sábado, 15 de junho de 2013

Trieste e os seus escritores, e um poema de Saba: "Caffè Tergeste"





“Caffè Tergeste”

de Umberto Saba


Caffè Tergeste, ai tuoi tavoli bianchi
ripete l’ubbriaco il suo delirio;
ed io ci scrivo i miei piu allegri canti.
Caffè di ladri, di baldracche covo,
io soffersi ai tuoi tavoli il martirio,
lo soffersi a formarmi un cuore nuovo.
Pensavo: Quando bene avrò goduto
la morte, il nulla che in lei mi predico,
che mi ripagherà d’esser vissuto?
Di vantarmi magnanimo non oso;
ma, se il nascere è un fallo, io al mio nemico
sarei, per maggior colpa, più pietoso.
Caffè di plebe, dove un dì celavo
la mia faccia, con gioia oggi ti guardo.
E tu concili l’ítalo e lo slavo,
A tarda notte, lungo il tuo bigliardo.

"La serena disperazione" (1913-15)


(Hoje, na "Antologia del Canzionere", Torino, Einaudi, 1987, pg. 61)



O Caffè Tommaseo



"Caffè Tergeste
Nas tuas mesinhas brancas
repete o ébrio o seu delírio;
ali escrevo os meus cânticos mais alegres.
Café de ladrões, covo de mulheres da vida,
Sofri nas tuas mesas o martírio
Sofri-o ao criar um coração novo.
Pensava: quando tiver vivido a minha morte,
e o nada que nela adivinho,
Quem me pagará o ter vivido?
Elogiar-me magnânimo não ouso;
mas, se o nascer é uma culpa, 
eu, para o meu inimigo,
serei, por maior culpa, mais suave.
Café da plebe, onde um dia escondia
a minha face, hoje com alegria te olho.
E tu concilias o ítalo e o eslavo,
Pela noite dentro, ao longo do bilhar."


"O Sereno Desespero" (1913-15)


Trieste é uma cidade maravilhosa de cultura, diversidade e humanidade que adorei conhecer. Cidade de cafés "vividos", onde a literatura, a poesia e a cultura hebraica e a mittle-europeia da cidade se cruzavam com a vida dos meros cidadãos - onde a convivência e a inspiração eram fecundas. 



Por lá passaram nomes como Carlo Slataper ou Gianni Stuparich autores que me impressionaram.





Ou o grande romancista Italo Svevo -que escreveu obras-primas como "Senilità" e "Consciência de Zeno".




Ou James Joyce que lá viveu uns bons anos, a dar lições de inglês e a sobreviver. Ou o poeta Umberto Saba,cujo poema vos deixei acima. 
E a escritora Elody Obrath. Ou a personalidade humaníssima de Giorgio Voghera - autor de "Os Anos da Psicanálise" e "Nossa Senhora Morte".



Giorgio Voghera, um homem bom - que tive a enorme sorte de ter conhecido! Era um homem fantástico, um homem de cultura e de enorme simplicidade. Que muito nos contou sobre Trieste e os seus escritores, os seus cafés. Encontavamo-nos geralmente no Caffè San Marco. 
O Café San Marco, em Trieste


"O San Marco, como escreve Magris, é um verdadeiro Café, periferia da história ligada à fidelidade conservadora e ao pluralismo liberal dos seus frequentadores(..)No 'San Marco' triunfa, vital e sanguínea, a variedade.”



Recordo a sala linda, as poltronas confortáveis e as mesinhas de mármore. E outra coisa: a variedade de jornais que se iam buscar para ler, com uma ripa de madeira lateral que facilitava imenso a leitura dos jornais italianos de grande formato, como La Stampa, ou o Corriere della Sera ou La Repubblica. Para não falar do jornal de Trieste: Il Piccolo!




Voghera, página direita, em cima, de óculos e sem barba...



Giorgio Voghera, nos anos 80 (MJF)



Trieste pertencente ao antigo Império austro-húngaro, situada a meio caminho da Itália e da antiga Jugoslávia, entre Italianos, Eslavos e Judeus, era - e é ainda-  um ponto de confluência de vários mundos, culturas e modos de vida.



A Livraria 'Umberto Saba'

o interior da Livraria de Saba

O "Café Tergeste", café da plebe, em oposição ao "literário" Caffè Garibaldi, café dos intelectuais onde Saba também ia, desapareceu há muito, mas ficaram outros maravilhosos cafés cheios de vida e de literatura.

