sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Joyce Carol Oates: "Éramos os Mulvaney": éramos uma família!





Éramos os Mulvaneys!” - é  quase um grito! Poderia ter começado com esta frase o livro de Joyce Carol Oates, publicado em 1996. Um nome, uma gente, uma terra, destinos. Como em tantos romances.

Gostaria de contar a impressão profunda que provocou em mim. A queda de uma família?

Difícil falar deste longo romance tão doloroso. Das monstruosidades vulgares que destroem os afectos.
Ao longo de várias páginas assistimos à ascensão e queda dos Mulvaney? 
Muito mais do que isso. 
À destruição da harmonia de um “lugar” paradisíaco e de uma família? Tudo isso...

Arpad Szenes, Helena pintando

E tudo isso por quê? Pelo medo de nos darmos e pelo egoísmo? 
Ou por  levar demasiado em conta a opinião dos que nos rodeiam?
É tudo isso e muito mais.

Os  Mulvaney eram pobres. Um dia compraram uma quinta, trabalharam a terra, lutaram e enriqueceram. Subiram na "escala" social – que na verdade nunca os aceitou como “pares” e que, mais tarde, quando o infortúnio chega, se "vinga" e os vai deitar abaixo sem piedade.

Na pequena cidade, Mont-Ephraim, os Mulvaney foram invejados. Porque, além do mais,  os Mulvaney viviam felizes: tinham quatro filhos à roda deles, e davam-se bem.

a série televisiva

Os Mulvaney eram uma família que comunicava entre si. Ninguém calava as mágoas, todos protestavam.

Eram uma família feliz, tinham uma bela quinta, a High Point Farm, tinham muitos cavalos, cães, ovelhas, campos... E uma série de gatos. E até pássaros!


E o pai, o jovem Michael Mulvaney,  tinha uma fábrica, empregados e dinheiro...

Sim, eram invejados porque eram felizes. “Discutíamos de tudo. Os Mulvaney eram uma família que falava...” (p.33) - recorda Judd Mulvaney.

O poder que as coisas tinham. Tudo era absoluto, intenso e quase doloroso nessa época” (pág. 34). 

E recorda a família:
Seis pessoas, gatos e cães, visitantes e convidados frequentes (os nossos pais gostavam de receber) e Marianne trazia muitas vezes as amigas lá a casa”.


A mãe ria-se e comentava: “Quantos mais formos os loucos cá dentro, mais nos divertimos!” (pág.35)

E é à roda dessa Corinne de cabelo ruivo, mechas despenteadas a fugir debaixo do velho chapéu de palha,  tombado sobre a testa, a trabalhar de dia e de noite...
Sim, é em volta de  uma "mãe-Maria-rapaz" capaz de assobiar como um homem, que a família se encosta, nas suas enormes diferenças.

Desenho de Júlio, o Poeta e a menina

Um belo dia, tudo isso o vento levou...

Não, não vou contar a história. A verdade é que nesse dia acabou o “estado de graça” em que viviam.

A história é-nos contada pelo benjamim, Judd, que nasceu “atrasado”, dez anos depois do irmão mais velho, Michael. E no intervalo nasceram Patrick e Marianne, quase gémeos como eles diziam, porque os separava muito menos de um ano, que se entendiam bem e que se completavam.

É Judd quem vive, sozinho com os pais,o descalabro de High Point Farm, a queda dos sonhos todos. 
No momento em que escreve, hoje, Judd é um jornalista, chefe de redacção de um jornal conhecido, tem trinta e poucos anos, e começa a contar a história dos Mulvaney.

E sentimos a "sua" nostalgia desses tempos e até dos tempos em que ele não ainda tinha nascido! Quando “queria” ter participado dessa vida de sonho que via nas fotografias, representando a família. “Imagina-se” lá, já nascido. "Ele tinha que ter estado presente, ter visto!"
E a história segue, inexorável, ora vista sob o ponto de vista de um, ora pelos olhos dos outros.
As expectativas, os anseios, a esperança. Subiram de classe, mas os outros nunca os aceitaram como “pares”. E quando veio a derrocada dos sonhos foi fácil para esses julgá-los e deitá-los abaixo.

Por um simples acontecimento. “Aquilo” - como lhe vão chamar sempre- destruiu a vida da família.

Os Mulvaney vão ser humilhados, desprezados pelos “bem-pensantes” da terra. O pai, Michael Mulvaney, ferido no seu orgulho, reage violentamente e é  “afastado” do Clube da terra. Falam nas suas costas, riem-se dele.

Corinne protege-o como se fosse um filho - sacrificando os próprios filhos, que têm de se defender sozinhos, abandonando a casa pouco a pouco.

Nada é simples na vida”, lamenta-se. A vida não tem piedade” (pág 612).

 E segue em frente, resistente como uma rocha, abandonando tudo para salvar o seu amor do pântano em que mergulha - e de que não se quer salvar- , destroço humano à deriva, culpando tudo e todos da sua desgraça. 

