Edward Hopper, Lighthouse Hill
Cascais, Castelo
- Utopias? E...
- Gosto das
utopias! Desculpa, interrompi-te...
Falávamos de utopias. Dos marcos que nos deixaram, pela estrada, alguns professores, do farol a meio da tempestade, dos livros que são mestres.
Falávamos de tudo um pouco naquela manhã de Novembro.
-Não faz mal, respondi-lhe. Ia a dizer "faróis". Castelos no ar...
E continuei o meu raciocínio.
- Estava a pensar se a solidariedade é já uma utopia. Eles fecham-se...
- Quem?
-Os meus
alunos fecham-se, protegem-se contra os próprios colegas...
Ela encolheu os ombros, fixando os olhos no mar bravio lá adiante. E foi dizendo, pausadamente.
Mar da Ericeira (MJF)
Ela encolheu os ombros, fixando os olhos no mar bravio lá adiante. E foi dizendo, pausadamente.
- Foi
sempre assim, não foi?
- Não, não foi. Estou convencida de que esta “concorrência” desenfreada, a ideia de “seres obrigado” a
teres melhor nota do que os outros, cria uma luta tremenda!
A minha
amiga olhou-me, pensativa. Falávamos sempre que podíamos das nossas
preocupações. E o ensino era uma delas porque tínhamos sidos as duas professoras.
Colegas na adolescência, amigas - e tantos anos sem nos vermos, longe uma da outra!- no entanto o diálogo era sempre íntimo e a compreensão total.
Colegas na adolescência, amigas - e tantos anos sem nos vermos, longe uma da outra!- no entanto o diálogo era sempre íntimo e a compreensão total.
- Sim,
perdeu-se um pouco o sentido da “camaradagem” dos nossos tempos. Lembras-te?
Como podia esquecer-me! Tínhamos catorze anos e entre querer brincar -ainda- e estudar,
aprender, crescíamos. Mas o "desafio" era entre camaradas de classe, lealmente.
Agora estávamos naquele café a conversar. Ela fumava muito, eu não, só bebia café. Sempre gostei de café e dos ambientes dos cafés.
Continuei.
- Julgas que se preocupam em ajudar um colega que “caiu” na droga? Não... Não se ralam, afastam-se.
Agora estávamos naquele café a conversar. Ela fumava muito, eu não, só bebia café. Sempre gostei de café e dos ambientes dos cafés.
Korovine, Café de la Paix
Café Angra, na Praia Grande (MJF)
Edward Hopper, New York Restaurant
Continuei.
- Julgas que se preocupam em ajudar um colega que “caiu” na droga? Não... Não se ralam, afastam-se.
-
Compreende-se...
- Por um
lado é verdade, mas a vontade de ajudar já não não existe? Não é um imperativo?
- No nosso tempo era...
Parou, a pensar, e disse, muito séria:
- Seria?...
- Não sei. Sei que agora juntam-se em grupos “safe”, assépticos, que não fumam, que não se drogam. Meu Deus, é claro que eu não concordo que se droguem! Mas, numa aula, não pode existir o “pestífero”, o “intocável”!
- No nosso tempo era...
Parou, a pensar, e disse, muito séria:
- Seria?...
- Não sei. Sei que agora juntam-se em grupos “safe”, assépticos, que não fumam, que não se drogam. Meu Deus, é claro que eu não concordo que se droguem! Mas, numa aula, não pode existir o “pestífero”, o “intocável”!
- Certo. Tens razão. Deve-se encontrar uma maneira de não fechar as portas. Continuar a “sentir” o outro.
Degas, Café-Concert
- Sim. É
isso. E eu sinto-os é blindados num
egoísmo feroz. Tão novos, ainda...
-Blindados?
Que estranha imagem. Mas por quê? Pelo medo da “morte a rondar por ali”?...
Edward Munch, Cinzas
-Só que o medo da morte e a angústia não “te” devem pôr na defensiva. O outro pode ajudar-te também. E tu deves ajudá-lo. Ou não?...
-Não podemos
criticá-los, é um risco sério. Sabes que é difícil ajudar uma pessoa que se
droga.
- Verdade.
Mas não pode haver “excluídos” numa escola! Não pode!
Ela pousou apagou cigarro.
- Sim. A solidão deles é terrível.
Acrescentou:
Ela pousou apagou cigarro.
- Sim. A solidão deles é terrível.
Edward Munch, O baile da vida
-Vi muitas situações dessas. Tive amigos que fumavam, ou se injectavam, alguns conseguiram
deixar a droga. Outros, não... Nada é simples.
Lembrei-me do Rogério. O que seria dele?
Lembrei-me do Rogério. O que seria dele?
Edward Hopper, Freight Car
-Tive um
aluno difícil, numa turma complicada. Um aluno esperto que não conseguia
concentrar-se. Só lhe interessava desenhar e era o que fazia durante a aula
toda.
Encolhi os ombros, parecia-me estar a vê-lo.
-Talvez nem me ouvisse. Via-o desenhar árvores, pássaros, geometrias coloridas.
Encolhi os ombros, parecia-me estar a vê-lo.
-Talvez nem me ouvisse. Via-o desenhar árvores, pássaros, geometrias coloridas.
