sábado, 2 de maio de 2009

A minha amiga Dáy




DÁY




Vinha trazer-me o pequeno almoço de manhã cedo. Abria a porta, espreitava e perguntava, baixinho:

- Posso entrar?

O tabuleiro tinha um pano bordado, que ela escolhia todos os dias de cores diferentes, e tudo nele estava disposto simetricamente.
O corpo pequenino segurava o tabuleiro de encontro ao peito magro e ela esticava os braços até o pousar devagarinho nos meus joelhos.
Abria as vidraças, afastava a rede-mosquiteiro e abria as portadas das janelas, de ripas fininhas, voltando a fechar outra vez os vidros. A luz forte entrava e com ela o colorido e os perfumes do jardim.
Sentava-se na beira da cama, ajeitava-me o lençol e ficava à espera que eu conversasse com ela. Eu, que acordava sempre estremunhada, sem vontade de falar, ia bebendo o café aos golinhos, começando devagar o meu dia. Ela tinha um nome complicado, cheio de tt e de zz, mas eu chamava-lhe Dáy, seu nome de casa, como se usava na ilha.


- Bom dia, Dáy, correu bem a manhã?

Agitava-se toda e respondia:
- Mais ou menos, dôtôrra...
Era a resposta que eu me habituara a ouvir em S. Tomé quando perguntava pela vida, pela saúde, pelo dia. Mais ou menos... ou então leve leve que soava, docemente, levi levi. E tão pouco parecia dizer tudo.

Abanava a cabeça, alisava o vestido, com as mãos espalmadas. Pela expressão do rosto, percebia como fora, se tinha havido problemas em casa, se a mãe lhe tinha batido por ter brigado com os irmãos, ou por não ter ido buscar água à fonte.
A mãe era a minha cozinheira e todos os dias se zangava com ela:
- A dona dá muita confiança, ela é minina disubidente!

Sentada na cama, a Dáy ia dizendo, arrastando as palavras:
- Sabe, dôtôrra ...

A sua voz rouca e o modo de carregar no r eram inconfundíveis...,
- Eu não gosto de ninguém no mundo!
E acentuava no mundo com mais força, inclinando-se para a frente.
- De ninguém mesmo?..., brincava eu.
Ia respondendo, distraída, enquanto contemplava pela janela aberta o meu jardim africano: a sebe de ibiscos vermelhos, o tronco rugoso da mangueira, mesmo em frente da janela, com os tufos de folhas escuras e os ramos pesados de mangas, os caules frágeis dos papiros, o colorido vítreo das rosas de porcelana.

E continuava, sem a olhar:
- E porquê, Dáy? Por que é que não gostas de ninguém?

E, rindo:
- Nem de mim?...
- Nem da dôtôrra! De ninguém mesmo!, respondia, convencida.
Fechava os olhos, de lábios apertados, voltava a abanar a cabeça. Eu tirava um livro da mesinha de cabeceira, pousava-o na cama, folheava-o, desejando apenas encostar-me nas almofadas, sem ter que a ouvir. Mas ia dizendo:

- Porquê? Diz lá, Dáy...
- Porquê? Porque ninguém gosta de mim no mundo!

Olhava-me de lado, espreitando a minha distracção:
- Oh! Oh! A dôtôrra nem está a ouvir! Eu não disse? Ninguém gosta de mim!... Nem dôtôrra!
Amuada, levantava-se. De queixo erguido, as pálpebras semicerradas, fechava a porta com força.
Durante o resto da manhã passava sem me falar, fingindo não me ver.
A mãe resmungava:
- É minina mal nascida!...
Dáy virava a cara, fechava o rostozinho, onde os olhos amendoados brilhavam orgulhosos, e fugia pela porta da cozinha. Pouco depois, ouvia as gargalhadas roucas, a brincar com os irmãos.
Quando chegava a hora da escola, vinha a correr, com os cadernos na mão, esquecida do amuo:

- Dôtôrra, esqueci os trabalhos de casa, a professora vai zangar-se bastante!
Mostrava-me as folhas sem nenhum exercício feito.
- Ai, Dáy, Dáy!...
- Esqueci, dôtôrra...

Sentávamo-nos no varandim da cozinha. No fim, corria a lavar-se e a pentear as trancinhas que enfeitava com duas ou três contas de cor. Antes de sair, vinha ver se tinha alguma coisa para ela: um doce, um chocolate?... Vinha mordendo um safu e estendia a mão cheia:

- Quer?

O gosto acidulado do fruto ficava-me na boca enquanto ela se virava para trás:
- Tchau, dôtôrra!

Era assim a minha amiga Dáy...