Sem querer perceber no seu egocentrismo inconsciente que o resto da família sofria tanto como ele.

Enquanto os outros os põem de lado, Judd interroga-se: “Somos leprosos?” E conclui: “Não. Somos invisíveis”.

E a  família desagrega-se, separa-se, sob o olhar indignado e melancólico de Judd.

Patrick – o irritante “Pinch”- o “cientista”a puxar os óculos para a testa, mergulhado nas descobertas deslumbrantes nas coisas que estuda, abandona a casa, chocado talvez com a atitude do pai Mulvaney, e escolhe uma Universidade longe. "Reservado, furioso, e profunda e indizivelmente ferido", não quer voltar.

Marianne é afastada – empurrada, diria- para casa de uma prima da mãe, onde fica, eternizando-se o seu regresso. Ansiosa, à espera da licença do pai para voltar.
Porque o pai não lhe perdoa que “aquilo” tenha acontecido. Como se não fossem “todos vítimas!” – como se revolta Patrick, o irmão quase-gémeo dela.


Júlio

O pai sente-se atraiçoado por ela. Sente-se traído por todos - porque se sente traído acima de tudo pela vida!

História bem contada, caracteres verdadeiros que nos fazem sofrer com as peripécias que vão sofrendo. Queremos ajudá-los, mas como?!

As 750 páginas lêem-se a correr, à procura do fim, na esperança ténue de um desenlace menos doloroso.


 “E as nossas árvores, Michael?” 

Ouço ainda o grito de Corinne Mulvaney. E vejo as árvores agitarem-se, batidas pela chuva e pelo vento, nos dias de vendaval. Lá no alto do monte, High Point

Van Gogh, quatro árvores

Mas na vida tudo dá a volta. No final, bastam as palavras da mãe: “Como é que nos salvámos?”, para compreender que uma certa paz voltou.

“Foi inesperado, maravilhoso, sim, miraculoso... e, no entanto, é apenas a vida (...)” .

Talvez lembrasse, saudosa, os que se perderam pelo caminho...

***

Deixo um pouco mais sobre a autora. Nasceu em 16 de Junho de 1938, em Lockport... 


Leituras:  a leitura de "Alice no país das maravilhas" foi “o maior tesouro da minha infância, que muito me influenciou". 



Sobre outras influências refere as de Charlote e Emily Brontë, que adorava. Aliás neste romance, refere-se a Jane Eyre ou Vilette e à sua autora, Charlotte. Uma das frases que a pobre Marianne refere é tirada de uma carta de Charlotte: "Saí da obscuridade... a ela posso voltar facilmente..."


Lê Faulkner, Dostoievsky, Thoreau, Kafka, Flannery O’Connor, Thomas Mann, Hemingway.

Curiosidade: escreve com o pseudónimo de Rosamund Smith uma longa série de livros policiais (desde 1969) dos quais já li alguns. Livros de suspense, dramáticos em que a violência e a malevolência se desprendem das figuras menos suspeitas.

Em 1966, dedica um dos livros a Bob Dylan; Where are you going? Where have you been”, porque a sua canção “It’s all over now, baby blue”, a inspirou.

http://youtu.be/jd5UkWHnQhA (podem ouvir  a canção)...

Um dos primeiros romances foi “Them” (1969) que lhe valeu o National Book Award.



O primeiro dos seus livros saíra em 1963 e o segundo em 1967. 
Por vezes escreve sobre acontecimentos ou figuras reais cujas vidas dramáticas a atraem, como Blonde (Marilyn) ou Black Water (a tragédia de Kelly e Ted Kennedy)

Há pouco saiu o livro, “Memórias de uma Viúva”, livro autobiográfico, foi já traduzido em Espanha. Ignoro se saiu por cá.



Na wikipedia, encontrei alguns títulos de J.C.Oates traduzidos: “Rapariga negra, rapariga branca” e "A filha do coveiro"na Sextante editores, e A fé de um escritor”,  na Casa das Letras.



O romance "We were the Mulvaney" foi adaptado para a televisão por Joyce Eliason, em 2002.

2 comentários:

  1. Parece um livro interessantíssimo!
    Adorei o post, as fotos, as pinturas. Fiquei com muita vontade de ler algo sobre a escritora.
    Um beijinho

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  2. Só li da autora o conto "¿Donde vas, de donde vienes?", e é curioso que late nele o mesmo tema que está nesta obra — fui investigar, é evidente que não ia ficar sem saber o que era "aquilo"...
    Fiquei com vontade de ler as Memórias de uma Viúva, vou comprá-lo, depois conto-te. Tenho a impressão que vou gostar, para mim a literatura femenina, quando é boa, é muito melhor, como a May West ("quando sou boa sou muito boa, mas quando sou má sou muito melhor) BROMA...
    Bom finde, um beijo grande

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