"Os Olhos de Jade", de M. J. Falcão
Revia os espaços de África, o verde infindável da floresta na bruma, o mar dum azul sempre vivo, a chuva a bater no telhado da casa, as torrentes de lama vermelha descendo a rua na estação das chuvas. O jardim tropical e os frutos que lhe pareciam de todas as cores do mundo...
Falava alto, sem dar por isso. Sacudia a cabeça mas as imagens não o largavam. Via os pais e a irmã no jeep atolado. Eles, miúdos, com o o Zurigo e o pai, a tentarem tirá-lo da lama, pondo enormes folhas de palmeira secas e duras, que lhes picavam as mãos, debaixo das rodas.
-“O que é que eu vou fazer? Morreste, mãe, e a vida parou... Estamos separados para sempre? Calo-me. Como posso calar-me?! Aceitei já a tua morte?”
Sentia uma angústia enorme. Tinham-lhe vindo à memória uns versos de Hanoch Levin, que a mãe gostava de declamar:
“Aceitar a morte?
-“Sem me revoltar? Em silêncio, mãe?"
Ia recordando os versos:
“Silent…meaning you did not rise,
-“Como posso deixar-te ir embora, sem protestar? Cada um para seu lado, como na poesia?. Separados para sempre... E recomeçar tudo do princípio... mas sem ti. Mais sozinho, o vazio à volta..."
Com uma das mãos tentava arrumar os cabelos despenteados pelo vento e pela maresia, segurando o cigarro apagado na outra.
-“Parece mais frio que em Amesterdão! Ou será ideia minha? Será do cinzento do céu? Ou porque estou gelado dentro?...”
A costa aproximava-se, o movimento dos viajantes começara, ouviam-se vozes, os motores a aquecer. Dirigiu-se para o carro, sentou-se e ficou a olhar para o mar, à espera. Lembrava a irmã.
- “Pobre Joan, imagino o estado em que está...”
Recordava tudo. Soubera da morte da mãe pelo telefone. Joan chamara-o de Abidjan.
-“Michael querido, vou dar-te um desgosto enorme. Desculpa, tenho de ser eu a dizer-te, só eu é que posso... Uma coisa horrível...”
A voz dela suspendeu-se, por um instante, depois ouvira-a respirar fundo e dizer num arranque:
-“A mãe morreu...”
-“A mãe? Estás doida?!”
-“Morreu...”
-“Não é possível a mãe morrer”, pensara...
-“Foi há três dias. Só soube agora, telefonou-me o Gabriel. Já marquei o voo, parto amanhã à noite.”
Ele calara-se. Como se o coração lhe tivesse parado. Não conseguia perceber o que ela dissera.
-“Imaginação?! Pesadelo?”
Era um sonho aquela conversa. Um pesadelo do qual iria acordar...
-“Joan, Joan, por favor, não chores...”
-“Michael, não sei o que hei-de fazer. Tu vais ter comigo?”
-“Vou o mais depressa que puder. O Peter vai contigo?”
-“Não, tem estado a trabalhar fora de Abidjan.
-“Como foi?! Como é possível que a mãe esteja morta? Não estava doente, não tinha nada!”
-“Não sei os pormenores. Sei que foi de repente, disse-me o Gabriel, e confesso que nem quis ouvir mais... Telefono-te de Brighton, sim? Vou precisar da tua força, Michael. Ajuda-me, por favor!”
Mais tarde, de Brighton, voltara a telefonar-lhe.
-“Ouve, Michael, tudo isto é muito esquisito. Dizem que foi paludismo, mas eu não acredito, não pode ter sido. Há coisas que me parecem estranhas... Sabes o que eu penso?
O barco abria-se como o ventre de um animal gigantesco. O mar cinzento agitava-se, violento, as ondas batiam com força no casco.
-“O Jonas devia sentir-se assim a sair de dentro da baleia...”
Tentava ironizar, mas sentia o rosto esticado no esforço de conter as lágrimas que com a água salgada lhe ardiam nos olhos e na pele.
E ali estava, quase a chegar a casa. De Newhaven seguira a estrada junto ao mar.
Em menos de meia hora estaria em Brighton e dali a Arundel era pouco. A casa ficava antes de Arundel.
Olhava a paisagem, via de um lado o mar, do outro as doces colinas dos Downs e lembrava os tempos em que fora feliz ali.
O que o aguardava? Qual o mistério que envolvera a morte da mãe? Ignorava. Sabia que Joan estava sozinha e precisava dele.
CAPÍTULO 9
No ferry que se aproxima de Newhaven, a sul da costa inglesa, um homem novo está encostado à amurada. Fuma nervosamente, enquanto olha o horizonte aproximar-se.
No ferry que se aproxima de Newhaven, a sul da costa inglesa, um homem novo está encostado à amurada. Fuma nervosamente, enquanto olha o horizonte aproximar-se.