Certas manhãs falávamos muito: das colegas da escola, das mangas e das carambolas que havia no jardim, do pequeno sagui que aparecera a roubar as uvas amargas da latada e cuspia as grainhas para cima de nós.
E ríamos.
Outras vezes, eu ralhava-lhe porque tinha sido malcriada com a mãe, porque não queria tomar banho, ou porque não fazia os deveres. Ela encolhia os ombros estreitos, esticava o lábio inferior, abanava a cabeça como se isso não a preocupasse. Mas se eu lhe dizia, com doçura, pousando a minha mão na dela:

- Eu gosto de ti, Dáy, tens de ser boa, tens de estudar, deves ser uma menina lavadinha e bonita...

Ela respondia logo:
- E por que é que eu hei-de fazer isso tudo?! Quem é que quer saber de mim?...
Punha a cabeça de lado, olhando-me pelo canto do olho, à espera:
- Eu! Eu, Dáy, eu quero saber de ti! E quero que sejas boa, que aprendas, porque eu gosto muito de ti!
Suspirava, as pálpebras tremiam e grossas lágrimas pingavam, uma a uma, na colcha e a sua mão pequenina, de unhas pintadas de vermelho, apertava a minha com força.
- Sou a tua maior amiga, ou não sou?

Um dia, a minha cozinheira foi-se embora. A casa de madeira sobre estacas onde viviam, na subida da Chácara, aluíra com as chuvadas e foram viver para casa da irmã, longe, a muitos quilómetros da cidade. Foi-se embora e levou os filhos.
Levou a alegria da minha casa. Durante muito tempo não soube notícias deles, não vi a Dáy... Acabara-se a algaraviada de todas as manhãs, ao acordar... Não havia já quem fizesse correrias pelo jardim, quem subisse à goiabeira e trincasse os frutos ainda verdes e me trouxesse as carambolas douradas...

Uma manhã, ela voltou:
- Vim visitar dôtôrra...
Suada, com a roupa amarrotada e suja, as tranças despenteadas. Só os olhos brilhavam, como sempre, maliciosos. Abraçou-me e eu ajeitei-lhe os cabelos, limpei-lhe a cara. Sentámo-nos, como tantas vezes, no parapeito da varanda, a conversar.
- Dáy, Dáy... Onde é que vives? Vais à escola? E a tua mãe? O Nini? O Maiquel?- precipitava-me eu.
Olhou para o jardim, espreitou para dentro da cozinha, onde se ouvia o barulho de panelas e nem me respondeu.
- Tem outra cozinheira, dôtôrra? Ela tem filhos?...
E, sem esperar:

- Gosta deles?...
E acrescentou logo, sem se preocupar com a resposta, ou como se tivesse medo de a ouvir:

- Nós?...Oh! A mamã arranjou um namorado... Nós fomos viver em casa da tia, na Cova Barro. É uma casa que tem lá muita gente.
Esticava o vestido e abanava as pernas batendo com os pés na parede do varandim.
- Nós estamos a viver na Cova Barro, em casa da minha tia
- E tu, Dáy, tu estás contente?
- Eu?...

Virou a cara para mim e fechou os olhos.
- Eu tenho saudades da dôtôrra...

E as lágrimas caíram das palpebrazinhas cerradas.
Voltou muitas vezes, a visitar-me. Depois... Depois, um dia, fui eu que parti...

Passaram muitos anos e eu sei que não vou voltar à minha ilha perdida.
- Ai, Dáy, Dáy! penso eu hoje.

O que será feito da minha amiga Dáy?
( a minha amiga Dáy cresceu, teve duas filhas e vive hoje em Luanda. Telefona-me muitas vezes, quer que eu vá lá visitá-la, ou que "a chame para o pé de mim..."
Oh! Dáy, Dáy!)

4 comentários:

  1. Histórias de verdades que me molham o olhar. Há tanta ternura magoada, tanta intensidade de sentires. Eu também já tenho saudades da Dáy...
    Beijinhos muitos

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  2. Histórias de vida-verdades. Tão cheias de gostares, de sentires, de intensidades, que me molham o olhar. Até eu já tenho saudades da Dáy...

    Beijos e obrigada...

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  3. Tão bonito!
    Lê-se com muito prazer e temos pena que acabe.
    Quero mais,M. J.!
    Muito obrigada por este "doce".
    Beijinhos

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  4. Tão bonita!
    Já "conhecia" a Dáy, mas creio que nunca tinha lido aqui esta história.
    Tenho que vasculhar cá mais para trás, o seu blogue. Tem cá tesouros que ainda não conheço!
    Quanta ternura nestas histórias tão bonitas!
    Um beijinho grande

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