Assim, o Caffè San Marco, o  Caffè Tommaseo, o Caffè Degli Specchi, na Piazza dell' Unità, a praça que lembra a nossa Praça do Comércio, aberta sobre o mar, e nela foi inspirada) o Caffè Stella Polare, onde é hábito ir de Inverno, ou o Caffè San Francisco. E tantos outros!
Caffè San Francisco

Os cafés de Trieste não têm fim! 
Com as naturais diferenças, talvez nenhum fosse igual ao Tergeste, na sua mistura "promíscua", que o poema de Saba sugere. 

"O Café Tergeste, um café onde o homem Umberto não deveria ir, mas onde o poeta Saba se sentia bem", escreveu alguém (Rivista Trieste).


Sobre os cafés de Trieste, escreveu Claudio Magris (in 'I luoghi del disincanto', Trieste 1987):
"Il caffè è l'unico luogo in cui si può veramente scrivere: si è soli, con carta e penna e tutt'al più i due o tre libri di cui si ha bisogno in quel momento abbandonati a se stessi e costretti a far contosoltanto su se stessi, a raccogliere le proprie energie e dosarle con misura; il tavolino su cui si poggia il foglio diviene la tavoladi un naufrago, cui ci si aggrappa, mentre la familiare armonia che ci circonda si svuota, diviene l'incerta cavità del mondo, nel quale la scrittura si addentra, perplessa e ostinata." 

Sobre o Caffè Tergeste, leio ainda no blog "amicidelcaffe":

"O Caffè Tergeste é um lugar que já não existe. Resta-nos o poema de Saba em "La serena disperazione" (1913-15). 

Não era o Caffè Garibaldi, nessa altura situado debaixo do Município e ponto de encontro de intelectuais. No Caffè Tergeste encontrava-se um pouco de tudo. Uma humanidade em luta com a dificuldade, mas verdadeira. O poeta conta-nos dessa sensação de “completezza” (impossível de traduzir, acho, talvez "inteireza"?), no encontro de um quotidiano promíscuo, com a inocência da autenticidade e a conciliação na diversidade."

6 comentários:

  1. Ambientes tão bonitos e interessantes.
    Deviam ser encontros fantásticos com pessoas tão diversas. Uma grande riqueza cultural.

    A Maria João viveu em ambientes tão interessantes!
    Gosto da poesia do Umberto Saba que descobri com o Manuel no Sobre o Risco.

    Adorei o seu posto e gostei muito deste vislumbre do Ratinho Poeta, que anda tão ausente!
    Um beijinho grande
    (Mandei-lhe um mail)

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    1. Trieste é fora de tudo... Sei bem que gostas do Saba! beijinhos.

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  2. Tão bela esta postagem sobre cafés de Trieste.
    Em Coimbra, os cafés são muito importantes quer para a tertúlia, quer para estudar. são espaços que se tornam a nossa sala.
    Tive pena de não partilhar esta sensação mas o tempo não dá para tudo.
    Beijinhos. :))

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  3. Trieste é uma cidade emblemática, cheia de história literária. Aí foi a parar Joyce, professor na Universidade uns anos, e mestre de todos aqueles grandes escritores que lá estavam, claro. Conheço alguns poemas de Sábato ( traduzido perde todo...). De Italo Svevo li A Consciência de Zeno em espanhol. Só recordo de que gostei muito. A memória vai-se-me apagando, mas estou resignada, é o mais sensato. Tudo se perde na bruma do tempo, conformo-me com viver sem sofrimento.
    Conheceste lugares e pessoas bem interessantes, eu não tive essa sorte, mas também já não importa, já não importa quase nada, é a única coisa boa de fazer anos, mas as duas ou tres coisas que continuam a importar, são realmente importantes, porque de certa forma já são Tudo.
    Feliz domingo, levantei-me às 7 da manhã, imagina lá. Tenho tempo para um monte de coisas!!!

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    1. María! Importa é tudo!
      A memória que se quer escapar, deixemo-la ir: eu cá volto a ler tudo outra vez!E a memória é que fica irritada, não eu!
      Nada de resignações, não quero nem gosto! Volta a ler o Svevo que é maravilhoso! O Joyce que foi prof de inglês tantos anos (estou sempre a reler Gentes de Dublin...)ficou marcado pela cidade, e o Saba (que o Sábado ou Sabato é o outro) tem poesias do quotidiano e do amor e de tudo, de uma simplicidade comovente.
      Um beijinho

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