quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Um "conto de Natal" diferente...


Sandro Boticelli, Madonna del Melograno

Hoje dia em que o Natal terminou pus-me a pensar no que este momento significa- se é que significa ainda alguma coisa neste mundo egoísta e material.

Porque o Natal, para mim, é o nascer de uma criança nova em cada um de nós. Ou deveria ser. Porque, assim, mesmo sem acreditar em Deus, seria o renascer da esperança.
Cada ano, um novo Menino Jesus nasce – ou deveria nascer- em cada um de nós. 
Botticelli, Madonna del melograno (pormenor do menino)

E logo queremos que ele seja o “nosso” menino, o que está dentro de nós e não cresceu, o que está abafado tantas vezes, prisioneiros que somos dos nossos egoísmos e indiferenças; dos nossos calculismos e impotências; das nossas frustrações e esperanças desiludidas.

E cada um tem o Menino Jesus que “é”, e essa esperança em algo que se quer ser -de melhor- renasce todos os natais.

Este ano 'descobri' dois meninos Jesus de que gosto. Um é o menino Jesus dum presépio de Estremoz que me acompanha há muitos anos. Deitado de lado nas palhinhas e acompanhado por um galo e duas galinhas. E, pertinho dele, estão duas pombas brancas. 

E eu penso, a sonhar com a vida que aquele Menino quando se aborrece de estar naquele berço divino sai da cama e vai dormir para o chão!

O outro “meu” Menino descobri-o num poema de Fernando Pessoa: o menino Jesus que um dia foge do céu… 
E este menino singular de que fala o poeta queixa-se da vida que tinha no céu, queixa-se de Deus e do Espírito Santo, a "única pomba estúpida"… e decidiu fugir!  Tal como o outro Menino fugia da cama de palhinha. Aqui vos deixo uma parte do poema e as imagens que é essencial ler inteiro!

"Num dia de fim de primavera/tive um sonho como uma fotografia/Vi Jesus Cristo descer à terra,/ Veio pela encosta de um monte/Tornado outra vez menino/A correr e a rolar-se pela erva/ E a arrrancar flores para as deitar fora/ E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,/ Era nosso demais para fingir/de segunda pessoa da Trindade./No céu era falso tudo, tudo em desacordo/ Com flores e árvores e pedras,/No céu tinha que estar sempre sério/E de vez em quando de se tornar outra vez homem./ E subir para a cruz, e estar sempre a morrer/Com uma coroa toda à roda de espinhos/E os pés espetados por um prego de cabeça. 

(...) Um dia que Deus estava a dormir/ e o Espirito Santo andava a voar,/Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,/ Como primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido./Com o segundo criou-se eternamente homem e menino./Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz./ E deixou-o pregado na cruz que há no céu/ e serve de modelo às outras./ depois fugiu para o sol/ e desceu pelo primeiro raio que apanhou./ Hoje vive na minha aldeia comigo./

É uma criança bonita de riso natural./Limpa o nariz no braço direito,/Chapinha nas poças de água,/Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. /Atira pedras aos burros,/Rouba fruta nos pomares/ E foge a chorar e a gritar dos cães./ E, porque sabe que elas não gostam/ e que toda a gente acha graça,/ Corre atrás das raparigas/ Que vão em ranchos pelas estradas/Com as bilhas às cabeças/ E levanta-lhes as saias./ 

(...) A mim ensinou-me tudo./Ensinou-me a olhar para as cousas,/Mostra-me como as pedras são engraçadas/Quando a gente as tem na mão/ E olha devagar para elas.

(...) Ele mora na minha casa a meio  do outeiro/ Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava,/Ele é o humano que é natural,/Ele é o divino que sorri e que brinca,/E por isso é que eu sei com toda a certeza/ Que ele é o menino Jesus verdadeiro. 

(...) E a criança tão humana que é divina/É esta minha quotidana vida de poeta,/E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre."


Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
(…)
Depois eu conto-lhe histórias das coisas de homens
E ele sorri porque é tudo incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis
E tem pena de ouvir falar das guerras
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flore tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros calados."

E o Poeta pede:

"Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para tornar a adormecer.
E dá-me sonhos para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
………...........................................................
Essa é a história do meu Menino Jesus
Porque  razão que se percebe
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo o que os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam.

E eu gosto deste Menino Jesus e pergunto, com o Poeta: "Sim, por que razão?" 
E digo: "Este também é o "meu" Menino Jesus!"  

O poema (que poderia ser de Manuel Bandeira...) é de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro: “Poema de O Guardador de Rebanhos”, in Antologia de Adolfo Casais Monteiro, “Poesia da presença”, Círculo de Poesia, Moraes Editores (pp.76-79)

6 comentários:

  1. Que Deus a guarde sempre maravilhosa assim, bjs muitos de suas amigas além do atlantico.

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    1. Obrigada amigas queridas! UM Bom Ano para vocês e muita sorte para o vosso magnífico trabalho! Bjs

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  2. https://www.youtube.com/watch?v=sTwcoBvA3nU

    Adorei o seu post. Muito lindo.
    Deixo aqui um link, que talvez não conheça e goste de ouvir...é este poema (ou parte dele) dito e cantado pela Maria Bethânia.( Espero que tenha copiado bem)

    Um beijinho grande e continuação de Boas Festas:)

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    1. Obrigada, Isabel, estou já a ouvir e é muito boa ela, como sempre. Tão natural... Beijinhos e Bom Ano!

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  3. Gosto muito do poema de Alberto Caeiro.
    Do seu Menino Jesus também gosto. Hei-de ver se o encontro por aí.
    Tenho um Menino Jesus alentejano, na minha colecção, mas é contemporâneo. Tem o rabo virado para o ar, feito por um artesão alentejano.
    Obrigada por este conto.
    Beijinhos e Boas Festas. :))

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    1. Ainda bem que gostaste, Ana! Sei que o Alentejo é importante para ti...e a minha cidade de Portalegre também! Bom Ano!!!

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