quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Conto de Natal, dedicado a todos os meninos como os "Musas" deste conto...


Deixo-vos hoje este conto de Natal que o meu pai escreveu, há tanto tempo...

Achei que era o momento de o pôr no meu "blog" e, assim, recordá-lo com mais intensidade, o seu sentido de justiça, a sua humanidade... Com ele, quero lembrar os amigos que desapareceram para sempre e que não estarão presentes neste momento de festa.

Mas o espírito deles há-de andar por perto: a nossa saudade irá buscá-los, um por um, onde quer que estejam, trazendo, também, o meu querido cão Zac entre eles...
E ficarão contentes por nos ver felizes...
O quadro maravilhoso de Leonardo da Vinci -que o meu pai venerava- vai fazer-lhes a eles -e a nós também- boa companhia.

Bom Natal, amigos desaparecidos!

Bom Natal, "Musas" de todo o mundo!

Bom Natal, meus amigos de hoje!



UM NATAL DISTANTE...
Feliciano Falcão


"Conheci-os na minha infância longínqua como companheiros de brincadeira. E, ora que ora, a sua lembrança com insistência me volta, numa presença violenta de emoções encadeadas.

E uma noite de Natal me acode nítida, passada com eles nesse tempo tão remoto. Tenho nos olhos tudo, como se fora hoje.

A noite, bela e ríspida, com estrelas e luar, - um luar de brancura líquida a envolver a atmosfera. Na minha rua, na periferia da cidade (chamo-lhe minha, tantas recordações duras e doces que ainda guardo e por elas modelei esta personalidade simples), era um silêncio rústico quase total.
Todos recolhidos, uns, poucos, na unção da grande Noite, outros, a maioria, exaustos e mergulhados num sono fundo, sedante para as frustrações do dia adia... Na minha casa – lar modesto de camponeses transplantados para a cidade- onde os dias eram uns iguais aos outros, numa suave monotonia, gozava-se um interregno de Felicidade.


Meu pai, de olhos azuis e a bondade estampada no rosto, sentava-se, absorto, num banco a um dos cantos da lareira, olhando os grossos tições vermelhos. Minha mãe ocupava o outro canto numa cadeira de bunho, tirando da caçarola com o azeite fumegante as filhós encarquilhadas. Nós, eu e os meus irmãos- ficávamos entre ambos, exultantes e suspensos, num banco rústico, baixo e comprido.
Pela chaminé caíam flocos de fuligem sobre o lajedo da lareira. E sentia-se lá fora um vento fino que mais avolumava o senso de conforto da nossa casa pobre.
Nem o meu pai leria naquela noite o folhetim ingénuo do Notícias que o comovia até às lágrimas. Nem a minha mãe levaria o serão ponteando meias como era seu hábito.

Em roda tudo era mágico e prenhe de pulcritude, grato à imaginação infantil. Ali vivíamos esses momentos da Noite com uma simplicidade como a dos tempos bíblicos.

Mas esse contentamento puro de uma família simples (só as almas simples e as crenças podem ter contentamentos puros, integrais) em breve foi perturbado por plangência arrastada, cada vez mais próxima, vindo das costas da rua, para as bandas do jardim.
Um soluço de tonalidade infantil com intermitências agudas que punham frémitos nas nossas mentes incipientes. Vidas em botão, sós no mundo, ao deus-dará, sem um amparo, por flébil que fora, os “Musas” faziam o triste deambular costumado, a pôr uma obnumbração na Noite festiva e bela.
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Da mãe só tinham uma memória esfumada. O pai, sob o jugo de uma vida sem grandeza, conformado, umas vezes aqui, outras ali, pária em instabilidade pecuniária crónica, continuava nos filhos quase na origem o seu fado sombrio.

(Há certas vidas cínzeas dos homens de pura irracionalidade e adensada torturação. Se tudo lhes é negado e nem o vegetativo satisfazem. Ai, esta ladeira de ascensão para o justo e para o perfeito onde os seres e as coisas se nos espraiam até o âmago, dá-nos outro alento e um vigor novo!)
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E assim os “Musas” encetavam no mundo logo à nascença um drama dos mais tristes. Sujos, cheios de parasitas, descalços e rotos, metidos em calças compridas safadas, cobertos de sacos velhos, os vimos nestes dias invernosos, sempre juntos, semelhando dois irmãos siameses.
Um, o mais velho, seria da minha idade (João, onde estás?), de um castanho acobreado, de olhos grandes, era o professor do irmão, ele tão necessitado de protecção também. O outro, fino, linfático, de cabelos louros, parece-me agora de longe um bambino de Fra Angelico...

(O frágil bambino de Fra Angelico, na "Adoração")

Quantas vezes, quantas, corri com eles a avenida florida, primaveril, num viver despreocupado de almas pequeninas! E quantas, pela madrugadea, eu os sentia já vagueantes, acordados ao toque da alvorada do Quartel e à hora do almoço, dia após dia, de volta da Escola os encontrava à porta da parada metidos na bicha intérmina (uma fila heterogénea de corpos lassos, homens, mulheres, crianças) cada um com a sua lata ou panela a mendigar as sobras do rancho!
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E foi assim que a noite cheia de luar me tirou o terror todos e o primeiro anseio de solidariedade nasceu em mim naquele transe. Procurei na arca uma bolsa de chita onde meti uns nacos de pão e um bocado de toucinho também. E juntei, ainda quentes, filhós e azevias.
Fugi a porta fora com o asssentimento comovido de meu pai, de minha mãe, e o pasmo de meus irmãos, e, banhado de luar, sem medo (que o tocar lúgubre da corneta do sereno nem nessa noite se ouviria) tomei, rua abaixo, o rumo do recanto onde pernoitavam os “Musas”.

Lembro-me ainda das janelas iluminadas da casa do vizinho em frente, onde viviam duas donzelas bonitas (Oh! As coisas impuras que desencantam!: Mais tarde vim a saber como a corrupção minava a face folgazã daquele homem abominável), e de um romântico enamorado, de fato negro, encostado à parede, cor de cera, héctico, morrendo aos poucos com pulmões lacerados, a olhar a namorada também héctica, lá, muito alta, inacessível.

Na cidade, muitas luzinhas em emulação pálida com as estrelas e, ao cimo, a ermida de S. Cristóvão e o pinheiro esguio furando para o céu, persistente, como uma prece estéril.

Ao dobrar da esquina havia um recôncavo na parede da igreja e ali estavam os meus amigos abraçados uma ao outro, gelados, num choro monocórdico, cobertos com sacos esfarrapados por onde espreitavam as estrelas.
E eu sentei-me no chão frio, comendo com eles o que levava na minha bolsa.
Ainda sinto, a tantos anos de distância, o sabor daquele pão comido com os “Musas” sob o Céu mágico dessa noite de Natal.
Por isso, este, porque outros “Musas” sempre vivem, deu-me desde esses tempos distantes uma atitude de recolhimento e de amargo inconformismo."

(in semanário “A Rabeca", nº 1413-1414, de 25 de Dezembro de 1946, pp. 3 e 8)

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