segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O Natal em casa da tia Mariquinhas...



Quando penso nos primeiros natais da minha infância, lembro a casa da Tia Mariquinhas. 
A minha avó tinha três irmãs e a mais nova era a tia Mariquinhas. O nome era Maria Joana e eu achava-o muito bonito e não percebia como aceitava que lhe chamassem "Mariquinhas"! A verdade é que, naqueles tempos, as Marias tinham o diminutivo de Mariquinhas que, na nossa terra, soava sempre como "marquinhas"...
A tia Joana era uma mulher cheia de vida, alegre, que costumava dizer, ainda muito jovem:
- Eu não quero nada com estudantes brincalhões! Rapazes!...
 As irmãs ficavam a olhar e sorriam, já sabiam o que ela ia dizer a seguir.
- Vou casar com um homem rico. Que me venha buscar a cavalo. Quero ter uma charrette e viver numa quinta...
Mary Cassatt, Mulher com chapéu pretovestido cor-de-rosa

Era uma mulher alta, de cabelos claros, talvez arruivados, um nariz levemente adunco e a pele muito branca. Penso em certas figuras  de jovens mulheres de Mary Cassatt com penteados de cabelos erguidos para o alto da cabeça que deviam estar na moda. Mas eu lembro-a já de cabelos brancos, bem penteada, sempre cheia de pó-de-arroz perfumado, a rir de tudo e a franzir os olhos pequeninos num sorriso eterno.
 Casou com um homem rico, mais velho, de pele tisnada, traços severos, pessoa generosa, que tinha quintas e andava a cavalo.
 Penso que foi feliz no casamento. Via-se que adorava viver, e comia e bebia como uma deusa pagã. 
Mary Cassatt, Mulher com blusa cor-de-rosa

A sua era uma casa farta, onde a mesa estava cheia de comida saborosa e de muitos doces. Nunca me esquecerei do doce de abóbora gila e da geleia de mão de vaca que comia em casa dela.
Foi em casa dela que me lembro de festejar os primeiros natais da minha vida.

Recordo uma grande árvore de Natal cheia de luzes. O meu tio mandava cortar na herdade um pinheiro bonito e redondinho que se enterrava num vaso com terra. E começava-se, então, a enfeitar a árvore.
Nós aparecíamos, para o fim, com a mãe, a dar uma ajuda com alguns balões pequeninos ou uns enfeites que se assemelhavam a caracóis dos querubins dos quadros, fiozinhos prateados que se colocavam ao lado dos flocos de algodão que por ali flutuavam já. O Inverno era frio em Portalegre e, por vezes, vi flutuar flocos verdadeiros por detrás dos vidros gelados das janelas - um encanto!


Contou-me a minha prima que a primeira árvore electrificada que houve na nossa terra foi a dos tios da minha mãe.
Um amigo, que se entendia em ligações eléctricas, confeccionou as luzinhas eléctricas que acendiam e apagavam, substituindo as velas de várias cores dos natais anteriores. O meu avô trazia a grafonola


grafonola, foto R. Amaral Marques


O meu avô trazia a grafonola e os discos: tangos argentinos, músicas francesas, Maurice Chevalier, a Arletty e -quem sabe?- talvez a canção da Lucienne Boyer de que o meu pai gostava tanto: "Parle-moi d'amour"...

Na véspera do Natal, era a festa mais importante. O meu pai que nunca quis guiar nem ter carro chamava o Sr. Bretanha ou o Sr. Fadagoza que eram os taxistas da praça e íamos para casa da tia. A casa ao fundo da Rua Acciaioli estava cheia de luzes e lá dentro cheirava a bolos! 



Todos em volta duma grande mesa, comíamos uma refeição ligeira em vez do jantar porque, mais  tarde, havia a ceia: bacalhau com batatas e couves, peru, azevias, filhós, fatias da china e outros doces que nunca mais acabavam!
E, a seguir, ainda à mesa, afastando as toalhas bordadas e os doces,  começavam as histórias da tia Zezinha, as brincadeiras da tia Marquinhas e do meu avô, as gargalhadas dela que adorava brincar... E a minha avó (contava-me ela)deitava as rolhas do champagne e os papéis dos bombons para o outro lado da mesa onde estava, solene, a tia Leopoldina que nada perturbava. 
Púnhamos na cabeça chapéus ou coroas de papel brilhante cheios de estrelinhas e de luas, abriam-se os embrulhos-surpresa que davam estalinhos e tinham rebuçados lá dentro. 

Depois, eram as cantigas ao desafio em que o meu avô primava com a minha avó, o jogo do  loto em que se ganhavam (ou perdiam) feijões, o jogo da bisca, ou o dominó, à espera que chegasse a meia noite. Esse velho dominó do meu avô guardo-o eu. Com o desgosto de lhe faltar uma peça: a pedra  6/6....



No momento de abrir as prendas, havia exclamações de surpresa, de alegria, e risos até que nós começávamos a cabacear de sono, ou adormecidas em cima da mesa.
O meu pai dizia que era hora de voltarmos, e alguém nos ia levar.  O meu pai estava sempre deserto de voltar para a casa amarela...


Vlaminck, rua de Murnau e casa amarela

Entrávamos em casa, meio a dormir, e íamos meter-nos na cama, quase vestidas, e quando a minha mãe que vinha acabar de nos despir, já nós dormíamos a sonhar com o Pai Natal.

Na manhã seguinte, haveria outras prendas. Sabíamos que o Pai Natal, no seu carro puxado por renas, as iria deixar, ainda nessa noite, deitando-as pela chaminé da cozinha...
Suponho que adormecíamos, felizes, a pensar nesse momento.

(1) Para quem nunca viu uma grafonola aqui fica este post que explica tudo...



6 comentários:

  1. Gostei tanto de ler estas suas memórias. E gostei das pinturas e fotos que escolheu (como sempre!).

    Boas Festas :)
    Um beijinho grande:)

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  2. Adorei o Natal em casa da Tia "Mariquinhas". Tudo tão bonito e tão acolhedor.
    As árvores e as animações são giríssimas.
    Querida amiga, um Feliz Natal na companhia das suas pessoas queridas.
    Amanhã tenho a família cá em casa, não sei se posso vir dar um beijinho. De forma que deixo aqui um, muito especial e natalício.

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  3. Também eu lembro com saudades os Natais da minha infância. Um beijinho, Maria João.

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  4. Ainda falamos, mas desejo um Natal muito Feliz:)
    Um beijinho grande:)

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  5. Este blogue tem um encanto especial. Com recordações escritas na memória de MJ que partilha generosamente por quem tiver a sorte de aqui vir parar.
    Não tenho feito comentários aqui porque há um problema informático (?) deste lado que não compreendo, sempre que o faço.
    Boas festas de Natal para si, MJ, e para todos os ue lhe são próximos.

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  6. adoro....sempre com tanto pormenor e ternura...és um anjo,querida
    Jana. mil beijinhos

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