Alto, tem os cabelos ruivos, os olhos castanhos, e as olheiras fundas de quem não dorme há muito tempo.
-Que pesadelo!..., diz em voz baixa.
E continua, a pensar:
-“Como é possível voltar a casa e saber que está morta? Que não a posso ver... As ilhas dão-me azar. Da última vez, na minha ilha de África, perdi o meu pai, a minha infância...tudo desapareceu num momento... Agora, aproximo-me da minha terra, outra ilha, e vou encontrar a morte da minha mãe...”
-Que pesadelo!..., diz em voz baixa.
E continua, a pensar:
-“Como é possível voltar a casa e saber que está morta? Que não a posso ver... As ilhas dão-me azar. Da última vez, na minha ilha de África, perdi o meu pai, a minha infância...tudo desapareceu num momento... Agora, aproximo-me da minha terra, outra ilha, e vou encontrar a morte da minha mãe...”
Revia os espaços de África, o verde infindável da floresta na bruma, o mar dum azul sempre vivo, a chuva a bater no telhado da casa, as torrentes de lama vermelha descendo a rua na estação das chuvas. O jardim tropical e os frutos que lhe pareciam de todas as cores do mundo...
E a imagem da mãe, no seu vestido branco com papoilas, a segurar o chapéu de palha com uma das mãos, e as fitas vermelhas caídas atrás sobre os cabelos ruivos, os olhos azuis a brilhar, divertidos, parecia flutuar na frente dele, sobre as águas.
-Meu Deus! Como foi possível!? Ela não devia morrer!
-Meu Deus! Como foi possível!? Ela não devia morrer!
Falava alto, sem dar por isso. Sacudia a cabeça mas as imagens não o largavam. Via os pais e a irmã no jeep atolado. Eles, miúdos, com o o Zurigo e o pai, a tentarem tirá-lo da lama, pondo enormes folhas de palmeira secas e duras, que lhes picavam as mãos, debaixo das rodas.
A mãe, agarrada ao volante, a rir-se. Depois, o fim desse mundo maravilhoso de espaços abertos, o corte tremendo e doloroso, a chegada à cinzenta Inglaterra onde nunca mais se sentira em casa. O fim da infância. Sem o pai...
-“O que é que eu vou fazer? Morreste, mãe, e a vida parou... Estamos separados para sempre? Calo-me. Como posso calar-me?! Aceitei já a tua morte?”
Sentia uma angústia enorme. Tinham-lhe vindo à memória uns versos de Hanoch Levin, que a mãe gostava de declamar:
“Aceitar a morte?
sem gritos, sem protestos”?...
-“Sem me revoltar? Em silêncio, mãe?"
Sentia-se melhor, a protestar, a falar com ela...
- "Tinhas razão quando dizias que um dia iria aceitar a tua morte em silêncio...
-“Inelutável...”, lembrava-se de a ouvir dizer há tanto tempo.
- "E nunca mais nos vemos?", perguntava ele, ainda miúdo, revoltado, assustado.
- ...“Fica só o pensamento, a lembrança, mais nada...”
Ia recordando os versos:
“Silent…meaning you did not rise,
did not rebel...
meaning you go this way,
I go that...”
-“Como posso deixar-te ir embora, sem protestar? Cada um para seu lado, como na poesia?. Separados para sempre... E recomeçar tudo do princípio... mas sem ti. Mais sozinho, o vazio à volta..."
Com uma das mãos tentava arrumar os cabelos despenteados pelo vento e pela maresia, segurando o cigarro apagado na outra.
Gritou, sem se dar conta:
-Não quero!
Encolheu-se dentro do duffle-coat, arrepiado, na solidão da manhã.
-Não quero!
Encolheu-se dentro do duffle-coat, arrepiado, na solidão da manhã.
-“Parece mais frio que em Amesterdão! Ou será ideia minha? Será do cinzento do céu? Ou porque estou gelado dentro?...”
A costa aproximava-se, o movimento dos viajantes começara, ouviam-se vozes, os motores a aquecer. Dirigiu-se para o carro, sentou-se e ficou a olhar para o mar, à espera. Lembrava a irmã.
- “Pobre Joan, imagino o estado em que está...”
Recordava tudo. Soubera da morte da mãe pelo telefone. Joan chamara-o de Abidjan.
-“Michael querido, vou dar-te um desgosto enorme. Desculpa, tenho de ser eu a dizer-te, só eu é que posso... Uma coisa horrível...”
A voz dela suspendeu-se, por um instante, depois ouvira-a respirar fundo e dizer num arranque:
-“A mãe morreu...”
-“A mãe? Estás doida?!”
-“Morreu...”
-“Não é possível a mãe morrer”, pensara...
