terça-feira, 12 de novembro de 2013

O MEDO E O ÓDIO


óleo de Ceija Stojka, cigana e sobrevivente dos campos


 A xenofobia existe desde os tempos imemoriais! Desde que os primeiros homens encontravam grupos diferentes e lhe arremessavam com as lanças... Sentimento primário, pois,  instintivo, de defesa da comunidade.

Tenderia a extinguir-se, com a civilização, com a sabedoria?, pergunto eu. Mas tal não se verificou. Esse sentimento continua, escondido por outras palavras, mas é sempre a fobia do outro, o medo e o ódio  do que é diferente e é fácil aos manobradores detrás das massas, algumas ignorantes de tudo, multidões cegas em que está alterado o sentido do real.

Vem isto a propósito de um artigo de Jean Daniel, no Nouvel Observateur de 24-30 Outubro, intitulado exactamente O medo e o ódio...

Referia a expulsão de uma família de Roms, em França, família de que fazia parte uma jovem escolarizada, o que causou uma grande agitação. 


É a propósito dos ciganos, que Jean Daniel vai citar um escritor nosso conhecido: Gustave Flaubert.




Flaubert escrevera a Georges Sand, depois  de uma visita  a um acampamento de ciganos, em Rouen, sua terra natal:



É o ódio que se tem ao Beduíno, ao Herético, ao filósofo, ao solitário, ao Poeta. E há medo nesse ódio. A mim, que estou sempre do lado das minorias, exaspera-me. No dia em que deixar de me indignar, caio para o lado, como uma boneca sem apoio.”
Ciganos, foto de Hans Silvester


Por curiosidade fui à procura na Correspondência de Flaubert com George Sand, porque tinha uma vaga ideia do assunto. Felizmente encontrei o que procurava, graças às notas a lápis que ponho no final do livro! É a carta nº 79, escrita em Croisset, no dia 12 de Junho de 1867, numa quarta-feira à tarde.

 Já agora transcrevo o que ele escreveu, no parágrafo anterior, à sua grande amiga, George Sand, a quem chama sempre “mon cher maître”:


“Há oito dias fiquei pasmado diante de um acampamento de ciganos que se instalaram em Rouen (*). É a terceira vez que os encontro. E sempre com renovado prazer. É admirável como eles provocam  o Ódio dos Burgueses, apesar de inofensivos como carneirinhos. Fiquei muito mal visto pela multidão, por lhes ter dado algumas moedas. E ouvi belas palavras cavalheiras (de “jolis mots à la Prud’homme”). Este ódio deve-se a um sentimento muito profundo e complexo. Encontramo-lo em todas as gentes de sociedade.” 
(Correspondance, Flaubert/ George Sand, Flammarion, 1981, Paris, p. 142)


E  passo a Jean Daniel, que continua :


Flaubert tem uma razão esmagadora. O povo sem terra ao qual os músicos tanto devem, este povo ofendido, humilhado e desprezado há séculos merece ser reabilitado, reconhecido e justificado. Claro que nem todos os Roms são músicos. Não basta ser Rom para ser um anjo, nem devemos cair na afirmação oposta que conduz a dizer que “são todos maravilhosos”, afirmação quanto a mim tão perigosa como dizer “todos ladrões.”

Acampamento cercado, Ceija Stojka

Senti-me perfeitamente de acordo com Jean Daniel!

Um pouco de bom senso e compreensão e inteligência das coisas é necessário. Sempre atentos ao que se esconde detrás de certas fórmulas como essa “os ciganos são ladrões”... 

São, ou não são, exactamente como todos os outros povos!


Camille Pissarro e La Cours de la Reine à Rouen, 1890


(*)  A nota 66 da página 142 explica por que razão os ciganos estiveram ali: "Chegados no dia 28 de Maio, quarenta e três indivíduos tipo Zingari, vindos do Indostão, a fugir das "invasões mongois" tinham plantado as tendas no Cours de La Reine, em Rouen

                             Vue de la Cours de La Reine à Rouen, Camille Pissarro, 1888

Saíram no dia 6 de Junho em direcção ao Havre, onde iam embarcar para a América."(in Nouvelliste de Rouen, 30 de Maio e 8 de Junho de 1867).




7 comentários:

  1. "A mim, que estou sempre do lado das minorias, exaspera-me. No dia em que deixar de me indignar, caio para o lado, como uma boneca sem apoio.”

    De fato, ele: Gustave Flaubert não nos conhecia, mas tenho a certeza de que seria amigo de todas nós, de você, de Maria, da Carlota, da Cláudia, da Ana e de tantas outras pessoas que graças a Deus não perderam a capacidade de continuar andando.

    Lindo o poste, roubo algumas coisas com todo o carinho.

    bjs de todas nós.

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    1. Obrigada, queridas amigas, pelas palavras. Sempre do lado das minorias! Indignado-nos sempre com a injustiça!
      um beijo

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  2. Para mim há pessoas honestas e respeitadoras, e que merecem ser respeitadas e as que o não são, independentemente da raça, religião, cor, posição social...

    Gostei muito deste post!
    Um beijinho grande :)

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  3. Subscrevo na íntegra as palavras das nossas amigas!!

    Mais um post de grande nível, com que nos brindou.

    Um beijinho para todas.:))

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  4. Uma realidade monstruosa: o racismo: o ódio ao Outro: ao cigano, ao negro, ao árabe, ao judeu... ao que for diferente e não seguir as regras hiper-burguesas de uma conduta egoística, fechada, estéril -VERGONHOSA.

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  5. Numa sociedade civilizada, todas as pessoas terão direito a exigir justiça e respeito! Para quando, essa premissa tão essencial?! Vai tudo desesperadamente devagar no aspecto dos direitos e obrigações, enquanto noutras coisas estamos a mudar a passos de gigante. Continua a ser a cadeira por aprovar, ontem e hoje.
    Tens toda a razão, é tão absurdo afirmar que todos os ciganos são isto ou aquilo, como seria o contrário, dizer que todos são maravilhosos.
    Eu tenho uma grande admiração e respeito pelas nossas amigas vurdóns, porque são muito lutadoras defendendo a sua raça. Oxalá um dia já não seja preciso, graças a pessoas como elas.
    Beijinho

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