sábado, 28 de maio de 2011

A minha primeira viagem a Lisboa

Devia ter onze anos quando fui a Lisboa, pela primeira vez.



Vejo-me numa fotografia com essa idade mais ou menos, a sorrir, um pouco atrevida, desafiando a minha mãe que me olhava pela lente...


Ia ser operada às amígdalas.

Foi o meu primeiro contacto com a dor física, e o choque continua presente, e volta à primeira nova dor.

A sensação de amargura que hoje posso ter ao pensar “por quê eu?”, tive-a muito forte durante esses momentos, que coincidiram com a minha primeira viagem a Lisboa...
Com certeza terei ido lá mais do que uma vez, para as consultas. Tenho uma ideia muito vaga de ver ruas enormes, árvores, casas velhas, andares altos.

Mas é essa ida ao médico que recordo: não me esqueci do quanto foi dolorosa a experiência.

Desde muito pequenina, sofri de anginas frequentes. Tinha febre muito alta e não conseguia brincar, a cabeça pesava.



Lá vinha a D. Eduarda - a enfermeira e parteira que nos pôs no mundo - dar-me injecções de penicilina, de três em três horas.


Zinaida Serebriakova


A maior parte das vezes, ao fim do dia vinha e passava a noite em nossa casa. Dormia num divã ao lado da minha cama.


Recordo a modorra dos dias, a meia sonolência em que ouvia, febril, os ruídos da rua de forma abafada.


Os miúdos que passavam a brincar com os seus aros de ferro, gritando uns para os outros, ou os carros que buzinavam para assustar os raros peões que se lhes aventuravam na frente.


Ou, pior ainda, se calhava ser domingo, eram os relatos de futebol que o vizinho ouvia na rádio e me davam uma sensação de angústia e solidão tremendas.



Ilka Gede


Dentro de casa as vozes tornavam-se confusas, irreconhecíveis, entre o meu cair num sono pesado, em que os pesadelos eram cheios de imagens de cores suaves, e o acordar, transpirada e vermelha, cheia de sede, a chamar pela minha mãe.


Fomos até Lisboa com certeza no táxi do Senhor Bretanha que era quem fazia todos os serviços de táxi para o meu pai.

Não me lembro da viagem, nem da chegada a Lisboa.
É tudo uma estranha nebulosa.

Resta fixa na memória bem viva ainda hoje a imagem do consultório. Ficava numa rua moderma de que não gostei.

E, também, a do hotel onde ficámos, por ser a minha primeira estadia num hotel...

Recordo o dia da operação, como se fosse ontem.

Vejo-me embrulhada num enorme lençol branco que me cobria até aos pés, sentada ao colo da enfermeira, uma mulher alta e forte que me segurava a cabeça com as duas mãos, para não a mexer.


A lembrança da dor ainda hoje a sinto. O choque foi enorme.

Não havia anestesia naqueles tempos, e senti os puxões com que o médico me arrancou as amígdalas e, logo a seguir, os adenóides que eu nem sabia que existiam!

Mais do que dor, havia espanto dentro de mim, depois de tudo ter passado. Mágoa e espanto.

Por quê uma dor tão grande? Como era possível que me fizessem “aquilo”? Por quê a mim? Por que é que os meus pais não tinham vindo salvar-me daquele sofrimento?

Eles ficaram lá fora, na sala de espera. Não sabiam o que me estavam a fazer? Como o tinham permitido?

Vejo o lençol cheio de pingos de sangue, oiço o ruído dos instrumentos a bater na taça de metal onde o médico os ia pousando, quando tudo terminou.

Não chorei. Não gritei. Não fiz birra. Calei-me.

Uma sombra caiu sobre os momentos que seguiram. Como um bloqueio, uma noite não vivida, mas contínua de dor e pasmo, que só termina quando lembro o hotel, já na manhã seguinte.

Era o velho Hotel Americano, na Rua 1º de Dezembro, naquele tempo um hotel moderno, hoje um hotel de dormidas, com mau aspecto.


O quarto ficava num andar alto, e pelas amplas janelas entravam o sol e os barulhos da rua. O céu azul tinha uma cor diferente e por vezes parecia-me "adivinhar" um cheiro a maresia e imaginava os barcos no rio, se bem que não soubesse muito bem se era o rio ou se era o mar. Imaginava-o da cor do céu, com ondas e os tais barquinhos vogando em cima delas.

Ilke Gede

Chegara a Primavera. Lá fora tudo era ruidoso, sentia-se a agitação, o bulício de uma grande cidade, sensação desconhecida para mim, habituada ao sossego da minha terra de província.

A primeira recordação são os pregões...

Estranhas vozes de mulher que gritam alto, numa voz cantada, apregoando o que trazem para vender.

Vendiam flores? Verduras? Limões?

Traziam à cabeça as canastas das sardinhas - de que fala Cesário Verde?

Era uma melodia desconhecida que me trazia de volta à vida normal e me entretinha enquanto esperava que o tempo passasse e as dores se atenuassem.

Deitada na cama, ficava a ouvir.

Ofendida, magoada, recusava-me a falar fosse com quem fosse. Culpava tudo e todos daquela ofensa.

A minha mãe estaria, com certeza, ao pé de mim, mas não me lembro.

