quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Beethoven e "Appassionata" (excertos, tocados por Khatia Buniatishvili)


SONATA APPASSIONATA...
Zinaida Serebriakova, pintora russa, e "Retrato de Ekaterina Zelenkova"

"Gabriel dirigiu-se à estante, escolheu um disco.
-A tua mãe adorava esta música. Conheces? A Appassionata, de Beethoven, tocada pelo Rubinstein. Foi o último recital dele, dedicado a Israel.
Olhou para ela, quase a medo.
- Ouvia esta sonata vezes sem fim. E eu ouço-a agora. É o que me resta...
-Mas porquê esta gravação?
-É um óptimo executante, dos melgores mesmo! É uma gravação perfeita.
Gabriel sentara-se. Começou a falar devagar, fixando para as chamas da lareira.
-Perguntas se eu gostava dela. Da Abigail? Acho que a adorava mesmo.
Levantou os olhos para Joan:
- Appassionata. Ouço o disco constantemente e penso nela. Vibrante, cheia de paixão em tudo. A mulher mais interessante que conheci na vida! A melhor amiga, a que me protegia e me ajudava. A nossa relação era feita de respeito, cumplicidade, amizade. Podia contar com ela. Sabes o que isso significa para uma pessoa como eu?
-Como tu? Por quê? És uma pessoa como as outras.
-Com as minhas fragilidades?
- Todos temos as nossas fragilidades...
Sem a ouvir, Gabriel continuou:
- Ela era a minha segurança, o meu apoio...
Riu, amargamente. O tom tornara-se frio:
-A maior parte das pessoas só liga a isso. Às aparências. E ela tinha casado comigo...
- Gabriel, tu és um artista, uma pessoa boa!
Continuou, a olhar para a lareira, pensativo.
- O que os outros são por dentro, a verdade deles, não lhes interessa, nem a querem ver. Se reparares, toda a gente fala, fala...
- É verdade...
- A hipocrisia...Todos querem é ouvir-se e ser ouvidos, falar de si, dos seus problemas, das suas dúvidas. O ego de cada um alarga-se para todos os lados. O “outro” não existe...
E acrescentou, num tom triste:
-Ou só para dizer mal, para magoar...
Joan protestou:
-Para que serve isso agora? “Palavras, palavras, palavras”... Claro que tudo é egoísmo! Também sou uma céptica, não és só tu. Até amar é egoísmo!
Gabriel olhava-a surpreendido com a veemência do tom.
- Sim! É egoísmo puro! Uma forma de termos poder sobre o outro. A absorção total do outro dentro de nós, abafando-o bem cá dentro, com medo que ele fuja e nos deixe mais sozinhos...
Parou, baixou os olhos e continuou:
-O que é o ciúme? Isso. Claro que o outro não existe! Existimos nós! Para que há-de querer respirar? Não lhe damos o nosso ar? O ar a que achamos que ele tem direito.
Olhou para ele:
- É difícil amar, não é?
Gabriel sorria agora. Joan estendeu-lhe a mão e disse, suavemente:
-Desculpa, interrompi-te!
Gabriel, como se retomasse o raciocínio anterior, disse:
-É isso... Poucas pessoas sabem ouvir, ou interessar-se pelos problemas dos outros! Mas a tua mãe ouvia.
Parecia comovido.
-Ouvia. Reservada, discreta, silenciosa... A sua presença acalmava e bastava uma palavra dela para te sentires bem. Não falava muito de si, não porque se escondesse, não. Era antes uma forma de pudor, não sei explicar. Como se isso não fosse o mais importante...
-Eu sei isso muito bem, Gabriel. A mãe ouvia tudo o que dizíamos...
-Esquecia-se de si, calava-se. “A superioridade aristocrática do silêncio”, de que falava um escritor que li há pouco tempo.
Sacudiu a cabeça:
Sim, ela tinha essa superioridade! Deu-me tanto. E perguntas-me se a amava...
-Assassinaram-na, Gabriel, e tu deixaste!
-Não, não acredito!
Gabriel levantara a voz, gritava. Depois, falou-lhe num tom suave, para a acalmar:
-Se o que dizes é verdade, como é que eu o podia evitar? Não me culpes...
Falava, sem saber o que dizer, como se fosse descobrindo o que pensava.
-Não me dei conta de nada. Assassinada, mas por quê? Não se mata sem um motivo, não achas?
-É isso que temos que descobrir! Lembrar tudo...
Ele encolheu os ombros, desanimado.
-Como queres que me lembre? Como posso saber o que é importante recordar? É absurdo...
Joan passou a mão pelos olhos, abanou a cabeça e suspirou:
-Tens razão, é absurdo... Nada disto tem sentido.
Calou-se. Parecia ouvir a música pela primeira vez. Virando-se para ele, exclamou:
-É linda esta música, Gabriel. Faz impressão pensar que está morta, magoa tanto..."
Zinaida Serebriakova, "Auto-retrato" (1922)

 (in "Olhos de Jade")

3 comentários:

  1. Reconheci quando comecei a ler.
    É uma história excelente.

    A primeira pintura é muito bonita.
    Um beijinho grande. Boa noite.

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  2. Quando "escreves com as tripas" consegues páginas brilhantes. É pena que não te deixes levar e ponhas a tua vidas em ordem...
    "Todos querem ouvir-se e ser ouvidos", realmente achas que somos assim todos? Eu penso que há pessoas que não se calam porque há outras dispostas a prestar-lhes atenção. Prefiro as segundas, mas acho que in medium virtus est, como sempre: nenhum ego, que temos todos, se deve "alargar para todos os lados", como os braços dum polvo...
    Um beijinho muito grande das tua amiga María

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    1. Tu compreendes tudo porque és tu. Claro que nem todos se querem ouvir e ser ouvidos: "non tutti,ma buona parte!" E o tal ego quer queiramos quer não, temos, e é sinal de que existimos! Não podemos é ...exagerar! beijinhos e thanks, my dear!

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