-“Foi há três dias. Só soube agora, telefonou-me o Gabriel. Já marquei o voo, parto amanhã à noite.”
Ele calara-se. Como se o coração lhe tivesse parado. Não conseguia perceber o que ela dissera.
-“Imaginação?! Pesadelo?”
Era um sonho aquela conversa. Um pesadelo do qual iria acordar...
"Não era possível!"
-“Michael, ouves-me?... “
-“Sim, ouço...”
-“Michael, ouves-me?... “
-“Sim, ouço...”
Esforçava-se por articular os sons.
-“E não dizes nada?! Protesta, meu Deus!”
-“Não quero acreditar, não posso...
-“E não dizes nada?! Protesta, meu Deus!”
-“Não quero acreditar, não posso...
- "Michael!
-"Estou aqui, querida Joan! Ouço-te! Custa-me a acreditar... Dizes que a mãe morreu... Como?
A voz soava metálica, como se não fosse ele a falar. De repente percebeu que ela começara a soluçar, primeiro devagarinho, depois convulsivamente, sem conseguir parar.
A voz soava metálica, como se não fosse ele a falar. De repente percebeu que ela começara a soluçar, primeiro devagarinho, depois convulsivamente, sem conseguir parar.
-“Joan, Joan, por favor, não chores...”
-“Michael, não sei o que hei-de fazer. Tu vais ter comigo?”
-“Vou o mais depressa que puder. O Peter vai contigo?”
-“Não, tem estado a trabalhar fora de Abidjan.
Hesitou e disse:
- "Sabes, acho que certas situações temos que as viver sozinhos...
Engolia os soluços, queria mostrar-se forte, como sempre procurara ser.
Engolia os soluços, queria mostrar-se forte, como sempre procurara ser.
-“És uma tipa dura”, gostava de dizer a mãe, a brincar.
Mas agora era tão difícil ser forte...
-“Como foi?! Como é possível que a mãe esteja morta? Não estava doente, não tinha nada!”
-“Não sei os pormenores. Sei que foi de repente, disse-me o Gabriel, e confesso que nem quis ouvir mais... Telefono-te de Brighton, sim? Vou precisar da tua força, Michael. Ajuda-me, por favor!”
-“Eu vou depressa ter contigo, Joan!”
Mais tarde, de Brighton, voltara a telefonar-lhe.
-“Ouve, Michael, tudo isto é muito esquisito. Dizem que foi paludismo, mas eu não acredito, não pode ter sido. Há coisas que me parecem estranhas... Sabes o que eu penso?
- Não...
- Que foi envenenada! Não sei porquê, nem sei quem foi...
-“Mas isso é um absurdo! Porquê a mãe?”
-“Não sei. Tenho as minhas razões... A mãe tinha-me escrito, estava assustada. Havia alguém que a quis matar, e conseguiu!”
- “Escreveu-te a dizer o quê?!”
- “Deixa, depois falamos. Tens que dizer que acreditas no que te estou a dizer!
-“Mas isso é um absurdo! Porquê a mãe?”
-“Não sei. Tenho as minhas razões... A mãe tinha-me escrito, estava assustada. Havia alguém que a quis matar, e conseguiu!”
- “Escreveu-te a dizer o quê?!”
- “Deixa, depois falamos. Tens que dizer que acreditas no que te estou a dizer!
- "Sim, acredito...
- "Oh! Michael, vem depressa!”
- “Vou, sim, Joan, tem calma... Espero estar aí o mais tardar no fim da semana.”
- “Vou, sim, Joan, tem calma... Espero estar aí o mais tardar no fim da semana.”
O barco abria-se como o ventre de um animal gigantesco. O mar cinzento agitava-se, violento, as ondas batiam com força no casco.
-“O Jonas devia sentir-se assim a sair de dentro da baleia...”
Tentava ironizar, mas sentia o rosto esticado no esforço de conter as lágrimas que com a água salgada lhe ardiam nos olhos e na pele.
E ali estava, quase a chegar a casa. De Newhaven seguira a estrada junto ao mar.
Em menos de meia hora estaria em Brighton e dali a Arundel era pouco. A casa ficava antes de Arundel.
Olhava a paisagem, via de um lado o mar, do outro as doces colinas dos Downs e lembrava os tempos em que fora feliz ali.
O que o aguardava? Qual o mistério que envolvera a morte da mãe? Ignorava. Sabia que Joan estava sozinha e precisava dele.
E o meu marido que é fã do Corto Maltese! :)))
ResponderEliminarE mais um interessante pedaço de «Olhos de Jade»! :)
Ainda bem que me vai lendo, fico muito contente!Anima-me...
ResponderEliminarO Corto Maltese é um velho conhecimento cá da casa, não sei se fui eu que o "passei" aos meus filhos, se eles a mim...
O Hugo Pratt é fantástico!
Beijosssss