quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O Ratinho e o Ouricinho à espera do azeite...

Parece-me que a cozinha tem certos atractivos especiais. De facto, dou por mim sempre rodeada de alguém, por ali às voltas, conversando ou esperando algum “break” para enganar a fome até ao almoço.


Nessa tarde, estavam encantados a olhar para ao prato com as azeitonas que eu colhera na varanda, de manhãzinha. 


Olhavam, circunspectos como se tivessem sido eles os seus criadores. Dir-se-iam duas galinhas a olhar para os ovos, acabados de pôr...

- Ó Ratinho, viste a cor delas?

Era o Ouricinho de olho bem aberto quando me viu entrar. Lavei-as e pu-las numa tigela com água. O Ouricinho estava  de dedo espetado e perguntou:

 Posso lá meter o dedo?
 Por que diabo queria lá meter o dedo? Não respondi. Ele meteu.
- Tantas cores! Bem, seria melhor dizer matizes, não é?, perguntou o Ratinho, que sabe falar com propriedade, como ele diz.
- Sim, matizes, disse eu.

A Gatinha japonesa que tinha estado a fazer a toilette no meu quarto, participava agora do encontro na cozinha, sempre muito arranjadinha no seu kimono azul e cor de rosa e a malinha na mão. Mostrava o entusiasmo, com muitos gritinhos e exclamações ditas com suavidade.
O Ratinho tinha ido buscar uma colher de pau e mexia umas quinze azeitonas dentro da água.

- É água do Luso, não é?, constatou o Ouricinho, ao ver o garrafão de água ao lado.

Tirara o dedo mas olhava interessadíssimo aquela operação.


- Foi o que disse a D. Fernanda lá no Monte dos Apóstolos. Se não, com a água toda torneira, as azeitonas ficam moles..., insistiu.
- Sim, eu também ouvi, disse o Ratinho com ar convencido. Por isso é que estou a remexê-las devagar.
- Tem que se mudar a água todas as vezes que estiver turva! Não te esqueças...


E o Ouricinho, sentado no saleiro, espreitava por cima do ombro da Gatinha, que se aproximara para ver melhor o que se passava.

- Um trabalhão, não é?, perguntou ela.

O Ratinho respondeu:
- A agricultura dá muito trabalho, exige muitos cuidados! E...

O Ouricinho nem o deixou acabar:

Van Gogh, Olival


- Oh! Sim! Tanta coisa para fazer nos campos! Plantar, sachar, mondar... E depois colher!
Pensou um bocadinho e acrescentou:


- Ouvi dizer que a colheita da azeitona é muito dura! Porque está frio e as mãos gelam aos que as apanham. E a posição da cabeça a olhar para cima é má...

Onde teria ido saber tanta informação?
Olhava em frente, sonhador, encostado à tigela:

- Lembras-te, ó Poeta, dos campos lá do monte? Eram um encanto de tão verdinhos! E o cheiro da terra molhada?




- Claro que me lembro! Foi naquela manhã em que choveu! E nós a ver tudo à janela! Campos sem fim, tantas oliveiras grandes, cheias de azeitonas.


- Devem ser muito velhas, tão grandes que são... Séculos se calhar!



- E os passarinhos, Dani, lembras-te? Na gaiola... Era tão bom que pudessem andar soltos pelas mesas, a debicar tudo!


- Sim, era triste que não pudessem sair. Tão monótono! Eram canarinhos...



E os cavalos, Dani? ? Esses andavam soltos!

O rosto do Ratinho iluminara-se:
- Sim, a beleza do cavalo branco! E livre!
Também eu me lembrava do cavalo branco, em liberdade, sem sela...


Continuavam a mexer as azeitonas. De repente, o Ouricinho pareceu interessado noutra coisa e mudou de conversa, virando-se para mim, que observava a cena, silenciosa:

- E as couves lá na nossa varanda? Estão a crescer como devem? Estivemos a vê-las ontem.
- Têm bichos! Uma data de buraquinhos, disse logo o Ratinho. Não temos couves para o bacalhau do Natal!
- É verdade, concordei eu. Estava lá uma lagarta e eu não conseguia encontrá-la. Comeu um bom bocado das folhas. Tenrinhas como eram...


