domingo, 1 de maio de 2011

Histórias de Mulheres: Uma Noite na Serra


Berthe Morisot, retrato de Julie


Uma Noite na Serra


















Ouvia a mãe, a mexer na lareira, e levantou-se. Era muito tarde e não conseguia dormir, agitava-se, às voltas na cama.


Como era possível que a mãe vivesse sozinha naquela casa grande de portas mal fechadas e janelas frágeis que se abririam ao mais pequeno empurrão?


O vento soprava forte, como tantas vezes acontecia na serra. A chuva batida, parecia tamborilar nos vidros, a chamá-la.

Pensou noutras noites de Inverno, frias, a chuva, relâmpagos, as árvores agitando ao vento os ramos do pinheiro que vinham bater na chaminé.


E a mãe sozinha na casa, perdida, a meio da escuridão e do nevoeiro que se agarrava aos vidros.


Só a hera e a trepadeira de roseiras bravas a subir pelas paredes, onde os pássaros se escondem para se proteger, pareciam dar um pouco de cor.


No terreiro, em baixo, as laranjeiras com pequenas laranjas, ainda verdes, que mal se distinguem na mancha branca da névoa.

- Mamã...


Saiu do quarto e debruçou-se ao cimo da escada, a chamá-la, falando baixinho sem saber porquê pois não havia mais ninguém em casa.


- Vou já, minha filha...

Mas não viera...
Desceu a escada, agarrada ao velho corrimão de madeira envernizada. Não vestira o roupão e tremia na camisa de dormir até aos pés, que ia arrastando pelos degraus.


- Mamã, venha-se deitar! É tão tarde!, ia dizendo.

A mãe virou-se de repente, assustada, perdida nos pensamentos, como se não esperasse vê-la entrar na sala. Esquecera-se dela outra vez.

- Ah! És tu... Que bonita a tua camisa de dormir, minha filha. É à moda antiga, com folhos e rendas, como as da tua avó...


Apertou os lábios, não queria chorar. A fragilidade daquele ser pequenino, a mãe, que via velha e sem defesas pela primeira vez na vida.


Como se tivesse desistido de lutar e se entregasse à fraqueza, ao sem-sentido das noites infindáveis, insones, a vaguear pela casa vazia, até de madrugada, à espera que a luzinha frouxa da manhã nascesse para se ir deitar.


Começou a pensar, e era como se rezasse:
- “Meu Deus, meu Deus, faz com que não existas! Faz com que o meu pai não possa saber nada disto...”


“ Isto” era a solidão da mãe, o abandono na casa silenciosa onde os estalos da madeira dos velhos móveis e o crepitar da lenha como única companhia.
A mãe, que se fechara sempre, que parecia que a afastara sempre, sentira-a perto nessa noite.


Dissera-lhe, numa espécie de confidência, ao jantar:
- Sabes, tenho medo e fecho as portas todas à noite. Mas, depois, perco as chaves e de manhã não sei onde as guardei e ando desnorteada à procura.


Agitava a cabeça devagarinho.


- Não quero que saibam que as perdi. Ando tão esquecida! Nem sei onde andam...

- Eu ajudo-a a procurá-las... Quer?
- Não vale a pena, deixa lá, que importa? De noite é tudo diferente. Talvez seja o medo, ou o desespero de me ver sozinha...

A cabeça, com os cabelos muito finos e branco, descaiu um pouco sobre o peito.


- Sim, completamente só! Eu que, desde pequena, tive sempre tanta gente à minha volta... Sabes bem.
Berthe Morisot, criança no jardim

E voltava-se para o outro lado, sem a ver, habituada a falar para ninguém.


- Eu sei, mãe...
- Fecho as portas e os armários e deito fora as chaves para qualquer canto, numa fúria! É a raiva de me ver sempre só! Não me posso conformar. Se o teu pai soubesse das minhas noites...

Imaginava-as e doía-lhe.


- A minha vida inteira rodeada de tanta gente! E agora...


Tinham acabado de jantar e a mãe mexia na lareira, enquanto falava. As fagulhas saltavam por toda a parte. Só elas animavam a noite. Aqueciam-nas.

A noite lá fora, negra, com vento e a chuva, entristecia-a. Ouvir o que a mãe dizia pensando, naquela solidão da serra, magoava.



- Sempre gente à minha volta. Tão mimada que eu fui ! Os avós, as tias, depois o teu pai, tu sabes...

