A tarde caía e via as luzes da casa acesas. À entrada do jardim, buzinou várias vezes.
Joan veio lá de dentro, a correr, ofegante:
- Michael! Michael!
Ele saiu do carro e abraçaram-se com força, comovidos. Joan tremia. A expectativa acabara. Não ia continuar a lutar sozinha, o irmão ia ajudá-la.
- Oh! Joan!
- Que bom é olhar para ti, saber que estás aqui. Só de te ver sinto-me melhor...
- Minha querida Joan! Tens um ar tão cansado! A eterna voluntarista, a querer ser a mais forte!
- Estás esgotada! Conheço-te...Não podes aguentar tudo.
Olhava-a com ternura e voltou a abraçá-la com força. Beliscou-lhe a face.
Joan sorriu-lhe, triste.
- A Helen esteve cá ontem. Agora chegaste tu!
- Estamos aqui os dois. Não te deixo sozinha. Sei o que pensas, o que sofres...
- Michael! Quem pôde fazer isto, Michael? A mãe não merecia...
- Vamos descobrir, Joan! Não a faz voltar à vida, eu sei...
Hesitou e continuou:
- Mas será vingada!
- Sim...
- Não é a vingança em si que interessa, tu sabes, mas quero que sejam castigados os culpados, isso quero!
- Tenho saudades dela, faz-me falta. Tudo era fácil mesmo vivendo lá longe, quando sabia que ela estava aqui à espera. Nenhum mal me podia acontecer!
-Eu sei...
-É horrível! Prometes que vamos encontrar o assassino? Quando tu prometias, eu acreditava...
Sentiu-a tão frágil que lhe disse logo:
- Prometo que vamos saber o que aconteceu, e quem foi! Prometo que hei-de conseguir!
Olhou para ela, com um ar sério e acrescentou:
- Não vai ficar um centímetro nesta terra que eu não mexa, nem um bocadinho dentro desta casa que eu nãoveja! Hei-de descobrir. Juro!
Levantou a mão aberta, depois pousou-lhe devagar os dedos na face molhada.
-É muito doloroso, Michael.
-Não chores, Joan, a mãe era forte. Queria que fôssemos fortes, mesmo nesta situação. E temos que fazer isso por ela...
-Mas eu quero chorar! Não aguento mais este peso, preciso de chorar!
Encostou-se ao ombro de Michael, a soluçar como quando era criança. Ele pôs-lhe o braço à volta, com ternura:
-Está bem, chora, Joan, eu percebo...Temos muito que falar.
-Ando nervosíssima! Vejo coisas que não existem, oiço barulhos de passos. Será só a minha imaginação? Precisava tanto que viesses, precisava do teu apoio...
-Estou aqui! Mas vamos para dentro. Está frio...
- Tens razão...
- Vou buscar as malas. Vai entrando em casa.
E empurrou-a devagarinho. Joan virou-se para ele, à porta.
- Queres um chá bem quente? Queres? De certeza que estás gelado!
- Quero, claro que quero!
Voltou ao carro e tirou as malas. Fechou o porta-bagagens e ficou a olhar em volta com as malas na mão. Era a casa e o jardim da sua adolescência. A casa de tijolos vermelhos, as janelas de guilhotina com pequenos vidros quadrados, a trepadeira de glicínias que subia até ao telhado, junto da porta pintada de branco. Lembrava-se de a ver, no fim da Primavera, cheia de flores entre o azul e o lilás, perfumadas, e, depois, com folhas pequeninas de um verde aveludado, vivo. Conhecia todos os recantos da casa, da cave ao sótão. Ergueu os olhos para o telhado, desviou-os para a varanda do quarto, viu o parapeito onde se empoleirava para espreitar o que se passava do outro lado da sebe. Os campos verdes e as estradas que serpenteavam no meio das árvores.
As recordações vinham umas atrás das outras.
Ficara a viver só com a mãe e com o Gabriel, muito cedo. Joan entrara numa boarding school em Londres, nem sempre vinha aos fins de semana.
Quando voltava, trazia consigo os protestos de sempre, rebelde e provocadora, tentando zangar-se com Gabriel.
Revia-a na farda do colégio, com o blaser cor de beringela e a saia cinzenta, a camisa branca sempre impecavelmente engomada, primeiro de soquetes brancos e mocassins pretos, mais tarde, com meias de seda e sapatos de verniz com um pouco de salto.
Sorriu, a lembrar-se dela. Uma vez, no Natal, chegara e olhara receosa para a mãe. Furara as orelhas e tinha umas argolinhas douradas que se agitavam a cada movimento. A mãe sorrira e fora buscar-lhe uns brincos pequeninos, com safiras.
Continuara a viver por ali, pela casa, a procurar encher a sua solidão inventando brincadeiras e aventuras. Frequentava uma escola em Brighton, ia na camioneta do colégio, que o vinha buscar e trazer, criara amigos. Era muito miúdo, adaptara-se, mas Joan fazia-lhe sempre falta.
Ouviu a voz dela, a chamá-lo.
- Michael, perdeste-te? O chá arrefece!
Veio ter com ele, observando-o, com atenção.
- Desculpa, perdi-me a olhar para o jardim e estava a lembrar-me de nós todos, aqui. Nunca mais vai ser a mesma coisa. Pensamos sempre que temos o tempo todo à nossa frente, que nada vai mudar e não o aproveitamos. Acho que nem o vivemos como devíamos...
-É verdade. Tu eras o “beduíno”, lembras-te? Beduíno! Nunca mais ninguém te vai chamar assim...
Disse, preocupada:
-Estás magro, Michael! Não tomas conta de ti! Se calhar não comes bem...
Voltava a ser a irmã mais velha.
- Às vezes não tenho tempo, nem paciência. Como qualquer coisa, feita a correr.
- Tens que arranjar alguém! Tens que te apaixonar... Não se pode viver assim! És um lobo solitário.
- Arranjar alguém? Complicado como sou? E exigente... Só uma estrela!
- Brincas, mas não se pode viver tão isolado!
- Tenho amigos, bons amigos...
- Mas eles têm namoradas com certeza.
- Nem todos. E depois isso não importa. Estou vivo!
- Preocupas-me!
- Não te preocupes, minha querida... Eu podia sobreviver até no deserto!
Voltou a olhar em redor.
- O que eu adorava esta casa... Nos últimos tempos, quando voltava, era tudo extraordinário, outra vez. A mãe estava à espera e parecia que o tempo não passava, nem para ela nem para mim... Sentias isso também?
- Sim! Tudo voltava a ser igual: a frescura dela, a alegria, a facilidade enorme que tinha de nos pôr à vontade, nos fazer falar de nós, dos nossos problemas, sem insistir, sem perguntar...
Pensativa, abanou a cabeça.
- Nunca percebi como o fazia. E eu falava, falava...
- Queria facilitar-nos a vida pondo-nos a falar?
- Acho que sim...
- Nunca se substituía a nós, queria que fôssemos nós a pensar, a interrogar a vida, a analisar o que se passava dentro de nós e à nossa volta...
- Sim, Michael. E a saber escolher o que era verdadeiramente importante.
- Creio que nos queria preparar para a vida.
Voltou a olhar em volta:
- Era um mundo encantado...
- Ó Michael! Nada volta para trás. Acabou esse mundo encantado...
Ele pôs-lhe o braço no ombro e entraram em casa.
NOTA:
Escolhi estes quadros do pintor russo Alexei Kondratyevic Savrasov que pintou magníficas paisagens (24 de maio de 1830- 8 de Outubro de 1897) de enorme lirismo.
A paisagem de Outono é de Van Gogh