Gostaria de contar a impressão profunda que provocou em mim. A queda de uma família?
Difícil falar deste longo romance tão doloroso. Das
monstruosidades vulgares que destroem os afectos.
Ao longo de várias páginas assistimos só à ascensão e queda dos
Mulvaney?
Muito mais do que isso.
À destruição da harmonia de um “lugar”
paradisíaco e de uma família? Tudo isso...
Ou
por levar demasiado em conta a opinião
dos que nos rodeiam?
É tudo isso e muito mais.
Os Mulvaney eram
pobres. Um dia compraram uma quinta, trabalharam a terra, lutaram e
enriqueceram. Subiram na "escala" social – que na verdade nunca os aceitou como “pares” e
que, mais tarde, quando o infortúnio chega, se "vinga" e os vai deitar abaixo sem piedade.
Na pequena cidade, Mont-Ephraim, os Mulvaney foram invejados. Porque,
além do mais, os Mulvaney viviam felizes: tinham quatro
filhos à roda deles, e davam-se bem.
a série televisiva
Eram uma família feliz, tinham uma bela quinta, a High Point Farm, tinham muitos cavalos,
cães, ovelhas, campos... E uma série de gatos. E até pássaros!
E o pai, o jovem Michael Mulvaney, tinha uma fábrica,
empregados e dinheiro...
Sim, eram invejados porque eram felizes. “Discutíamos de
tudo. Os Mulvaney eram uma família que falava...”
(p.33) - recorda Judd Mulvaney.
“O poder que as coisas tinham. Tudo era absoluto, intenso e
quase doloroso nessa época” (pág. 34).
E recorda a família:
“Seis pessoas, gatos e cães, visitantes e convidados
frequentes (os nossos pais gostavam de receber) e Marianne trazia muitas vezes
as amigas lá a casa”.
E é à roda dessa Corinne de cabelo ruivo, mechas despenteadas
a fugir debaixo do velho chapéu de palha, tombado sobre a testa, a
trabalhar de dia e de noite...
Sim, é em volta de uma "mãe-Maria-rapaz" capaz de assobiar como um
homem, que a família se encosta, nas suas enormes diferenças.
Não, não vou contar a história. A verdade é que nesse dia
acabou o “estado de graça” em que viviam.
A história é-nos contada pelo benjamim,
Judd, que nasceu “atrasado”, dez anos depois do irmão mais velho, Michael. E no intervalo nasceram Patrick e Marianne, quase gémeos como eles
diziam, porque os separava muito menos de um ano, que se entendiam bem e que se
completavam.
No momento em que escreve, hoje, Judd é um jornalista, chefe de redacção de um jornal conhecido, tem trinta e
poucos anos, e começa a contar a história dos Mulvaney.
E sentimos a "sua" nostalgia desses tempos e até dos tempos em que ele não ainda tinha nascido! Quando “queria” ter participado dessa vida de sonho
que via nas fotografias, representando a família. “Imagina-se” lá, já nascido. "Ele tinha que ter estado presente, ter visto!"
E a história segue, inexorável, ora vista sob o ponto de
vista de um, ora pelos olhos dos outros.
As expectativas, os anseios, a esperança. Subiram de classe, mas os outros nunca os aceitaram como
“pares”. E quando veio a derrocada dos sonhos foi fácil para esses julgá-los e
deitá-los abaixo.
Por um simples acontecimento. “Aquilo” - como lhe vão chamar sempre-
destruiu a vida da família.
Os Mulvaney vão ser humilhados, desprezados pelos
“bem-pensantes” da terra. O pai, Michael Mulvaney, ferido no seu orgulho, reage violentamente e é “afastado” do Clube da terra. Falam nas suas
costas, riem-se dele.
Corinne protege-o como se fosse um filho - sacrificando os
próprios filhos, que têm de se defender sozinhos, abandonando a casa pouco a
pouco.
“Nada é simples na vida”, lamenta-se. A vida não tem
piedade” (pág 612).
E segue em frente,
resistente como uma rocha, abandonando tudo para salvar o seu amor do pântano
em que mergulha - e de que não se quer salvar- , destroço humano à deriva,
culpando tudo e todos da sua desgraça.
Sem querer perceber no seu egocentrismo inconsciente que o resto da família sofria tanto como ele.
Sem querer perceber no seu egocentrismo inconsciente que o resto da família sofria tanto como ele.
Enquanto os outros os põem de lado, Judd interroga-se: “Somos leprosos?” E conclui: “Não. Somos invisíveis”.
