domingo, 7 de dezembro de 2014

E hoje? Rever "O Ovo da Serpente" de Bergman e reler "Badenheim 1939", de Appelfeld

Vi, há uns meses, O Ovo da Serpente, de Bergman. Um filme duro (como ele sabe fazer), assustador e verdadeiro. 



É de 1977 e, no entanto, fez-me pensar na realidade de hoje. 
Já explico - o que nem é difícil de perceber para quem viu o filme, que vale, realmente, a pena ver. 
Porquê? Porque mostra uma sociedade de medo, porque se “adivinha” a vinda de algo perigoso que se desconhece. Porque os valores se perderam e é o salve-se quem puder. 
E hoje estamos quase a viver, de novo, esses dramas e esses medos...
O filme passa-se, em Novembro de 1923, em Berlim. Numa Berlim massacrada e humilhada pela derrota da guerra, em 1918; uma Berlim empobrecida e onde não há que comer, em que existe a hiperinflação e o mercado negro - e os vários mercados de todas as espécies; onde quem pode, compra e quem não pode, vende-se… 



Um sub-mundo em que cada um faz o que pode para se salvar da miséria total e sobreviver no dia a dia. Foi o erro dos Aliados? Não sei se foi. Mas já alguém disse que o vencedor não deve humilhar os vencidos. E Alexandre Magno, grande conquistador da antiguidade clássica bem o sabia, ele que nunca "humilhou" os que vencia -muito pelo contrário.
Uma guerra é uma guerra e houve muitas ao longo dos séculos, porém nem todas deram origem ao que esta deu: uma segunda guerra muito pior e a chegada ao poder de um louco inteligente que “percebe” as frustrações daquela gente, que lhes recria sonhos de vitória e de grandeza, que lhes explica que vão voltar a ser como dantes.



O filme dá essa atmosfera de uma cidade sombria, em Novembro. Arrastam-se pessoas sem esperança, sem olhar para o céu, sempre cinzento. As ruas de Berlim sujas, onde a chuva cai continuamente e molha os caixotes caídos pelos cantos e onde tudo parece apenas lixo. Todos se sentem isolados e a cidade não acolhe ninguém.
Certos dias neva, o frio é muito e as pessoas passam sem expressão, vão em frente, vão trabalhar quando têm empregos, arrastam-se pelos bares quando não o têm. Sente-se pairar o medo. Talvez porque as personagens falam desse medo, escondem-se, não confiam.
Cada uma reage de modo diferente a esse medo. O protagonista, Abel Rosenberg, um judeu americano que está ali de passagem, que não é dali, nem fala alemão, e tiha sido trapezista num circo que falir. 



Sente que corre perigo, que há algo no ar que empesta e que o faz ter medo e fugir, fugir sempre. O irmão, Max, também trapezista com quem se tinha zangado há pouco tempo, suicidara-se naquele mesmo dia. Abel "sente" que há alguma coisa errada naquele suicídio.


Berlim em 1945

Berlim  hoje
O filme começa com Rosenberg a ser interrogado pela polícia. Acontecem coisas estranhas, morre gente que vivia perto de Abel, ele sente-se acusado de coias que não fez – ou será ele que imagina tudo? 
A mulher de Max, Manuela, separada dele há alguns anos, procura amparar Abel, ajudá-lo. Mas ela própria a dada altura desfalece, sente-se doente sem saber de quê e queixa-se: “Não temos futuro, sabes? Não há futuro.”
Conseguira algum dinheiro: as suas economias a trabalhar de manhã numa estranha clínica e à noite num cabaret ordinário.
É um thriller, no fim de contas, um filme apenas. No entanto, alguns anos depois, o ovo da serpente abria...

Discurso de Hitler, em Weimar, 1930

Por que razão me fez pensar tanto num livro de Aharon Appelfeld? Um livro que não esqueço nunca: Badenheim 1939.




É a mesma atmosfera de fim de algo, vivido com relativa tranquilidade e que, de repente, é ameaçado. E que não se sabe o que vai ser, mas começa a “desregular” os habitantes, sobretudo os judeus, de uma pequena cidade de termas imaginária, na Alemanha.
Fecham as lojas, algumas pessoas desaparecem sem se saber se foram embora ou se lhes aconteceu alguma coisa, e as pessoas que ficam– os judeus- agem de modo estranho, quase irresponsável, sem ousarem preocupar-se com a ameaça encoberta do futuro. Vivendo o dia a dia numa espécie de sonho.

Tentando distrair-se apenas: indo ao bar do hotel tomar uma bebida, comendo bolos, fazendo picnics sem sentido, concursos disparatados. 
Esperam a chegada da orquestra que costuma vir todos os anos, prepara-se uma festa no grande hotel da terra, aguarda-se qualquer coisa que parece enorme. Alguma coisa acontece na sombra.



As comunicações com o exterior acabam, a cidade fica isolada, como em quarentena: não se pode entrar nem sair. Aparece uma Polícia que não é bem polícia que vem fazer uns interrogatórios estranhos e dizer que se prepara uma viagem para todos. Ninguém sabe o que é.
Procuram todos esquecer tudo. Esquecer sobretudo o medo que, inconscientemente, têm! 
A orquestra chega. E a viagem misteriosa também...
É esse medo, essa mesma atmosfera pesada, que senti no filme de Bergman.
Exagero, ou será que algo se prepara neste nosso mundo que nos pode causar um medo semelhante? Infelizmente, creio que o anti-semitismo - e outros racismos- recrudesceu. 



Basta ver o que se passou há poucos dias em Créteuil, Paris: um jovem casal, de religião judaica, foi atacado em casa e a jovem noiva de 19 anos é violada por um grupo de três homens: apenas porque eram judeus, logo, "deveriam ter dinheiro em casa" e, logo também, eram apenas "des sales juifs". 
Isto aconteceu depois de dezenas de ataques a judeus neste ano, em França...

Bem, claro que filmes são filmes e livros são livros: ficções, não é? E o que acontece em França está longe de nós!

Vamos continuar descansados, porque nada nos pode acontecer… "Até ao dia X", como dizia o meu amigo de São Tomé, o Senhor Semedo!


1 comentário:

  1. É assustador tudo aquilo de que fala, mas deve ser mesmo essa a realidade que fica depois de uma guerra, depois da destruição. Não compreendo como é possível continuar a acontecer. Não traz nenhum bem para ninguém.
    Gente que rouba, mata e viola em nome do que quer que seja, é gente cobarde.

    Um beijinho e um bom feriado:)

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