- Oh! Elas sabem camuflar-se, são danadas!, disse o Ratinho. Rainhas  da camuflagem!
- E se a encontrares, o que lhe fazes? Mata-la?, perguntou o Ouricinho, triste.

Achei melhor contar-lhes tudo...
- Já a encontrei, Ouricinho,  e não mato. Não sou capaz. Tirei-a da folha e ...
- E...? E o quê?, insistiu ele, com medo.
- Olha, deitei-a lá para baixo, embrulhada numa folha de alface. Há lá plantas por baixo da janela.
- Bem...

Concordaram os dois, acenando com a cabeça. A Gatinha ficou calada. Não sei se ela tinha percebido a conversa e se sabia o que era uma lagarta da couve.

- Sim, fizeste bem, repetiu o Ratinho. Adiaste-lhe a morte...É o que fazemos todos nesta vida. Cadáveres adiados que somos...

Quase esperei que me viesse com os versos do Fernando Pessoa, mas, felizmente, não veio. Ouvi-os, na minha cabeça, e sei que ele pensou neles. O Ratinho é muito culto!

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria

Ele encolheu os ombros, como se não houvesse mais a dizer sobre o assunto, e voltou-se para a taça das azeitonas, dizendo:

- Vamos tratar bem as azeitonas, para não se estragarem! Ainda não desisti de comer uma azeitoninha boa, bem temperada com orégãos e alho! Sem amargor...
- Oh! Claro, riu-se o Ouricinho. As azeitonas da nossa varanda! Ia caindo do ramo, da última vez!


E, a rir-se para mim, brincando, como ele gosta:
- E o azeite? Fica para a próxima apanha, não é? Ainda lá tens umas vinte...
Tive de me rir.
- Azeite?
Ao pensar no que seria fazer azeite com aquela quantidade de azeitonas, respondi, muito séria:
- Os trabalhos agrícolas são muito difíceis... Conseguiremos nós fazer azeite?

Eles riram-se e não me responderam. Estava uma bela tarde de Outono na cozinha. Deixámos os trabalhos e pusemo-nos a conversar! Há tanta coisa para ver nas cozinhas! E tanta boa conversa com aqueles três amigos!




3 comentários:

  1. Ao ratinho não se lhe escapa uma...
    Quantas azeitonas em um povo tão pequeno!!!
    Ainda te hei-de ver a fazer azeite tu, meio copo, que é uma boa colheita, para uma varanda. Gostei da ideia de lançar o bicho em para-quedas, para ter uma morte mais suave. Bonita maneira de enganar a consciência! Tens que reconhecer que o mataste, com couve ou sem couve, né?

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  2. QUE COISA MAIS LINDA VIR AQUI, ADOREI VER ESSES DOIS APRONTANDO E DANDO A MESTRE CUCA.

    AMO AZEITES, AZEITONAS E TUDO O RESTO DESSE PAPO...

    BJS MUITOS DE TODAS NÓS.

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  3. O que eu gosto destas histórias!!

    Achei essa produção de azeitonas o máximo! Fiquei com vontade de ter uma oliveira na minha varanda...mas tenho um loureiro.

    Também faço o mesmo à bicharada; apanho-os num papelito e vão janela fora - aranhas, corta-unhas e outros ( uma vez tinha uma pequena osga na sala, mas essa, com muita pena minha, não se deixou apanhar e acabei por matá-la)...

    Adorei a foto dos amiguinhos na couve (do Natal!)...e a do passarinho, e todas!
    Já tinha saudades destas histórias, que a brincar nos fazem pensar.
    O trabalho do campo é difícil e devia ser bem valorizado.

    Adorei todo o post!
    Um beijinho grande :)

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