O meu pai voltara para Portalegre.

Vejo-me ali sozinha.
Lá fora havia pessoas felizes, pensava.
Tinha um monte de livros em cima da cama. Não os lia, não me apetecia. Olhava para fora. Ouvia as vozes.

Calava-me. Podia falar mas não falava, porque não queria.

A única consolação era poder comer os gelados que quisesse. Magra consolação. Eu que adorava os gelados de tostão que se vendiam na minha rua, tinha perdido por completo a vontade de comer gelados...

Uma manhã o telefone tocou. Era a minha tia, irmã do meu pai, que telefonava de Portalegre.

Estava sozinha e atendi.

Do lado de lá do fio, uma voz perguntava como estava. Tive vergonha de não responder. Falei.

Não reconhecia a minha voz que sentia presa, nasalada, diferente.

Duas ou três frases, e pousei o auscultador. Deitei a cabeça nas almofadas.

Quando a minha mãe chegou, falei-lhe, contei do telefonema, com um ar natural.

Aceitei, contente, o gelado que me trazia da rua.

leitaria de Lisboa



Algumas das pinturas que usei são da pintora Ilka Gedo. Encontrei-as in blog Art Inconnu (Ilka Gedo (1921 - 1985).


A menina com as bonecas é da pintora russa Zinaida Serebriakova - que me deslumbrou há uns anos em Moscovo, na galeria Tretiakova.


http://falcaodejade.blogspot.com/2009/07/uma-vista-de-olhos-pela-pintura-russa.html


Já agora: as fotografias de Lisboa e do Hotel Americano foram tiradas durante a visita das minhas amigas da Cozinha dos Vurdóns, quando nos encontrámos no Café Nicola... A Rua 1º de Dezembro era ali mesmo. Fomos juntas dar um passeio... Lembro-as com saudade.



Sobre os pregões de Lisboa encontrei:




8 comentários:

  1. MJ
    Obrigada por esta partilha, e tão bem escrita!
    Também na minha infância fui operada às amígadalas, mas, no meu tempo, felizmente, já havia anestesia :)

    Uma recordação sua em particular fez-me sorrir: também eu adorava comer gelados e agora que podia comer os que quisesse, não tinha vontade...

    beijinho

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  2. Maria João.
    As suas crónicas fazem-me também recordar... tantas coisas...
    Bem conheci a casa de gelados na Rua dos Canastreiros.
    Bem conheci o Sr. Bretanha (sabe, o filho costuma também ir aos almoços anuais dos antigos alunos do Liceu).
    Também conheci a D. Eduarda...
    A minha operação aos adenóides foi em Estremoz, no consultório de um médico amigo da minha família (imagine-se que, em Portalegre, não havia quem fizesse essa operação - e ainda há hoje quem critique o Serviço Nacional de Saúde que temos!).
    Até do Hotel Americano me recordo, de uma das primeiras vezes que vim a Lisboa.
    No fundo, as vivências de uma geração têm muito de comum...

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  3. MJ,
    Estava a escrever um comentário no post de Régio que apreciei muito, quando a trovoada desabou e fiquei sem net.
    Venho aqui encontrar a mesma sensibilidade narrativa. Sim, tudo o que escreve é belo, sentido e consegue fazê-lo com uma simplicidade cristalina.
    Obrigada por esta partilha. Nunca fui operada às amígdalas mas gostava de comer os gelados.:))
    Beijinho.

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  4. Querida Jana, doeu-me só de ouvir-te, que carniceiro!!
    Como não há inconvenientes sem vantagens, pensa que nunca mais tiveste problemas com as amígdalas,e nessa Lisboa com sabor a mar que descobriste.
    Os quadros são muito bonitos, há tanta boa pintura pouco conhecida!
    Mando-te um grande beijo, para que chegue a ti apesar da distância. ( Esta noite sonhei contigo, foi muito giro. Deve ter sido porque me fui a dormir compungida com a tua triste história...)

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  5. Surpreendida por encontrar tanta solidariedade!
    Maria, já passou! Obrigada, no entanto, pelas tuas doces palavras!!!
    De facto, é bom descobrir que pode haver semelhanças no que se sente.
    E ainda mais quando se é da mesma terra e se viveu nos mesmos tempos, amigo conterrâneo.
    UM grande abraço aos amigos!

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  6. e afinal tudo se resolveu, apesar do sofrimento fisico e da revolta sentida, não foi??
    Passou...como tudo há-de passar.
    Um grande beijo

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  7. Olá Falcão!

    A dor é uma coisa que fica impregnada na memória...

    Vir aqui é sempre um desfrutar à sensibilidade e à contemplação. As fotos, as lembranças e emoções compartilhadas em sintonia com as pinturas conduziram-nos com maestria até a leiteria de Lisboa!

    Encantei-me com a introspecção de Ilka Gedo e as cores fascinantes da “ A menina com as bonecas” de Zinaida Serebriakova, não conhecia.

    Grande abraço!

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  8. Pareceu-me que a acompanhava na visita e sentia o mesmo (apesar de felizmente não ter ficado sem as amígdalas, muito dos meus colegas na escola partilharam as suas experiências, mas com anestesia, mantendo-se os gelados...mesmo assim, preferia ficar sem os gelados)
    um beijinho
    Gábi

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