,
um bigode farto, sorriso terno, atento a que eu não tropeçasse. Eu a segurar a saia pregada, casaquinho de lã e um chapéu de feltro redondo, que detestava mas a minha mãe me punha sempre, a pontinha da língua saída para um lado, concentrada na descida.
A avó achava que ele tinha um defeito: ser demasiado brando, não se impor.
- Fazem de ti o que querem, João. Calculo o que vai lá pela tipografia! Abusam...
Ninguém abusava do meu avô. Na tipografia, era respeitado, pela sua justiça, compreensão e suavidade. Claro que muitas vezes deixava os empregados chegar mais tarde, ou partir mais cedo...
-“ A minha filha teve dor de ouvidos toda a noite, não dormi nada... de manhã deixei-me dormir...”
Ou outro:
-“Tenho que levar a minha mãe ao hospital... Posso sair meia hora mais cedo?...”
- "Está bem, vai lá..."
O meu avô dizia sempre que sim. O meu avô acreditava nas pessoas mesmo sabendo que são fracas e que, por vezes, podem precisar de ir tratar de uma coisa mas acham melhor dizer que vão fazer outra. O meu avô não sabia se eles iam levar a mãe, ou se a filha tivera ou não tivera dores. Mas, se fosse verdade? O meu avô preferia pensar que era verdade... Era um contrato entre ele e as pessoas. Cada um era responsável pelas próprias palavras e pelas acções, pelo respeito por si próprio.
O meu avô era um justo e amava a sua tranquilidade. E muitas vezes ao longo da vida pensei nele: o que diria ele, como agiria o meu avô? E ajudou-me a decidir.
Os problemas para a minha avó não acabavam ali:
- Ninguém te paga, João. As assinaturas dos jornais?... A publicidade? Quem é que já pagou este mês? Arranja um garoto para ir receber as contas...
- Deixa lá, não te preocupes, mulher, eu trato disso...
Às vezes o meu avô tratava disso. Encarregava o garoto que lhe vendia os jornais de ir receber as contas, dava-lhe as direcções numa folhinha com a sua letra perfeita. Só que as desculpas eram muitas e o miúdo raras vezes regressava com dinheiro.
O seu maior prazer era estar na tipografia, sentado à secretária pequenina virada para a parede, onde pendurara uma gravura humorística. À luz do candeeiro, a secretária cheia de papéis, deixava-se ficar até tarde. O candeeiro tinha um abat-jour verde e representava um ardina a rir, com os jornais debaixo do braço. Hoje guardo-o em minha casa, e lembra-me esses dias que passaram tão depressa...
O meu avô corrigia as provas do jornal, revia, emendava, fazia ao lado uns sinais que para mim eram incompreensíveis, uns rabiscos que ficava a observar quando lá passávamos de corrida, eu e a minha irmã, a buscar o “Mundo de Aventuras” ou o “Cavaleiro Andante”, revistas que ofereciam ao jornal "A Rabeca", de que ele era o Director, e que separara, antes, com cuidado para nós.
- Estão ali..., apontava, contente.
Eu ficava com os olhos presos àquelas tiras de papel compridas, que me disseram serem as "provas" do jornal, ia ver os chumbos já feitos, em grandes tabuleiros de madeira que, por vezes, ainda eram emendados depois das correcções do meu avô.
Anos depois, na quinta da Serra onde passávamos as férias, eu e o Manuel ajudámo-lo a corrigir as provas, quando ele, já cansado, sentia certa dificuldade em fazê-lo na tipografia e trazia "serão", como ele dizia, "o trabalho para acabar em casa".
O meu avô continuava a ser respeitado: o autocarro onde ia para a Serra almoçar, dava a volta lá acima no Salão Frio e esperava por ele na curva da estrada, encostado ao portão da quinta.
- Não tenha pressa, Sr. Casaca, coma sossegado!, gritava de lá o condutor.
E muitas vezes, nas ruas da cidade, bastava-lhe fazer um sinal: os autocarros paravam e ele entrava.
Agora, com saudade, lembro a tipografia, o cheiro dos tabuleiros e dos chumbos e das tintas, um cheiro forte, e vejo o meu avô, de óculos em cima do nariz, a escrever ou a falar com os empregados, no seu modo brando.
A tipografia era o seu reino, o seu condado, estava sozinho, longe da personalidade forte da minha avó. Ali mandava ele, a avó não podia ter opiniões e só se podia lamentar:
- Ai, João, João!..
....................................
na fotografia :
eu e o meu avô, a descer as escadas de São Cristóvão

6 comentários:

  1. Sabe? As saudades crescem com a idade, com o tempo dos afectos perdidos, mas, ao mesmo tempo, fazem muito boa companhia, não acha?
    Um beijinho

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  2. Um avô lindo e uma neta que conserva a frescura de criança.
    Um beijo grande

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  3. Tambem recordo o meu avô como uma pessoa muito boa.Embora, tivesse apenas 6 anos quando ele deixou de estar entre nós, ainda hoje, tenho presente a imagem de um homem muito alto, bigode farfalhudo, calmo e sempre disponivel para conversar com os netos, principalmente ao serão, sentados á lareira, nas longas noites de inverno.

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  4. Mais uma belíssima página escrita por uma alma superior.

    Manuel Poppe

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