SONATA APPASSIONATA...
Zinaida Serebriakova, pintora russa, e "Retrato de Ekaterina Zelenkova"
"Gabriel dirigiu-se à
estante, escolheu um disco.
-A tua mãe adorava esta
música. Conheces? A Appassionata,
de Beethoven, tocada pelo Rubinstein. Foi o último recital dele, dedicado a
Israel.
Olhou para ela, quase a
medo.
- Ouvia esta sonata
vezes sem fim. E eu ouço-a agora. É o que me resta...
-Mas porquê esta
gravação?
-É um óptimo executante,
dos melgores mesmo! É uma gravação perfeita.
Gabriel sentara-se.
Começou a falar devagar, fixando para as chamas da lareira.
-Perguntas se eu gostava
dela. Da Abigail? Acho que a adorava mesmo.
Levantou os olhos para
Joan:
- Appassionata. Ouço o disco
constantemente e penso nela. Vibrante, cheia de paixão em tudo. A mulher mais
interessante que conheci na vida! A melhor amiga, a que me protegia e me
ajudava. A nossa relação era feita de respeito, cumplicidade, amizade. Podia
contar com ela. Sabes o que isso significa para uma pessoa como eu?
-Como tu? Por quê? És uma pessoa como as outras.
-Como tu? Por quê? És uma pessoa como as outras.
-Com as minhas
fragilidades?
- Todos temos as nossas
fragilidades...
Sem a ouvir, Gabriel
continuou:
- Ela era a minha
segurança, o meu apoio...
Riu, amargamente. O tom
tornara-se frio:
-A maior parte das
pessoas só liga a isso. Às aparências. E ela tinha casado comigo...
- Gabriel, tu és um
artista, uma pessoa boa!
Continuou, a olhar para
a lareira, pensativo.
- O que os outros são
por dentro, a verdade deles, não lhes interessa, nem a querem ver. Se
reparares, toda a gente fala, fala...
- É verdade...
- A hipocrisia...Todos
querem é ouvir-se e ser ouvidos, falar de si, dos seus problemas, das suas
dúvidas. O ego de cada um alarga-se para todos os lados. O “outro” não
existe...
E acrescentou, num tom
triste:
-Ou só para dizer mal,
para magoar...
Joan protestou:
-Para que serve isso
agora? “Palavras, palavras, palavras”... Claro que tudo é egoísmo! Também sou
uma céptica, não és só tu. Até amar é egoísmo!
Gabriel olhava-a surpreendido
com a veemência do tom.
- Sim! É egoísmo puro! Uma
forma de termos poder sobre o outro. A absorção total do outro dentro de nós,
abafando-o bem cá dentro, com medo que ele fuja e nos deixe mais sozinhos...
Parou, baixou os olhos e
continuou:
-O que é o ciúme? Isso.
Claro que o outro não existe! Existimos nós! Para que há-de querer respirar?
Não lhe damos o nosso ar? O ar a que achamos que ele tem direito.
Olhou para ele:
- É difícil amar, não é?
Gabriel sorria agora. Joan
estendeu-lhe a mão e disse, suavemente:
-Desculpa,
interrompi-te!
Gabriel, como se
retomasse o raciocínio anterior, disse:
-É isso... Poucas
pessoas sabem ouvir, ou interessar-se pelos problemas dos outros! Mas a tua mãe
ouvia.
Parecia comovido.
-Ouvia. Reservada,
discreta, silenciosa... A sua presença acalmava e bastava uma palavra dela para
te sentires bem. Não falava muito de si, não porque se escondesse, não. Era
antes uma forma de pudor, não sei explicar. Como se isso não fosse o mais
importante...
-Eu sei isso muito bem,
Gabriel. A mãe ouvia tudo o que dizíamos...
-Esquecia-se de si, calava-se. “A superioridade aristocrática do silêncio”, de que falava um escritor que li há pouco tempo.
-Esquecia-se de si, calava-se. “A superioridade aristocrática do silêncio”, de que falava um escritor que li há pouco tempo.
Sacudiu a cabeça:
Sim, ela tinha essa
superioridade! Deu-me tanto. E perguntas-me se a amava...
-Assassinaram-na,
Gabriel, e tu deixaste!
-Não, não acredito!
Gabriel levantara a voz,
gritava. Depois, falou-lhe num tom suave, para a acalmar:
-Se o que dizes é
verdade, como é que eu o podia evitar? Não me culpes...
Falava, sem saber o que dizer, como se fosse descobrindo o que pensava.
-Não me dei conta de nada. Assassinada, mas por quê? Não se mata sem um motivo, não achas?
Falava, sem saber o que dizer, como se fosse descobrindo o que pensava.
-Não me dei conta de nada. Assassinada, mas por quê? Não se mata sem um motivo, não achas?
-É isso que temos que
descobrir! Lembrar tudo...
Ele encolheu os ombros,
desanimado.
-Como queres que me lembre? Como posso saber o que é importante
recordar? É absurdo...
Joan passou a mão pelos olhos, abanou a cabeça e suspirou:
-Tens razão, é absurdo... Nada disto tem sentido.
-Tens razão, é absurdo... Nada disto tem sentido.
Calou-se. Parecia ouvir a música pela primeira vez. Virando-se
para ele, exclamou:
-É linda esta música, Gabriel. Faz impressão pensar que está
morta, magoa tanto..."
Zinaida Serebriakova, "Auto-retrato" (1922)
Reconheci quando comecei a ler.
ResponderEliminarÉ uma história excelente.
A primeira pintura é muito bonita.
Um beijinho grande. Boa noite.
Quando "escreves com as tripas" consegues páginas brilhantes. É pena que não te deixes levar e ponhas a tua vidas em ordem...
ResponderEliminar"Todos querem ouvir-se e ser ouvidos", realmente achas que somos assim todos? Eu penso que há pessoas que não se calam porque há outras dispostas a prestar-lhes atenção. Prefiro as segundas, mas acho que in medium virtus est, como sempre: nenhum ego, que temos todos, se deve "alargar para todos os lados", como os braços dum polvo...
Um beijinho muito grande das tua amiga María
Tu compreendes tudo porque és tu. Claro que nem todos se querem ouvir e ser ouvidos: "non tutti,ma buona parte!" E o tal ego quer queiramos quer não, temos, e é sinal de que existimos! Não podemos é ...exagerar! beijinhos e thanks, my dear!
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