Conheci
Maria Barroso há muitos anos, era eu uma adolescente quando ela veio ao Teatro Crisfal de
Portalegre participar numa sessão de apoio a Humberto Delgado (1).
Eu tinha vindo de Castelo Branco, onde estudava, com a minha irmã e uma prima, expressamente para a "festa revolucionária".
Dias antes, em Castelo Branco, o grupo tínha sido censurado, pelo "pessoal docente" a alto nível, por estar a assistir à passagem do General, e a aplaudir - vestidas ("identificadas"!) com as nossas batas do Liceu. Estava connosco outra amiga, a Lívia, inseparável e inesquecível amiga!
Eram tempos estranhos! Só quem viveu, com consciência, esse pré-25 de Abril pode saber como eram estranhos, na sua falsa "brandura".
Eu tinha vindo de Castelo Branco, onde estudava, com a minha irmã e uma prima, expressamente para a "festa revolucionária".
Dias antes, em Castelo Branco, o grupo tínha sido censurado, pelo "pessoal docente" a alto nível, por estar a assistir à passagem do General, e a aplaudir - vestidas ("identificadas"!) com as nossas batas do Liceu. Estava connosco outra amiga, a Lívia, inseparável e inesquecível amiga!
eu e a lívia, "alguns" anos mais tarde, num casamento...
Lembro-me que o Teatro estava cheio de gente. Sei que José Régio lá estava. O meu pai também. E outros amigos como a Luisinha e o Carlos Alberto Saraiva, o engenheiro Ventura Reis, que pertenciam ao grupo do Café Central e, mais tarde, do Café Facha.
Para mim era uma noite fora do vulgar, sentia-me a fazer parte dos que queriam romper a barreira que nos impedia de ser livres.
Largo dos Correios ondeficava o Café Central
vista sobre Portalegre com a Sé (MJF)
Para mim era uma noite fora do vulgar, sentia-me a fazer parte dos que queriam romper a barreira que nos impedia de ser livres.
Casa-Museu de José Régio (MJFalcão)
Maria Barroso leu
poemas de Régio e de outros. Inteligente, sensível, lia na sua voz bem modulada e
agradável.
O nosso entusiasmo de adolescentes era enorme! Sei que uma das minhas amigas bateu tantas palmas que partiu o anel de oiro...
O nosso entusiasmo de adolescentes era enorme! Sei que uma das minhas amigas bateu tantas palmas que partiu o anel de oiro...
Mais
tarde, via-a na peça filmada de Manoel De Oliveira, “Benilde ou a Virgem-Mãe”, de josé Régio (1947).
Muito tempo passou sobre tudo isto. Vivi fora muitos anos e, quando voltava ao país, ia, às vezes, visitá-la, na casa da Rua Dr. João Soares.
E como penso que homenagear quem admiramos é um nosso dever, quis vir escrever umas palavras sobre essa grande Mulher
capa da 1ª edição
"Benilde" tal como Régio a "viu" e desenhou, em 1953, e ofereceu ao meu pai.
Muito tempo passou sobre tudo isto. Vivi fora muitos anos e, quando voltava ao país, ia, às vezes, visitá-la, na casa da Rua Dr. João Soares.
E como penso que homenagear quem admiramos é um nosso dever, quis vir escrever umas palavras sobre essa grande Mulher
Há pouco mais de um mês, no dia 2 de Maio, Maria Barroso fez 87 anos. E como penso que homenagear quem admiramos é um nosso dever, quis vir escrever umas palavras sobre essa grande Mulher, frágil de aspecto, mas corajosa e forte, moralmente,
como poucos homens que se dizem fortes. Mulher, que foi actriz, professora, política, activista no campo da Paz, defensora dos Direitos Humanos, e "first lady" tudo com a mesma simplicidade e classe.
Segundo
ela própria confessou (in "Expresso", de 30 de Dezembro de 2009),a Ditadura
confiscou-lhe o sonho de ser actriz, impediu-a de leccionar e roubou-lhe a fe (que
muito mais tarde recuperará. A Democracia nomeou-a primeira dama mas remeteu-a
para segundo plano.
Seja como for, em tudo o que fez e em todas as coisas a que se dedicou foi uma MUlher que esteve à altura de tudo! Com a dignidade, a simpatia e a simplicidade de quem não tinha que "mostrar" nada, bastava-lhe ser "ela" : dentro dela estava tudo!
Encontrei
uma entrevista dela, ainda mais antiga, ao Público (2006), no dia do seus 80 anos (Maria Jorge da Costa
entrevistou-a).
Seja como for, em tudo o que fez e em todas as coisas a que se dedicou foi uma MUlher que esteve à altura de tudo! Com a dignidade, a simpatia e a simplicidade de quem não tinha que "mostrar" nada, bastava-lhe ser "ela" : dentro dela estava tudo!
A lucidez de sempre, a calma, a segurança de quem sempre viveu na insegurança desde muito nova, com um pai republicano em tempos difíceis, com um marido socialista que de tempos a tempos estava nas prisões de Salazar e, mais tarde, no “desterro” em São Tomé.
Quando por lá passei cinco anos, lembro-me de nos mostrarem por onde andava, com o pode sempre atrás, numa ilha sem saída...
Fala
da esperança do final da Grande Guerra: “foi um vento de esperana que varreu o
país, um estímulo à nossa esperança num regime melhor para a nossa terra, uma
vez que os países aliados tinham conseguido vencer o nazismo e o fascismo, na
Alemanha e na Itália. O próprio Salazar disse que ia promover eleições livres,
tão livres como na livre Inglaterra.”
