O tempo vai, o tempo vem, O
tempo tira-nos coisas, leva pessoas que amámos, deixa recordações.
O tempo traz também de vez em quando alguma coisa.
O tempo traz também de vez em quando alguma coisa.
Hoje recebi uma prenda que me
enterneceu: um quadro pintado a canetas de feltro, por uma pintora que nunca
aprendeu a pintar e sempre fez uns quadros naïfs, cheios de selvas e de feras...
O nome dela é Dores Varela e o
tempo também passou pelas duas, como é inevitável...
Conheci-a no meu Liceu (bem,
escola secundária) de São João.
Veio de África, de Moçambique,
onde trabalhara numa Biblioteca Pública. Eu estava de passagem, vinha de Itália e
tínhamos muito para conversar. A vida não lhe sorrira e desse bom emprego que
tivera só restavam recordações.
Aqui, arranjara aquele lugar de contínua, no liceu.
Aqui, arranjara aquele lugar de contínua, no liceu.
Aí a conheci. Aí falámos. Aí
ficámos amigas. Porque somos ainda amigas.
Eu ensinava nos cursos
nocturnos, ela estava na pequena Biblioteca que, de noite, servia de tudo:
era secretaria, papelaria, biblioteca e ponto de encontro.
Então, durante os pequenos intervalos das aulas, fartei-me de falar com a D. Dores e com a D.
Isabel. Ia buscar livros,
ou comprar canetas (velha paixão que nunca perderei), fazer fotocópias ou imprimir testes. Às vezes levava para lá os meus jornais franceses, porque havia sempre quem os quisesse ler.
A noite era tranquila e o tempo corria devagar, sem stress para ninguém.
A noite era tranquila e o tempo corria devagar, sem stress para ninguém.
Foi nessas conversas que soube
que ela gostava de pintar a sua África saudosa.
gazelas ao pôr do sol, na Gorongosa...
Trazía-os de casa, para me mostrar. Eram
cenas de aventuras, de caça com azagaias, onde podiam aparecer leões ou
leopardos, tribos guerreiras de lança em punho, pássaros estranhos esverdeados. Pássaros enormes na desproporção, assustadores, mas atentos, defendendo os seus ninhos...
E, sempre, uma floresta virgem, selvagem, árvores frondosas e gigantescas, palmeiras, arbustos, com cores agressivas, cheias de perigos escondidos detrás de cada uma delas!
guerreiras empunhando azagaias
- Sou eu que imagino tudo... Os leões só os vi no Parque da Gorongosa...
um leão no Parque da Gorongosa (moçambique)
Num dado ano, fui para outra
escola em Sintra e passámos a ver-nos menos. Ela reformara-se entretanto e, por
vezes, encontrávamo-nos no super-mercado da Praceta, ou na estação, sempre com
um chapeuzinho e um saco na mão.
vista do Parque da Gorongosa
- Vou apanhar sol, ali nas rochas da praia.
De facto, a praia da Azarujinha fica
perto. Via-a queimada do sol, livre, mas sentia-a amargurada.
uma praia, quadro do pintor João vaz
- E os seus quadros?,
perguntava eu.
- Ah! É verdade, a professora
gostava deles. Um dia deixo-lhe um no Liceu, à Isabel.
Prometi que passava. E o tempo
continuou a correr e não passei.
Ultimamente não nos temos
visto.
Hoje, por outra razão, fui ao meu antigo Liceu.
Hoje, por outra razão, fui ao meu antigo Liceu.
Lá estava a D. Isabel na
papelaria com o seu sorriso...e o quadro para mim!
o quadro, na totalidade
pormenores do quadro
Pássaros e ninhos
Falámos um bocadinho, comprei
três canetas, parei para deixar passar à minha frente os miúdos que vinham
comprar papéis para relevação de faltas, impresso para testes, uma caneta, um
lápis...
Despedi-me da D. Isabel. E
trouxe para casa o quadro naïf que, no seu colorido e imaginação, não
envergonhariam o douanier Rousseau. Com uma dedicatória amiga...
As cores vivíssimas, a sugestão dos espaços sem fim, perto do céu, da flora desconhecida para nós, tudo dá a imaginação criativa da autora.
Os roxos vivos, os rosa-salmão, os amarelos queimados dos ramos das palmeiras secas. O anilado das rochas junto do céu quase da mesma cor.
O tempo parado para sempre.
As saudades da sua África estão lá... Onde nunca mais voltou. Onde nunca mais voltará.
As cores vivíssimas, a sugestão dos espaços sem fim, perto do céu, da flora desconhecida para nós, tudo dá a imaginação criativa da autora.
Os roxos vivos, os rosa-salmão, os amarelos queimados dos ramos das palmeiras secas. O anilado das rochas junto do céu quase da mesma cor.
O tempo parado para sempre.
As saudades da sua África estão lá... Onde nunca mais voltou. Onde nunca mais voltará.
Muito bonitos. Boas memórias, bons ventos que o tempo traz.
ResponderEliminarBeijinho. :)
É um lindo quadro!
ResponderEliminarMuito bonito e com pormenores encantadores.
É pena, que as pessoas com talento nem sempre possam desenvolvê-lo.
É uma bela recordação.
Mas essa senhora ainda é viva, ou quando diz que ela nunca mais voltará, quer dizer que faleceu?
Um beijinho grande e um bom fim-de-semana
Tens razão, Isabel, é muitas vezes injusta a vida nas oportunidades que (não) dá... Ainda está viva! Encontrei-a há umas semanas e lá ia de chapelinho... bom domingo!
EliminarA vida é um processo mágico na medida que avança no curso dirigível pela qual vivemos cada dia, como se fosse o último sem se dar conta que momentos isolados como esse é que oferece sentido pelo que realmente vivemos. Um gesto pode mudar a conspiração do universo, lançando caramanchão florido no caldeirão de sentidos e continuidade do que muitos simplesmente passa pela vida em brancas nuvens. Goethe certa vez disse: “ler é a arte de desatar nós-cegos” e como amigas de um patrimônio cultural do ensinar, fica claro tamanha afeto além das aparências. Parabéns e um ótimo final de semana do seu amigo além mares...Mr. Butterfly
ResponderEliminarO quadro é lindo, e tê-lo em casa uma sorte, suponho que merecerá um lugar nalguma parede, e de vez em quando te fará recordar a uma pessoa que sempre estava triste. Se lhe tivesses perguntado porquê, talvez te tivesse contado uma história tão interessante como o que pinta. Quem sabe! Gostava de ter conhecido uma senhora triste com chapéu que pintasse tão bem, e ir a ver o mar com ela...
ResponderEliminarBeijinhos