sábado, 23 de julho de 2011

Uma história em São João dos Angolares


São Tomé e a Praia Perigosa (foto tirada do blog "sobre a linha do equador")São Tomé, o Água Grande e a Marginal
Quando vivia em São Tomé, íamos muitas vezes a São João dos Angolares que ficava ao Sul da ilha.

Era um belo passeio, muito agradável sobretudo na Gravana, quando o tempo refrescava um pouco e as chuvas paravam.

Durava três curtos meses, nas minhas contas, às vezes chegávamos aos quatro...
barcos e redes na praia Melão

O vento varria as praias, os coqueiros mostravam os troncos descascados, os canaviais secavam. Os caroceiros tinham então enormes folhas vermelhas, douradas e por vezes roxas e à beira-mar na vegetação havia um tom amarelado, que era bonito.
praias em direcção a Sul, durante a Gravana

A luz também era outra, no meu jardim: mais dourada, mais nítida, sem a brumazinha dos dias de chuva.

Era a altura em que o paludismo acalmava porque os mosquitos não tendo águas paradas para se esconder e reproduzir, morriam.

Mas era também a altura em que os são tomenses adoeciam com tosse, se constipavam, tinham frio e se sentiam desconfortáveis, fracos e sem forças.

o meu quintal e a luz dourada da Gravana


Quantas vezes tive de dar xarope ao senhor Semedo, ou à Dáy e pôr gotas nos ouvidos ao Nini!


No entanto, para nós, europeus, a Gravana era um bem de Deus!

Lembro de o senhor Semedo me ter dito quando cheguei:
- A Gravana são três meses e pouco, dôtôra.

E explicava, muito atento às palavras:
- A dôtôra conta os meses que não têm “r” e, assim, é mais fácil. Temos Maio, Junho, Julho e Agosto!

Nunca cheguei a contar nem a perceber quanto durava de facto a Gravana. As contas nunca deram certas... E vivi lá cinco anos.
Ali tudo era aproximativo. Havia a hora “calculada” (a olho...) e a “hora de relógio”, aquela que se respeitava.

Quando se perguntava pela vida, pelo dia, pela saúde a resposta era sempre a mesma: “mais ou menos”, “lévi-lévi”, “móli-móli” ou o vago “normal”, nunca uma afirmação clara ou definitiva, ou sequer “explicativa”, ficava tudo no indeciso, no “lévi-lévi” sempre.No mercado não havia pesos e tudo era vendido aos montinhos, dois dentes de alho, meia cebola, um papelinho com gindungo verde, um pouco de ossame.o mercadinho do Pantufo

Essas idas a Angolares eram divertidas, a paisagem era linda e aguentava-se bem porque a estrada era razoável.

Quando se continuava para baixo, em direcção a Ribeira Afonso e Ribeira Peixe, tudo piorava.E se seguíamos ainda mais para sul até Portalegre, isso constituía sério problema.as lindas praias do Sul, na zona de Portalegre


Era fácil “furar” uma ou mesmo duas vezes, nos caminhos escalavrados, mal aplainados, sem alcatrão, entre os pedregulhos e buracos que apareciam a seguir a uma curva quantas vezes!
Era aconselhável levar pelo menos dois - se não três- pneus sobresselentes. São Tomé é uma ilha vulcânica e as estradas eram muitas vezes de pedras negras e aceradas.

pôr do sol em Ribeira Peixe


Ou então eram ravinas onde a erosão das chuvadas frequentes fazia o seu trabalho de destruição. Entre pedras aguçadas e buracos um a seguir aos outros, era uma espécie de slalom constante.

Em São João, havia a casa do senhor Fernandinho, um verdadeiro refúgio. Uma casa de pasto, um restaurante, um sítio onde se podia parar para beber só uma cervejinha gelada e conversar. Ou almoçar bem.
O senhor Fernandinho era uma pessoa amável e generosa. Tinha ficado depois da independência porque o novo governo o apreciava e até lhe dera a roça onde tinha as suas culturas, o seu óleo de palma, a sua fruta, banana-pão e fruta-pão à vontade, para cozer ou grelhar ou fritar acompanhando o peixe grelhado que naquelas águas havia com fartura.

Servia-nos quase sempre um calulu, prato indefinível, com cheiro e gosto fora de tudo o que se comeu na vida!