Sim, ela sabia como o pai a adorara.

- E vocês, pequeninas, ao pé de mim. Nunca estava sozinha.
- Eu sei, mamã...

Voltara a sentir-se pequenina naquela casa grande e velha. Vieram as recordações da infância como uma bofetada dura.
Berthe Morisot, no campo



Teve vontade de gritar:
- Venha-se embora comigo, mamã!


Como se não a quisesse perceber, disse:
- Vai-te deitar tu, eu vou já...

Nessa manhã, ao entrar no escritório do pai, vira um pássaro que tinha ido morrer aos pés da cadeira dele. Da cadeira, onde nunca se sentava porque preferia estar na sala, com o livro apoiado na mesa da sala de jantar, ao pé delas. Lá fora a Primavera brilhava nesses tempos e havia flores por toda a parte...

Raoul Dufy, flores




Abandonado, o passarinho, entre os livros bolorentos, as paredes cheias de humidade, estava deitado, com o biquinho de lado, poisado no chão.

Agora, sentada ao cimo das escadas, esperava por ela, apoiada ao corrimão.




Via em frente, no ângulo do pequeno patamar, o quadro bordado em cetim branco, que se lembrava de ver na casa da avó, um rosto de mulher, inclinado, cabelos de fios dourados, atados com uma fita verde, e dentes de pérolas, que lhe sorria, melancólica.

Como adorara a infância! A felicidade que era, apenas, a credulidade na vida, nas pessoas, o sossego, a inconsciência, a sensação de tudo ser possível.


O quarto dos pais, de paredes altas e com uma janela também alta, com três finas colunas quadradas formando grades, para onde costumava subir, em segredo, a contemplar os telhados, de cima, a olhar para o fundo onde começava a planície alentejana. E a sua vontade de transgredir, de ver longe, de olhar para fora.

Lembrava-se bem desse quarto, a mobília azul lacada, ao estilo dos anos quarenta, que a mãe mandara vir de Lisboa. Era em cima da cómoda de espelho oval que se empoleirava para subir para a janela. E era na cama, baixa e sem enfeites, que a mãe as ensinava a cantar. Canções em francês onde a melodia da música se misturava ao incompreensível para ela da letra, tudo uma melopeia bela de sons estranhos e musicais. Nunca a esquecera:

Ah! si j’étais le rossignol qui chante
dans la forêt
je viendrais près de toi
...”

E imaginava-se descer outra vez as escadas da cozinha, na mesma casa, a casa alta, amarela, de grandes portadas de madeira, verdes, crestadas do sol, onde vivera a infância.


Ia descendo, devagar, num vago sentimento de medo, porque a cave estava vazia e escura e era noite, mas não resistia ao prazer de desafiar o próprio medo, para provar às irmãs e a si mesma que não tinha medo de nada.
Voltava a correr, chegava lá acima, com o coração a bater, afogueada e tonta, corria para a sala.
E o pai era o único a dar por isso. Levantava os olhos do livro, preocupava-se, sem saber da sua bravata, mas adivinhando a sua angústia. Toda a vida tinham falado sem palavras.



- Então? O que foi?...
- Nada, papá.

O calor da casa doutros tempos envolvia-a outra vez. Como se o pai estivesse ali e a sala quentinha, com a braseira e os livros e os jornais à volta dele, como dantes.

E, agora, o frio da solidão, na casa da serra...

Pedira-lhe, no princípio da noite, à lareira:
- Vai-se deitar cedo hoje, promete?
- Sim... Vou até com vontade. Estás cá tu... Nos outros dias, custa deixar a lareira, as luzes, o conforto e subir aquela maldita escada! O quarto está frio e escuro...

Para quê dizer-lhe que podia deixar a luz acesa e o aquecedor eléctrico ligado? Não era desse frio que ela falava e só por egoísmo podia pensar que isso bastasse para lhe dar calor, ou companhia.

Admirara a coragem com que vivera aqueles anos depois da morte do pai.


Tinham pensado todos que não ia resistir, perdida no casarão da Serra. Mas ela resistira. Ao princípio, vinham as filhas, os netos, os amigos, depois as pessoas rarearam as visitas e aquela mulher, frágil de aspecto, fora ficando sozinha e aguentara.

E a mãe continuara:
- Só me deito com a luz da manhã, sinto-me menos só...

Sabia que era verdade e tinha pena. Um sentimento de culpa invadira-a desde a primeira hora da visita.

