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Foi o meu primeiro contacto com a dor física, e o choque continua presente, e volta à primeira nova dor.
A sensação de amargura que hoje posso ter ao pensar “por quê eu?”, tive-a muito forte durante esses momentos, que coincidiram com a minha primeira viagem a Lisboa...
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Desde muito pequenina, sofri de anginas frequentes. Tinha febre muito alta e não conseguia brincar, a cabeça pesava.
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Zinaida Serebriakova
A maior parte das vezes, ao fim do dia vinha e passava a noite em nossa casa. Dormia num divã ao lado da minha cama.
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Ilka Gede
Dentro de casa as vozes tornavam-se confusas, irreconhecíveis, entre o meu cair num sono pesado, em que os pesadelos eram cheios de imagens de cores suaves, e o acordar, transpirada e vermelha, cheia de sede, a chamar pela minha mãe.
Fomos até Lisboa com certeza no táxi do Senhor Bretanha que era quem fazia todos os serviços de táxi para o meu pai.
Não me lembro da viagem, nem da chegada a Lisboa.
É tudo uma estranha nebulosa.
Resta fixa na memória bem viva ainda hoje a imagem do consultório. Ficava numa rua moderma de que não gostei.
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Recordo o dia da operação, como se fosse ontem.
Vejo-me embrulhada num enorme lençol branco que me cobria até aos pés, sentada ao colo da enfermeira, uma mulher alta e forte que me segurava a cabeça com as duas mãos, para não a mexer.
A lembrança da dor ainda hoje a sinto. O choque foi enorme.
Não havia anestesia naqueles tempos, e senti os puxões com que o médico me arrancou as amígdalas e, logo a seguir, os adenóides que eu nem sabia que existiam!
Mais do que dor, havia espanto dentro de mim, depois de tudo ter passado. Mágoa e espanto.
Por quê uma dor tão grande? Como era possível que me fizessem “aquilo”? Por quê a mim? Por que é que os meus pais não tinham vindo salvar-me daquele sofrimento?
Eles ficaram lá fora, na sala de espera. Não sabiam o que me estavam a fazer? Como o tinham permitido?
Vejo o lençol cheio de pingos de sangue, oiço o ruído dos instrumentos a bater na taça de metal onde o médico os ia pousando, quando tudo terminou.
Não chorei. Não gritei. Não fiz birra. Calei-me.
Uma sombra caiu sobre os momentos que seguiram. Como um bloqueio, uma noite não vivida, mas contínua de dor e pasmo, que só termina quando lembro o hotel, já na manhã seguinte.
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Era o velho Hotel Americano, na Rua 1º de Dezembro, naquele tempo um hotel moderno, hoje um hotel de dormidas, com mau aspecto.
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O quarto ficava num andar alto, e pelas amplas janelas entravam o sol e os barulhos da rua. O céu azul tinha uma cor diferente e por vezes parecia-me "adivinhar" um cheiro a maresia e imaginava os barcos no rio, se bem que não soubesse muito bem se era o rio ou se era o mar. Imaginava-o da cor do céu, com ondas e os tais barquinhos vogando em cima delas.
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Chegara a Primavera. Lá fora tudo era ruidoso, sentia-se a agitação, o bulício de uma grande cidade, sensação desconhecida para mim, habituada ao sossego da minha terra de província.
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Estranhas vozes de mulher que gritam alto, numa voz cantada, apregoando o que trazem para vender.
Vendiam flores? Verduras? Limões?
Traziam à cabeça as canastas das sardinhas - de que fala Cesário Verde?
Era uma melodia desconhecida que me trazia de volta à vida normal e me entretinha enquanto esperava que o tempo passasse e as dores se atenuassem.
Deitada na cama, ficava a ouvir.
Ofendida, magoada, recusava-me a falar fosse com quem fosse. Culpava tudo e todos daquela ofensa.
A minha mãe estaria, com certeza, ao pé de mim, mas não me lembro.
O meu pai voltara para Portalegre.
Vejo-me ali sozinha.
Lá fora havia pessoas felizes, pensava.Tinha um monte de livros em cima da cama. Não os lia, não me apetecia. Olhava para fora. Ouvia as vozes.
Calava-me. Podia falar mas não falava, porque não queria.
A única consolação era poder comer os gelados que quisesse. Magra consolação. Eu que adorava os gelados de tostão que se vendiam na minha rua, tinha perdido por completo a vontade de comer gelados...
Uma manhã o telefone tocou. Era a minha tia, irmã do meu pai, que telefonava de Portalegre.
Estava sozinha e atendi.
