Desde miúda que me atraíram os gospel e os coros africanos. Lembro-me de
ouvir os espirituais negros, num disco que o meu pai um dia comprou, e de me impressionar a voz de Paul Robeson ou de Mahalia Jackson.
Pouco a pouco, descobri os blues. O gosto pelo Jazz veio bastante mais
tarde.
Vozes soltas, juntas, grupos que cantam, se fazem companhia. Ou a voz que vibra, solitária, que se exprime, que sente, sofre e se lamenta, e que grita. Nos espirituais, os cantores faziam uso do corpo, em movimentos rítmicos, usando as mãos batendo palmas como acompanhamento. Nos blues, os mesmos movimentos acompanham a música...
O que me impressionava e impressiona, ainda, é esse ritmo suave, sincopado, hesitante, o quase embalar da
voz, que nos leva a outros espaços, a outros céus: aos campos e às plantações de
algodão, no Sul dos Estados da América, na zona do Mississipi. Aos escravos de outros tempos...
Toda a sugestão dessa outra realidade parece entrar dentro de
nós, abanar-nos, despertar-nos! É o que eu sinto, pelo menos.
E, quando acompanhados de instrumentos - que funcionam como outras
tantas vozes-, é igualmente emocionante.
Hoje procurei num dicionário de música italiano ("Dizionario della musica e dei musicisti", Garzanti, Le Garzantine, Musica)
aquilo que desejava saber, mais profundamente. A wikipedia ajuda em certos casos,
é mais rápida, mas nada como o verdadeiro dicionário!
Encontrei coisas que vos deixo:
“Blues é um canto popular africano, criado nos Estados Unidos. Seguia um ritmo sob a forma de 3 versos de 12 sílabas (dos quais se repetem os dois primeiros), e baseia-se numa escala tonal oscilante, entre o modo maior e o modo menor, por causa das notas chamadas "blues notes" (1) ou "notas incertas", que surgem do encontro entre a escala pentatónica africana (cinco tons) e a escala heptatónica europeia.
De inspiração profana e adaptados à expressão
dos sentimentos individuais, enquanto o gospel ou os espirituais têm um
carácter religioso e colectivo, os blues têm a sua origem, individual, nos cantos de
trabalho dos escravos (work songs), ou dos gritos de chamamentos nos campos de
algodão e de milho (shouts e hollers).
Espalha-se, presumivelmente, na 2ª metade do século XIX, pelo resto da América, depois já da emancipação dos escravos, nos estados camponeses do sul, em
especial na zona do rio Mississipi.
É a primeira expressão musical negra autóctone, já que não
sofreu qualquer influência do fluxo musical europeu, como o ragtime pianístico.
Mas é a junção dos dois, fundindo-se, que vão dar origem ao Jazz, do qual vai
ser sempre uma componente essencial.”
Descobrimos, pois, que os blues que se vão encontrar mais
tarde em New York, ou espalhados pelos estados do norte, levados por esses escravos emancipados, os chamados urban blues, têm um carácter mais duro, menos doce, enquanto os country blues
tinham a suavidade dos momentos que não passavam mais, dos dias e da monotonia
dos trabalhos repetitivos...
Cantores de blues? São imensos. Parece que a primeira cantora de
blues foi Ma Rainey, depois veio Mamie Smith (1883-1946), seguida de Bessie
Smith (1894-1937), e de Martha Smith (todas se chamavam Smith...).
Thomas Dorsey, compositor de gospel
Thomas Dorsey, compositor dos primeiros cânticos evangélicos
gospel, acompanhou, antes, a cantora de blues Ma Rainey.
Os anos 20 andavam por ali perto, eram os tempos do Jazz Age
de que fala Scott Fitzgerald, eram os tempos em que o Jazz aparece ligado às orquestras
brancas que tinham chegado da Europa, orquestras de baile. É o tempo de swingar.
"Em 1912, William Christopher Handy publica a canção "Memphis Blues", que compusera inspirando-se directamente nos cantos populares.
(...) Levado para Norte, seguindo as migrações das massas negras, o blues desenvolveu-se nos guetos das grandes cidades (Atlanta, Memphis, St. Louis, Detroit, Chicago) caracterizando-se por uma maior dureza."
Desde Big Billy Broonzy a John Lee Hooker...