Via a turma toda. A aula era no rés-do-chão virada para a entrada e para as árvores enormes, plátanos cujas copas mudavam com as estações, mas guardavam sempre a sua beleza.
- O Rogério! Cara de miúdo, magro, com a franja na testa, e uns dentes grandes. Todos os dias me provocava!
- O Rogério! Cara de miúdo, magro, com a franja na testa, e uns dentes grandes. Todos os dias me provocava!
-Provocava-te?
Como?
-Acho que era
isso: provocação...
Ela sorriu também, lembrava-se de nós de certeza.
Ela sorriu também, lembrava-se de nós de certeza.
Edward Munch, Primavera no passeio
Tínhamos sido alunas tranquilas, mas com tanta vontade de brincar nas aulas. Quantas provocações teríamos feito nesses tempos, se os tempos fossem diferentes... Ela fazia-as sempre que podia! Uma revolucionária! Eu era mais tímida, mais reservada, mas sempre de acordo com ela.
- Uma vez trouxe um rato e largou-o no estrado, a meio da aula. Outra, pôs umas baratas ao pé das colegas para elas gritarem. E gritaram, excitadas e com medo. Observava-me.
-
Procurava-te. Era para te chamar a atenção.
- Sim. A
ver até onde o deixava ir. Talvez quisesse ver se me preocupava com ele...
-E como
acabou?
-Nunca o
expulsei da aula, ralhava-lhe e combinávamos que não voltava a fazê-lo...Tentei entusiasmá-lo com o que
estudávamos. Faltava muito. Depois voltava, sem uma palavra. Desinteressado,
pouco ouvia, entregava os trabalhos sem os acabar.
Eduardo Luiz, "barcos de papel"
- Esperava
um gesto teu...
- Só que eu
não sabia qual era! Numa aula, pedi-lhes que ilustrassem uns contos que tínhamos lido. Ele aplicou-se. E os
desenhos eram bem bonitos e expressivos! Resolvi dar-lhe
uma boa nota. Foi um exagero, não merecia...
- Se a história acabou
bem, como nos filmes? Não, não mudou. Consegui apenas que não chumbasse, dei-lhe a nota para passar.
- E depois?
- No ano seguinte não voltou para a escola. Depois, fui sabendo que ia bem, noutra escola. Na Caparica! Mandava-me recados, perguntava por mim.
De repente, senti-me triste.
- Ajudei-o? Ou era mais uma utopia? Soube que aquele tinha sido um ano difícil, tomava conta do irmão, drogado.
- No ano seguinte não voltou para a escola. Depois, fui sabendo que ia bem, noutra escola. Na Caparica! Mandava-me recados, perguntava por mim.
De repente, senti-me triste.
- Ajudei-o? Ou era mais uma utopia? Soube que aquele tinha sido um ano difícil, tomava conta do irmão, drogado.
- Suponho
que sim. Sozinhos, longe da família, o irmão em tratamento, frágil, e ele não sabia o que fazer. Talvez se revoltasse
e me provocasse para chamar a atenção.
- Precisava
de alguém.
- Queria
que eu o visse e lhe desse a mão... E eu terei dado?
Olhou-me, com a amizade de sempre. Pensei: "Que bom ter um amigo..."
Olhou-me, com a amizade de sempre. Pensei: "Que bom ter um amigo..."
-Não sei se fui. Se soubesse antes... teria podido ajudar. Afinal, não aprendeu nada e
dei-lhe uma nota que não merecia...
-Deste-lhe
existência, valorizaste-o! Reparou que tu te preocupavas com ele. Era um
“sentimento”, uma proximidade. Arrependes-te dessa nota?
Maniaks, Luz
Sorri-lhe um grande sorriso, eludindo a pergunta - ou a resposta?
- Nunca me
arrependi de dar uma boa nota!
E fiquei a pensar no Rogério...
E fiquei a pensar no Rogério...
Gosto do pintor Edward Hopper.
ResponderEliminarAjudar! Que complexo, que difícil. No fundo sempre estamos a pensar em nós, que é o que nos importa.
Até quando somos generosos estamos a olhar para o nosso umbigo. Certamente somos bons quando nem sequer nos damos conta, ajudamos alguém quando menos esperamos...Digo eu, que nem sei bem o que digo...
Bom finde, beijos
Ajudar desinteressadamente é com certeza uma das coisas difíceis da vida... Podemos tentar e , melhor ou pior, alguma coisa se consegue - quantas vezes (tens razão)sem sabermos que o estamos a fazer. O indesculpável - tu sabes- é a indiferença.
Eliminarbeijinhos!!!
J.
Querida Maria João,
ResponderEliminarVou ser breve. Vim aqui para lhe dizer que me tocou imenso a postagem sobre o aluno Rogério.
A beleza das imagens em sintonia com o texto.
Ana
Só hoje pude vir e adorei o que ví e lí.
ResponderEliminarAjudar vira hábito, vira faca afiada, vira rotina e daí já está entranhado. O duro é quando isso significa perder para doar, tirar de sí para dar, aí verdadeiramente vivemos a utopia, esse , penso que ainda levo uma vida para tentar.
bjs meus