Mas os céus continuaram turvos e essas esperanças “desapareceram” quase logo à nascença.
Roosevelt morre, os Americanos e os aliados não vêm até cá, apesar dos “pedidos" assinados pela juventude desses tempos, as célebres "listas" que tantos assinaram.
Conta Maria Barroso, na entrevista:
Roosevelt morre, os Americanos e os aliados não vêm até cá, apesar dos “pedidos" assinados pela juventude desses tempos, as célebres "listas" que tantos assinaram.
Conta Maria Barroso, na entrevista:
foto cortesia do Público fotografada por mim
“No dia 8 de Maio de 1945, saímos da Faculdade com um entusiasmo muito grande (...) e fomos com alunos de outras Faculdades às várias embaixadas dos países aliados cumprimentar os Embaixadores e dizer-lhes da nossa alegria e da nossa esperança. (...)"
Tinha nessa noite a estreia de uma peça, pois já se dedicava ao teatro.
“lembro-me
que ia connosco o Sebastião da Gama, o poeta que também era meu colega e levou
a minha pasta para o Teatro. (...) Nessa noite, no final da estreia da peça
estava uma multidão no Rossio entusiasmada com o fim da Guerra e que dava vivas
à Liberdade e à paz."
Em 1949, casa com Mário Soares, então seu colega de Unoversidade, que nesse momneto estava preso, por motivos polóticos...
Muitos anos teve ainda de esperar para, finalmente, festejar essa Liberdade e paz, no dia 25 de Abril de 1974! Ela e tantos de nós...
Em 1949, casa com Mário Soares, então seu colega de Unoversidade, que nesse momneto estava preso, por motivos polóticos...
Muitos anos teve ainda de esperar para, finalmente, festejar essa Liberdade e paz, no dia 25 de Abril de 1974! Ela e tantos de nós...
Festejando o 25 de Abril 1974, com Palma Inácio e Tito de Morais
Sobre
a sua idade, quando a entrevistadora: “oitenta anos de vida e muita vida”,
responde com simplicidade:
“É
uma grande carga. Apetece-me dizer (...) a mesma coisa que o grande poeta
português Fernando Pessoa, nas suas vestes de Álvaro de Campos, disse num poema
admirável.
O poema chama-se aniversário e é muito bonito. Quase no final diz assim: “Pára meu coração, não penses./ Deixa o pensar na cabeça./ Hoje já não faço ano/Duro/ Somam-se-me dias/ Serei velho quando for, mais nada. Raiva de ter trazido o passado roubado na algibeira".
O poema chama-se aniversário e é muito bonito. Quase no final diz assim: “Pára meu coração, não penses./ Deixa o pensar na cabeça./ Hoje já não faço ano/Duro/ Somam-se-me dias/ Serei velho quando for, mais nada. Raiva de ter trazido o passado roubado na algibeira".
“É
isso”, continua ela, “não direi raiva, digo pena. Passa o tempo e a sensação é
que passou muito rapidamente. Mas não tenho complexos em relação à idade.
Assumo a idade que tenho: vivi muito, tive muitas experiências. Foi uma vida
cheia”.
CURTA
NOTA BIOGRÁFICA:
Maria
de Jesus Barroso nasceu em Olhão em 2 de Maio de 1925. Diplomou-se em Arte
Dramática, em 1943, na Escola de Teatro do Conservatório Nacional e, em 1951, licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas.
Casou
com Mário Soares (seu colega de estudos, na Universidade), no ano de 1949 - estava ele preso, por motivos políticos.
Foi
actriz do "Teatro Nacional de D. Maria".
Distingo a peça “Benilde ou a Virgem-mãe”, peça de José Régio, que foi levada à cena em 1947, no Teatro de D. Maria
II, com Maria Barroso no papel principal.
Participou
em filmes de realizadores portugueses como Manoel de Oliveira. De facto, . Em 1974,
Manoel de Oliveira inicia a realização de
uma longa-metragem sobre a peça.
Em 1975 , “Benilde ou a Virgem-mãe” estreia no Cinema Apolo 70, no dia 25 de
Novembro, desta vez Maria Barroso tem o papel de Genoveva a velha criada e Benilde será a jovem Maria Amélia Aranda.
Depois, em 1979, entra no Amor de Perdição e, em 1985, em Le Soulier de Satin, ambos de Manoel de
Oliveira.
Antes,
em 1966, entrara no filme de Paulo Rocha, “Mudar de Vida”.
Sobre a sua biografia mais completa deixo um link da wikipédia. E a entrevista ao Expresso, em 2009.
Sobre a sua biografia mais completa deixo um link da wikipédia. E a entrevista ao Expresso, em 2009.
(1) Para
quem não saiba, deixo uma informação sobre quem foi o General Humberto Delgado...
E também o poema completo de Álvaro de Campos, Aniversário":
Aniversário
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa
A Maria Barroso era uma mulher muito bonita e ainda é. Admiro-lhe a lucidez, pois tem já uma bela idade.
ResponderEliminarGostei muito da fotografia da Maria João. Tão bonita! Como sempre!
Lindo, o poema que escolheu.
Um beijinho grande
Maria Barroso uma senhora feliz
ResponderEliminarque conheci em Aveiro
a dizer poemas
nos tempos da resistência ao fascismo
Era uma linda mulher e teve uma vida muito plena, com as suas coisas boas e más.
ResponderEliminarSuponho que andas muito distraída.
A ver se logo escrevo com calma.
Um beijo enorme