E a família desagrega-se, separa-se, sob o olhar indignado e melancólico
de Judd.
Patrick – o irritante “Pinch”- o “cientista”a puxar os óculos para
a testa, mergulhado nas descobertas deslumbrantes nas coisas que estuda, abandona
a casa, chocado talvez com a atitude do pai Mulvaney, e escolhe uma
Universidade longe. "Reservado, furioso, e profunda e indizivelmente ferido", não quer voltar.
Marianne é afastada – empurrada,
diria- para casa de uma prima da mãe, onde fica, eternizando-se o seu regresso.
Ansiosa, à espera da licença do pai para voltar.
Porque o pai não lhe perdoa que “aquilo” tenha acontecido. Como
se não fossem “todos vítimas!” – como se revolta Patrick, o irmão quase-gémeo
dela.
Júlio
O pai sente-se atraiçoado por ela. Sente-se traído por todos - porque se sente traído acima de tudo pela vida!
História bem contada, caracteres verdadeiros que nos fazem
sofrer com as peripécias que vão sofrendo. Queremos ajudá-los, mas como?!
As 750 páginas lêem-se a correr, à procura do fim, na
esperança ténue de um desenlace menos doloroso.
“E as nossas árvores, Michael?”
Ouço ainda o grito de Corinne Mulvaney. E vejo as árvores agitarem-se, batidas pela chuva e pelo vento, nos dias de vendaval. Lá no alto do monte, High Point!
Mas na vida tudo dá a volta. No final, bastam as palavras da
mãe: “Como é que nos salvámos?”, para compreender que uma certa paz voltou.
“Foi inesperado, maravilhoso, sim, miraculoso... e, no
entanto, é apenas a vida (...)” .
Talvez lembrasse, saudosa, os que se perderam pelo caminho...
***
Deixo um pouco mais sobre a autora. Nasceu em 16 de Junho de 1938, em Lockport...
Leituras: a leitura de "Alice no país das maravilhas" foi “o maior tesouro da minha infância, que muito
me influenciou".
Sobre outras influências refere as de Charlote e Emily Brontë, que adorava. Aliás neste romance, refere-se a Jane Eyre ou Vilette e à sua autora, Charlotte. Uma das frases que a pobre Marianne refere é tirada de uma carta de Charlotte: "Saí da obscuridade... a ela posso voltar facilmente..."
Lê Faulkner,
Dostoievsky, Thoreau, Kafka, Flannery O’Connor, Thomas Mann, Hemingway.
Curiosidade: escreve com o pseudónimo de Rosamund Smith uma
longa série de livros policiais (desde 1969) dos quais já li alguns. Livros de suspense, dramáticos em que a violência e a malevolência se desprendem das figuras menos suspeitas.
Em 1966, dedica um dos livros a Bob Dylan; Where are you going? Where
have you been”, porque a sua canção “It’s all over now, baby blue”, a inspirou.
Por vezes escreve sobre acontecimentos ou figuras reais cujas vidas dramáticas a atraem, como Blonde (Marilyn) ou Black Water (a tragédia de Kelly e Ted Kennedy)
Há pouco saiu o livro, “Memórias de uma Viúva”, livro
autobiográfico, foi já traduzido em Espanha. Ignoro se saiu por cá.
Na wikipedia, encontrei alguns títulos de J.C.Oates traduzidos: “Rapariga negra, rapariga branca” e "A filha do coveiro", na Sextante editores, e
“A fé de um
escritor”, na Casa das Letras.
O romance "We were the Mulvaney" foi adaptado para a televisão por Joyce Eliason, em 2002.
http://www.elcultural.es/version_papel/LETRAS/7283/Que_fue_de_los_Mulvaney
imagens sobre a escritora e os seus livros:
Parece um livro interessantíssimo!
ResponderEliminarAdorei o post, as fotos, as pinturas. Fiquei com muita vontade de ler algo sobre a escritora.
Um beijinho
Só li da autora o conto "¿Donde vas, de donde vienes?", e é curioso que late nele o mesmo tema que está nesta obra — fui investigar, é evidente que não ia ficar sem saber o que era "aquilo"...
ResponderEliminarFiquei com vontade de ler as Memórias de uma Viúva, vou comprá-lo, depois conto-te. Tenho a impressão que vou gostar, para mim a literatura femenina, quando é boa, é muito melhor, como a May West ("quando sou boa sou muito boa, mas quando sou má sou muito melhor) BROMA...
Bom finde, um beijo grande