Vivia também, mesmo ao lado da nossa casa, um velho senhor, o lavrador da Mesquita, a quem chamavam “o valete de paus”, que me metia medo.
Era um homem magro, muito moreno, empertigado, com um pescoço esquelético a sair da gola da camisa branca, que parecia faiscar a meio do colete preto com alamares brilhantes e das calças negras de onde saíam umas pernas fininhas entaladas nas botas.
Usava um chapéu também negro, cortado a direito, como vira em certos cavaleiros nas touradas. Tinha uns bigodes brancos e esticados na cara severa, e uma varinha na mão.
Chegava a cavalo, ou guiando um carro. Quando estavam as janelas abertas, ouvia o barulho dos cascos e das rodas desde o fundo da rua, mas muitas vezes só dava por ele quando já estava abrir o portão verde-garrafa que dava para um quintal enorme com laranjeiras e limoeiros, que ficava mesmo detrás da minha casa.
Chegava a cavalo, ou guiando um carro. Quando estavam as janelas abertas, ouvia o barulho dos cascos e das rodas desde o fundo da rua, mas muitas vezes só dava por ele quando já estava abrir o portão verde-garrafa que dava para um quintal enorme com laranjeiras e limoeiros, que ficava mesmo detrás da minha casa.
Via-o da janela do quarto dos meus pais, no primeiro andar, e da janela da cozinha, lá em cima. A casa, ao fundo, parecia-me sempre vazia, com as portadas de madeira fechadas e não me lembro de lá ver ninguém. Só o cavaleiro vestido de negro...
Às vezes, ouvia na cozinha conversas sobre ele, diziam que tinha “amigas” na cidade e que a mulher era infeliz e preferia estar na herdade. Eu não conseguia perceber por que razão a mulher não gostava das amigas dele.
"É tão bom ter amigas"..., pensava. Mas havia qualquer coisa de misterioso e sombrio naquela personagem e nas suas aparições, e sei que não gostava dele.
Quando começavam os dias de Inverno, passava à porta o homem do picão com uns sacos enfarruscados, no dorso de um burro cinzento de olhos doces. Atrás, vinha a mulher com um molho de carqueja às costas sobre uma serapilheira, apoiando-se num pau que lhe servia de bengala.
Eram muito velhos e muito pobres. Custava-lhes a subir a rua inclinada. Ele ia repetindo um grito, de tempos a tempos, um pregão monótono e fraco, enquanto passavam:
Quando começavam os dias de Inverno, passava à porta o homem do picão com uns sacos enfarruscados, no dorso de um burro cinzento de olhos doces. Atrás, vinha a mulher com um molho de carqueja às costas sobre uma serapilheira, apoiando-se num pau que lhe servia de bengala.
Eram muito velhos e muito pobres. Custava-lhes a subir a rua inclinada. Ele ia repetindo um grito, de tempos a tempos, um pregão monótono e fraco, enquanto passavam:
- “Quem merc’ o picão?!”
Descia cá abaixo com a Florinda a comprar o picão para acender a braseira, e uns raminhos de carqueja que cheiravam às giestas e urzes da serra. Sei que se usavam par pôr no coelho manso, para lhe dar um gosto bravio...
Descia cá abaixo com a Florinda a comprar o picão para acender a braseira, e uns raminhos de carqueja que cheiravam às giestas e urzes da serra. Sei que se usavam par pôr no coelho manso, para lhe dar um gosto bravio...
Ficava a espreitar, a vê-los, cheia de pena e escondida atrás da Florinda, sentindo-me protegida de tudo ao lado dela.
Lembro-me da cara enrugada que ele tinha, suja do carvão, e dos olhos vermelhos a lacrimejar, do sorriso sem dentes.
Vinha a nossa casa, por essa altura, a senhora Leonilde que trazia as perdizes ao meu pai, na época do defeso.
Vinha a nossa casa, por essa altura, a senhora Leonilde que trazia as perdizes ao meu pai, na época do defeso.
O meu pai comia quase sempre sem apetite, mas gostava muito de ovos de todas as maneiras, e de perdizes...
O marido dela era caçador furtivo, para mim uma personagem estranha que imaginava, no meio do nevoeiro, com a espingarda ao ombro, ou apontada a uma lebre e fazendo quebrar de repente o voo rápido das perdizes.
Ouvia o bater de asas flébil, a queda, que me comoviam sem ver.
Não o conheci, nem nunca o vi com ela.
Ela chegava embrulhada num xale preto que cheirava a chuva, a fumo de lareira e a campo e que lhe cobria a cabeça e o corpo.
Tinha um riso desagradável, rouco, que me parecia falso e não gostava de a encontrar quando subia as escadas.
Pensava sempre que, debaixo do xale, escondia as perdizes mortas, que, depois de ela se ir embora, via em cima da mesa da cozinha, com as patinhas vermelhas pousadas em cruz, ou algum coelho pequeno com as orelhas caídas e o pêlo suave que tinha vontade de acariciar e não era capaz.
Fugia à frente dela, sem a querer ouvir, quando me falava.
Também ela me assustava.
Lembrava-me do voo das perdizes, ali, agora, de olhos fechados, que ela trazia mortas.
Lembrava-me do voo das perdizes, ali, agora, de olhos fechados, que ela trazia mortas.
São estas histórias, guardadas na memória das nossas vivências, e que a Maria João tão bem sabe contar, que tornam deliciosas as recordações dos nossos tempo de juventude...
ResponderEliminarÉ que em todas as famílias, ou histórias de famílias, há sempre um xaile a cheirar a fumo e a campo, e um sorriso desconfiado feito de dentes em falta, mal tratados...