Do lado de lá do fio, uma voz perguntava como estava. Tive vergonha de não responder. Falei.
Não reconhecia a minha voz que sentia presa, nasalada, diferente.
Duas ou três frases, e pousei o auscultador. Deitei a cabeça nas almofadas.
Quando a minha mãe chegou, falei-lhe, contei do telefonema, com um ar natural.
Aceitei, contente, o gelado que me trazia da rua.
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Algumas das pinturas que usei são da pintora Ilka Gedo. Encontrei-as in blog Art Inconnu (Ilka Gedo (1921 - 1985).
A menina com as bonecas é da pintora russa Zinaida Serebriakova - que me deslumbrou há uns anos em Moscovo, na galeria Tretiakova.
http://falcaodejade.blogspot.com/2009/07/uma-vista-de-olhos-pela-pintura-russa.html
Já agora: as fotografias de Lisboa e do Hotel Americano foram tiradas durante a visita das minhas amigas da Cozinha dos Vurdóns, quando nos encontrámos no Café Nicola... A Rua 1º de Dezembro era ali mesmo. Fomos juntas dar um passeio... Lembro-as com saudade.
MJ
ResponderEliminarObrigada por esta partilha, e tão bem escrita!
Também na minha infância fui operada às amígadalas, mas, no meu tempo, felizmente, já havia anestesia :)
Uma recordação sua em particular fez-me sorrir: também eu adorava comer gelados e agora que podia comer os que quisesse, não tinha vontade...
beijinho
Maria João.
ResponderEliminarAs suas crónicas fazem-me também recordar... tantas coisas...
Bem conheci a casa de gelados na Rua dos Canastreiros.
Bem conheci o Sr. Bretanha (sabe, o filho costuma também ir aos almoços anuais dos antigos alunos do Liceu).
Também conheci a D. Eduarda...
A minha operação aos adenóides foi em Estremoz, no consultório de um médico amigo da minha família (imagine-se que, em Portalegre, não havia quem fizesse essa operação - e ainda há hoje quem critique o Serviço Nacional de Saúde que temos!).
Até do Hotel Americano me recordo, de uma das primeiras vezes que vim a Lisboa.
No fundo, as vivências de uma geração têm muito de comum...
MJ,
ResponderEliminarEstava a escrever um comentário no post de Régio que apreciei muito, quando a trovoada desabou e fiquei sem net.
Venho aqui encontrar a mesma sensibilidade narrativa. Sim, tudo o que escreve é belo, sentido e consegue fazê-lo com uma simplicidade cristalina.
Obrigada por esta partilha. Nunca fui operada às amígdalas mas gostava de comer os gelados.:))
Beijinho.
Querida Jana, doeu-me só de ouvir-te, que carniceiro!!
ResponderEliminarComo não há inconvenientes sem vantagens, pensa que nunca mais tiveste problemas com as amígdalas,e nessa Lisboa com sabor a mar que descobriste.
Os quadros são muito bonitos, há tanta boa pintura pouco conhecida!
Mando-te um grande beijo, para que chegue a ti apesar da distância. ( Esta noite sonhei contigo, foi muito giro. Deve ter sido porque me fui a dormir compungida com a tua triste história...)
Surpreendida por encontrar tanta solidariedade!
ResponderEliminarMaria, já passou! Obrigada, no entanto, pelas tuas doces palavras!!!
De facto, é bom descobrir que pode haver semelhanças no que se sente.
E ainda mais quando se é da mesma terra e se viveu nos mesmos tempos, amigo conterrâneo.
UM grande abraço aos amigos!
e afinal tudo se resolveu, apesar do sofrimento fisico e da revolta sentida, não foi??
ResponderEliminarPassou...como tudo há-de passar.
Um grande beijo
Olá Falcão!
ResponderEliminarA dor é uma coisa que fica impregnada na memória...
Vir aqui é sempre um desfrutar à sensibilidade e à contemplação. As fotos, as lembranças e emoções compartilhadas em sintonia com as pinturas conduziram-nos com maestria até a leiteria de Lisboa!
Encantei-me com a introspecção de Ilka Gedo e as cores fascinantes da “ A menina com as bonecas” de Zinaida Serebriakova, não conhecia.
Grande abraço!
Pareceu-me que a acompanhava na visita e sentia o mesmo (apesar de felizmente não ter ficado sem as amígdalas, muito dos meus colegas na escola partilharam as suas experiências, mas com anestesia, mantendo-se os gelados...mesmo assim, preferia ficar sem os gelados)
ResponderEliminarum beijinho
Gábi