Desde Big Billy Broonzy a John Lee Hooker...
Os "transmissores" desta música nova, vão ser os minstrels, que cantam nos bares e tabernas mal-famadas (honky tonky) das cidades e aí aparece, a dada altura, a guitarra, a acompanhar como uma segunda voz. Mais tarde é substituída pelo piano. O blues passa a ter uma forma instrumental, e vai dar origem ao boogie woogie.
"Mas a sua primeira dimensão de espectáculo, surge com as cantoras dos Anos Vinte, misturando-se agora com o jazz. Entre as mais famosas expoentes destes anos temos Ma Rayney, Mamie Smith e o seu "Crazy Blues", que foi, em 1920, o primeiro disco a ser gravado. Ou Bessie Smit, a mais importante."
E mais ainda fiquei a saber: o boogie woogie encontra nos anos 30, a sua primeira "band", em Kansas City: a de Count Basie!
E mais ainda fiquei a saber: o boogie woogie encontra nos anos 30, a sua primeira "band", em Kansas City: a de Count Basie!
"Do boogie woogie derivam as várias formas de rythm and blues (inicialmente chamado jump), do qual descende, como versão branca, o rock; por sua vez, fundindo-se com a outra matriz do canto popular, o gospel, deu vida ao funky, à música soul e, por fim, à disco music." (op.cit. Pg 95)
Nota (1): "As "blues notes" eram frequentes nos blues conferindo a esta música uma indefinição tonal muito característica, pois num contexto harmónico se encontram em maior se apresentam baixadas de um semi-tom, como se pertencessem ao modo "menor". (op. cit. p.94)
Podem ouvir alguns spirituals e blues... Antigos e mais modernos...
1)Paul Robeson e Old man river
Mahalia Jackson e Canções de Natal
2) Ma Rainey e Moaning Blues
Três canções por Bessie Smith :
Poor man’s
blues
Careless love
After you’ve
gone
3) J. Lee Hooker
Gosto deste tipo de música que habitualmente só ouvia nos filmes.
ResponderEliminarO post é muito interessante!
Um beijinho :)
Sei que percebes bem esta sensibilidade. Belos filmes esses! beijinho
EliminarMuito interessante tudo, e a tua forma de sentir e viver os blues.
ResponderEliminarOs negros sempre levaram o ritmo no corpo, a música faz uma parte dele, por dentro e por fora, e tinha que ser melancólica, claro, impossível ser de outra maneira. Suponho que grande parte da sua beleza vem daí, dessa tristeza resignada e ao mesmo tempo cheia de paixão. Este tipo de músicas, quando se comercializam perdem muito, às vezes.
Grndes beijos
Ainda hoje consegue comover-nos...
Eliminar"Os Blues são as raízes e as outras músicas são os frutos. É bom manter as raízes vivas porque isto significa melhores frutos para o futuro. O Blues existirá sempre, porque o Blues é a raiz da música americana. Enquanto a musica americana sobreviver, o Blues sobreviverá". (Willie Dixon)
ResponderEliminar"A meia-noite fui acordado por uma forte gargalhada e olhando pela janela, vi que um bando de carregadores negros tinha feito uma fogueira e estava desfrutando um alegre repasto. Subitamente, um deles emitiu um som que nunca ouvira antes, um grito longo, forte e musical, subindo e descendo, transformando-se em falsete, sua voz atravessando a mata e cortando o ar gélido da noite como um toque de clarim. Quando terminou, a melodia foi continuando por outro e, e, seguida por vários, em coro..." F.L.Holmstead, quando dormia num vagão de trem de passageiro ao percorrer o Sul dos Estados Unidos antes da Guerra Civil (1861-1865)
Adorei o comentário, Mr. Butterfly! Que bonita a história que F.L.Holmstead,conta! Consegui imaginar a cena toda!
EliminarSim, são as raízes de tudo os blues! Completamente de acordo com Dixon:
"Os Blues são as raízes e as outras músicas são os frutos. É bom manter as raízes vivas porque isto significa melhores frutos para o futuro. O Blues existirá sempre, porque o Blues é a raiz da música americana. Enquanto a musica americana sobreviver, o Blues sobreviverá". (Willie Dixon)
Obrigada por mais um ensinamento musical... Abração