Lá longe, podia ignorar, fingir que não sabia, esquecer a solidão dela. Mas, ao vê-la, a realidade magoava, era demasiado brutal. Tão abandonada, ela, a menina mimada pelos pais, a mulher adorada pelo marido, a mãe que soubera dar-lhes uma infância feliz.

- Venha comigo, mamã! , repetiu.

- Vai andando, minha filha, eu já vou...


Desta vez olhou para ela.
- É bonita a tua camisa..., disse outra vez.
- Oh! Mamã...

A vida afastara-as, e o pudor de ambas, uma certa forma de secura, não lhes permitira nunca manifestações de ternura. Mas, nesse momento, levantou-se para abraçar a mãe como nunca costumava fazer, e ela encostou-se-lhe como se já não tivesse forças para se negar.


- É bonita a tua camisa de dormir, à antiga..., repetiu.

E afastou-a.
- Vai andando. Eu vou mais tarde, tenho que dar um jeito à lareira, deixá-la bem apagada...

Finalmente, viera.
- E agora?, pensava, a vê-la.

Subia as escadas, devagar, parando a cada degrau e encostando a cabeça no braço que apoiava ao corrimão, a suspirar. Como devia fazer nas outras noites em que ninguém a via e estava sozinha, enquanto não chegava a claridade do dia...


Ao cimo das escadas, esperava-a, com os pés descalços, cheia de frio.


- E agora?...

Pensou que se iria embora e a deixava ainda mais só.


Gritou:


- Olhe para mim! Eu estou aqui!...


11 comentários:

  1. Um belo texto, uma bela recordação, deixou uma lagriminha no olho.
    Que bom "conhecer" o seu pai. O dr. da minha rua, eheheheh.
    Para sempre estas belíssimas recordações...
    Um abraço e um beijo!!

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  2. MJ Falcão,
    Mais um belo conto rodeado de imagens muito sugestivas. Mais uma vez o amor, a beleza e a escrita que canta como os pássaros e as janelas abertas para o sol de poente.
    Lindo, lindo. Muito obrigada por esta surpresa!
    Beijinho.

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  3. Comovente esta história.
    Crescer e ficar adulto é difícil.Perde-se tanto...
    E é dolorosa a solidão da velhice.Para quem a vive e para quem a vê nos que ama e não pode fazer nada.
    Viver é muito bom.
    Viver é difícil...

    Muito bonita a sua história.
    Um beijinho
    Isabel

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  4. Essa saudade que não se acaba,
    esse amor que de todo exala ,,, margaridas e flores do campo.

    Sabe, Falcão, muitas pessoas passam pela vida sem se dar conta do que foram e do que são. é uma honra conhecer uma mulher tão forte, capaz de desnudar sua fragilidade e quebrar o inquebrantável que é a solidão.

    um bj, o meu E.
    um bj da rainha,

    até,

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  5. Há uns anos uma amiga em Telavive disse-me: "tu dás-te aos outros como se não tivesses medo de ser magoada..."
    Ela era uma holandesinha que tomava conta do nosso cão quando íamos viajar. Nunca me esqueci disso.
    Desnudar a fragilidade, sem medo de sofrer ...será força? Sei que é isso que eu tentei fazer na minha relação com as pessoas, porque acho que nos devemos "dar", sem medo de sofrer: sofre-se? "Tant pis!" os outros precisam de nós... e nós gostamos deles, ou não...
    Um beijo grande!

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  6. A senhora da foto és tu ou a tua mãe?(Na outra és tu e o teu pai,suponho).
    Escrevi-te uma carta. Beijinhos.

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  7. Conheci os seus pais a a casa da serra de que fala. As portas sempre abertas, a música, as estantes cheias de livros. Tive saudades.

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  8. Isabel I, obrigada por se lembrar deles. Não sei se a conheço, somos conterrâneas, conheceu os meus pais...
    Bjs

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  9. Não nos conhecemos pessoalmente. Fomos amigos dos seus pais com quem convivemos e que visitámos algumas vezes na casa da serra, quando os nossos filhos eram pequenos e todas as utopias pareciam possiveis. O apelido Bucho diz-lhe alguma coisa?

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  10. Isabel, lembro-me bem do Dr. Bucho que foi radiologista em Portalegre. Será essa a ligação? Gostava de saber. Calcule que até fui, miúda, ao casamento dele -com uma amiga nossa...
    Bom fim de semana, gostei que viesse até aqui!

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