Feito de peixe fumado, maquequê, gindungo verde, quiabo, erva mosquito, tantas ervas que apareciam ali pelos caminhos e eram usadas para dar mais gosto, havia o pau de ossame, eu sei lá que mais.O calulu é uma espécie de sopa preparada num caldeirão (sempre numa panela muito grande), engrossada com farinha, de cor verde e cheiro a fumo e a peixe...
Em nossa casa a Milly fazia frequentemente calulu, um calulu especial, bem melhor do que o do senhor Fernandinho ou de qualquer restaurante da ilha – dos poucos que lá havia.

Na casa do senhor Fernandinho havia mais coisas, sempre um franguinho picante com "arroz de substância", uma sopa de matabala com bocadinhos de aletria e de frango desfiado.E lá vinha a cerveja gelada que ele ia buscar às arcas frigoríficas que reinavam no meio da sala, tapadas com um pano africano.

Assim que abria a tampa, vinha o cheiro do peixe congelado, quilos e quilos de chernes gigantescos que chegavam a pesar 30 quilos e mais, cortados às postas de todos os tamanhos e prontos para cozinhar.

Era dali que o Nézò - que além de pintor era pescador- nos levava a casa peixes fresquíssimos, que eram logo escamados, cortados pelo senhor Semedo e arrumados na arca que lá tinha, pela Milly e pela Nina.

Numa dessas idas a Angolares, acompanhou-nos uma senhora que tinha vindo de Lisboa.
Era uma senhora forte, um pouco tímida, mas que falava muito e seguia, curiosa, toda a viagem, querendo saber tudo.
em cima: eu, à janela do senhor Fernandinho e em baixo com o Sr. Semedo e a filha dele


Da janela da casa do senhor Fernandinho via-se a bela Praia das Sete Ondas, com os coqueiros delicados e esguios, o mar, a miudagem a brincar à roda do jeep.

Alguns trepavam pelos coqueiros e deitavam ao chão côcos frescos que abriam com uma navalha e, logo, bebiam o líquido saboroso. Depois, já sentados à sombra, entretinham-se a comer a polpa tenra e branca do coco.Com saudade lembro quantas vezes o Sr. Semedo me ia arranjar côcos no nosso quintal. Ficavam guardados no frigorífico uns momentos, para o suco sair bem geladinho. Fazia um furo na casca e chupava-se por uma palhinha.

Ao longe, mais para a direita da janela, viam-se as montanhas recortadas suavemente em dois cumes.

A senhora olhava, à janela, ao meu lado, deslumbrada. A dada altura virou-se para trás e perguntou:

- Ó senhor Fernandinho, como se chamam aquelas montanhas?

O senhor Fernandinho olhou, baixou os olhos, com um ar atarefado, a mexer na geleira, e murmurou qualquer coisa.

A senhora insistiu:
- Ó senhor Fernandinho, diga-me lá o nome das montanhas. Têm um nome, não têm? Todas têm...

De facto, noutra viagem víramos o enorme pico a que chamavam “Cão Grande”.
o Cão Grande no blog "sobre a linha do equador"
Pareceu-me ouvir o Sr. Fernandinho dizer “mamas de D. Augusta”...- O quê, senhor Fernandinho?
Desta vez o senhor Fernandinho disse bem alto, um pouco impaciente e talvez envergonhado, perante a insistência da senhora:

- “Mamas de D. Augusta”!Foi a vez de a senhora baixar os olhos e voltar-se para a janela, dizendo apenas:- Ah...Só me lembro de me ir esconder num canto da janela para rir à vontade...
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dois blogs com belas fotos de São Tomé:

http://www.travel-images.com/sao-tome-principe8.html
http://nalinhadoequador.blogspot.com/2006/05/seleco-de-fotografias.html

3 comentários:

  1. Começo hoje uma perquisa sobre esses pratos, arroz de substância é o máximo. Bom ler essa história, muito bom ver as fotos. Povo bonito, simples e que ainda sofre muito com o impaludismo, o mosquito, ledum palustre. Lindo.

    bjs 5

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  2. Recordações que nos enchem o espírito.
    Um abraço!!

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  3. Estive em São Tomé, adorei. Penso que poderia ser Feliz ali, para Sempre!
    Gosto de Si e do seu blog.
    Completo!
    E gostava de conseguir acreditar em utopias...
    Bem haja, voltarei
    https://www.youtube.com/watch?v=EvDxSW8mzvU

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