segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Um conto de Katherine Mansfield, tirado do "Diário"


Comecei a ler há pouco a edição integral do “Diário”, em inglês, “Notebooks”, volume com mais de 300 páginas e mais de dois quilos de peso. 

Foi publicado em 1997, pela Universidade do Minnesota, com  introdução, notas e organização de Margaret Scott.

Livro interessante, sem dúvida porque inclui tudo - desde a lista das compras semanal aos preços das mesmas, às apreciações dos livros que Katherine vai lendo, indo até aos rascunhos dos textos que ia escrevendo.

E, pelo meio, pequenos contos incompletos, apontamentos sobre o que quer escrever, críticas.
Edição cuidadosa, pormenorizada, de universitária consciente, mas que me desorienta, no meio de notas e contranotas, alíneas  a remeter para aqui e para ali, numerações de capítulos. Que nos dispersa.   E nos dá, ao mesmo tempo, vontade de fugir do livro...


Edição portuguesa do "Diário", 1944


edição francesa

Confesso que prefiro a edição organizada pelo ex-marido, o escritor John Middleton Murry, cuja 1ª edição francesa, “Journal”, foi publicada em 1927.



Foi do “Diário” que escolhi esta história simples, banal e tão cheia de vida, a história de Rose Eagle.


fotografia que me foi enviada (era o Diário que estava em casa dos meus pais) por M.


Auguste Renoir, 1881, mãe e filho


 Rose Eagle

“É extraordinário verificar com que rapidez Rose Eagle esqueceu os primeiros catorze anos da sua vida. Eram apenas um sonho e ela acordava e via-se sentada na mala de lata amarela, na cozinha do “seu primeiro trabalho”, sentindo as mãos e os joelhos a tremer disparatadamente e o sangue que lhe aquecia as faces. Podia-se pensar que tinha sido trazida, ela e a mala de latão, pela porta das traseiras da cozinha de Mrs. Taylor, pela última vaga do temporal: tão fora daquele lugar, tão perdida, e virava a cabeça para a esquerda e para a direita, como se reparasse no silêncio e na calma, pela primeira vez na vida...

Era o fim da tarde de um dia escaldante de Dezembro (*). Através dos estores, o sol desenhava riscos no chão, no aparador e num calendário que mostrava um sonhador Jesus adolescente com os braços cheios de carneirinhos. Em frente, Mrs. Taylor mudava o bébé deitado nos joelhos dela, a agitar os braços no ar, e sem parar de fazer bolhinhas.

Mrs. Taylor continuava a falar com Rose, na voz suave, um pouco cantada. Bruscamente, ouviu-se tocar o pêndulo do relógio na chaminé; no escritório, uma torneira pingava e parecia um ruído de passos.

A tudo o que dizia Mrs. Taylor, Rose respondia: “Sim, minha senhora. Não, minha senhora.”
“Vai dormir no quarto do Reggie. É o meu filho mais velho. Tem quatro anos, e pu-lo na escola. Agora que chegou, o bébé já não vai ficar comigo à noite – não me deixa dormir. Está habituada aos bébés.”
“Oh! Sim, minha senhora.”
“Não me sinto muito bem para lhe estar a dizer  o que tem que fazer.”

E, com gestos lânguidos,  espetava alfinetes de ama no bébé que fazia gluglu. Rose Eagle levantou-se e inclinou-se sobre Mrs. Taylor.

“Dê-mo”, disse-lhe.

Quando se reergueu, com o embrulho quente e gordinho nos braços, já não tinha medo. O bébé Taylor era para ela o que é a tigela de leite para o gato perdido: quando a aceita, está domesticado.

“Ora, ora, tantos cabelos que tem este homenzinho”, murmura Rose, abraçando-o, docemente. “Parecem plumas negras.”

Mrs. Taylor ergueu-se, levando as mãos à cabeça. Alta e esguia, no seu vestido de algodão lilás, sacudiu a farta cabeleira negra, de os olhos semicerrados e  lábios a tremer.

“Oh, pois é, a senhora não tem nada bom aspecto”, disse Rose, apreciando aqueles ares dolentes. “A senhora vá-se deitar na cama, e eu já lhe trago uma taça de chá. Vou arranjar tudo o melhor que puder.”

Seguiu a patroa fora da cozinha, pelo corredor, até ao lindo quarto. “Deite-se! Tire os sapatos!” Mrs. Taylor obedeceu, suspirando, e Rose Eagle voltou para a cozinha em bicos dos pés.”

(Newberry Notebook, Março 1916, op. cit., páginas 263/264)


Tentei traduzir o conto o melhor que soube, "andando" entre a edição francesa e  a inglesa...



(*) "O Verão, entre Novembro e Fevereiro: a temperatura é suave, sendo que a Ilha do Norte é mais quente do que a Ilha do Sul. Na do Norte, o dia começa com temperatura por volta dos 14 graus Celsius, e vai subindo até chegar aos 24 - 28 por volta das 2 da tarde". (http://www.portaloceania.com/nz-diverses-climate-port.htm)





Mais Katherine Mansfield, para quem ler inglês:

Conto publicado na revista “Rythm”, em Agosto de 1812: “Tales of a Courtyard”:
Conto publicado em Setembro de 1812, na mesma revista: “Spring in a dream”:

7 comentários:

  1. Gostei muito deste post. Esse diário assim tão completo deve ser bem interessante, mas para mim fico-me pelo português, que a Cláudia já me arranjou. Estou bem contente e com muita vontade de o ler.
    Gostei muito da sua jarrinha de flores.
    Um beijinho grande e boa semana.

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    1. Tens de ler... A foto da jarrinha de flores foi-me mandada pela minha irmã, porque ela tinha esse livro.
      beijinhos

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  2. Oi amiga, já ouví todas as músicas recomendadas e me apaixonei pelo pintor, mas não conheço nada ou quase nada sobre ela, conhecí aqui, então, muito prazer.

    um beijo enorme e vc me deixou com curiosidade de encontrar coisas dela.

    bjs muitos.

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  3. Também gostei muito deste post :).
    Na Feira do Livro da Bertrand no DolceVita estão a vender duas colectâneas de contos dela, por 3,00 € cada uma - O Insustentável Peso da Solidão e Numa Pensão Alemã.
    Gostei muito dos contos dela que já li.
    um beijinho
    Gábi

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    1. Boa notícia. Qualquer delas é muito boa. Conheço o 1º dos livros que referes, li-o nessa edição há pouco e até está bem traduzida. É de aproveitar! Tão baratos nos tempos que correm é um bem!
      beijinhos e obrigada!

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  4. Tenho pena de não ler em inglês, a não ser coisas muito concretas sabendo de antemão o que significam. Katherine Mansfield é uma grande escritora.
    A foto, uma beleza. Creio saber já que das tuas irmãs, uma se chama Mamem e a outra Branca.
    Eu daria muito por viver perto de minha irmã mais nova ( Toy).
    Às vezes sinto-me muito longe nem sei bem de quê, na verdade.
    Um beijinho grande

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  5. Havia um livro de Claudio Magris que se chamou exactamente "Lontano da dove?" (Londe de onde...)que falava de judeus sem pátria...
    Somos todos uns judeus errantes quer queiramos, quer não. Londe de onde afinal?, talvez dos sentimentos que sentimos...
    Beijinhos ( a minha irmã é Mamé...)

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